Uma noite no Cadeião

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Fotos de Edson Vieira

Em 1972, o cantor e compositor Itamar Assumpção, então com 23 anos de idade, esperava um ônibus na Rodoviária de Londrina (Paraná) com sua mala e um gravador portátil nas mãos (que tinha emprestado de um amigo), quando foi abordado pela polícia. Por ser negro, os policiais deduziram que o gravador só podia ter sido roubado. Preso, Itamar passou cinco dias incomunicável, enfiado num cubículo com mais 15 detentos na Cadeia Pública de Londrina. Dizem que derivou daí o nome irônico que ele deu ao seu grupo, Isca de Polícia.

Na última quarta-feira, 20, às 19 horas, fiz um lançamento de meu livro O Último Pau de Arara (Grafatório Edições) a 10 metros das celas da Cadeia Pública de Londrina – uma das quais teria sido aquela que manteve Itamar preso. Hoje reformado e requalificado, o prédio agora abriga o Sesc Cadeião, um privilegiado espaço cultural na cidade, moderno e bem aparelhado. Algumas daquelas antigas celas, cada uma com seis camas de concreto, foram mantidas da antiga edificação, que esteve em vias de ser demolida – a derrubada foi detida pela ação de um grupo de intelectuais. Há uma foto na parede, gigante, na qual se pode reconhecer entre os ativistas o escritor Domingos Pellegrini, que se postava à frente de um trator que parecia ir em direção ao combalido cadeião.

Acho interessante esse esforço de exorcizar um passado de vergonha e exceção encarando-o assim de frente, sem medo nem pruridos de quaisquer naturezas. Na noite de quarta, senti que o Sesc Cadeião brilhava de legítimo interesse, acolhimento e confiança na cultura como força motriz da condição humana. Posso provar isso. Toda a vibração foi captada pelas fotos do Edson Vieira, um registro primoroso de um lançamento que dispensa meu esforço de convencimento (e até legendas).

Em 1999, também estive, a trabalho, nas antigas e temidas celas do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo, que estavam sendo reocupadas pela Pinacoteca do Estado de São Paulo.  Estavam lá poucos convidados, como d.Paulo Evaristo Arns, o cardeal arcebispo de São Paulo, a atriz Ruth Escobar (de quem ganhei um filhote de cachorro cujo DNA segue latindo aqui em casa até hoje) e outras pessoas ligadas à resistência contra o regime militar. Estavam encenando, ainda nas celas da repressão, a peça Lembrar É Resistir, de Izaías Almada, um ex-preso político (em co-autoria com Analy Alvarez), com direção de Silnei Siqueira. Os atores faziam a encenação de cela em cela. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram interrogados ali.

Em dois dias em Londrina, revi e me diverti conversando com bons amigos, como o escritor e jornalista Marcos Losnak e o cineasta Rodrigo Grota. Falamos sobre envelhecimento, literatura, cinema, a aniquilação do velho Centro da cidade, as malandragens de Haruo Ohara e até a Jovem Guarda. Conheci pessoalmente também os meus magníficos editores da Grafatório, Felipe Melhado e Pablo Blanco, que fazem o mundo girar no sentido extremamente oposto ao da pressa, do oportunismo e do arrivismo. Seu trabalho é rigoroso, ousado e único no mundo editorial, e nossos santos bateram desde sempre – mas editamos na pandemia, ainda não tínhamos nos visto. Muito menos bebido – todo mundo estava a dois anos distante da rota dos bares.

Muita gente veio, e muita história que eu não conhecia baixou na área. Descobri estupefato que existe uma cachoeira de 25 metros de altura resistindo em plena estridência urbanística da nova Londrina, cidade hoje muito diferente daquela na qual estudamos (quase irreconhecível). Fui apresentado ao local onde Hermeto Pascoal encontrou por acaso um dos amores de sua vida, a cantora Aline Moreno (que, me contaram, estava esperando determinada com um didgeridoo australiano num dos bancos da universidade, disposta a conhecer a performance do mítico alagoano). Casaram-se tempos depois e ela o levou para passar uma década em Curitiba.

Tenho a impressão que nosso delinquente senso de humor se preserva em algum lugar secreto, e de vez em quando aflora. Eu e o velho amigo Jersey Gogel rimos simultaneamente ao avistar uma Variant antiga estacionada no estacionamento do departamento de comunicação. Uma Variant era o carro do nosso colega Campana, o único motorizado nos anos 1980, obrigado a nos dar carona constantemente, e ele certamente a teria esquecido ali no estacionamento desde 1986, pelo estado do carro.

Revi também uma grande colega de faculdade, Suzi Bonfim. É a segunda vez que nos reencontramos durante um evento lítero-jornalístico – a última tinha sido em Cuiabá, onde ela viveu um tempo. Estive lá no Mato Grosso há mais de uma década para uma palestra e havia até uma banda escalada para fazer a abertura da noite. Eram os garotos do Vanguart, que ainda não tinham gravado nada àquela altura.

Suzi me contou uma coisa que tem me impressionado muito nesses últimos dias, e por isso estou aqui escrevendo. Ela disse que, no ano em que lancei Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida (Todavia Livros), uma outra colega nossa de faculdade, Eliana Midori, que vivia em Macapá, tinha lançado uma convocação para que todos os amigos fossem à noite de autógrafos para uma reunião que teria sido histórica.  Eliana morreu de câncer há três anos, me contou a Suzi. Fiquei um pouco perplexo e tocado.

Era uma menina linda de nossa turma, a Midori. Somente hoje fui ver o significado do seu nome, que quer dizer “verde” ou “verdejante” em japonês. Era pura liberdade e alegria, tinha no olhar um pouco daquele jeito meio misterioso da Lucy Liu e o andar destrambelhado da Jennifer Garner.

Retornar a Londrina, dessa vez, me trouxe a sensação de que finalmente é possível olhar em retrospectiva para o que aconteceu na vida naqueles anos efervescentes da universidade. O saldo, é o que sinto, parece ser o seguinte: foi tudo realmente especial, único, como de resto cada fase da vida da gente é. O condimento de diferenciação parecia ser nossa voracidade pelo novo, pelo inusitado, a falta de temor, um orgulho meio comunitário e exclusivista. Vão me dizer: ah, mas isso é uma coisa comum a toda a juventude. Pode ser. Mas que é muito bacana a gente guardar essa sensação de que vivemos algo extraordinário, algo que se destacava dos desejos médios do mundo, lá isso é.

Um beijo, Midori!

Um beijo, grandes parceiros daquela aventura oitentista!

Ensaio fotográfico de Edson Vieira

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