O pianista, arranjador, compositor, maestro e filósofo da música Ian Guest(Fotografias de Juvenal Pereira)

Morreu na noite de sábado em Tiradentes (MG) o compositor, arranjador, pianista e filósofo da música Ian Guest, aos 82 anos. O húngaro Guest (cujo nome de batismo era János Geszti) entrou para a História da música brasileira ao produzir o visionário disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10 (CBS, 1971), de Raul Seixas, Miriam Batucada, Edy Star e Sergio Sampaio. Raul foi amigo inseparável de Guest na juventude e foi responsável pela contratação de Sergio Sampaio pela CBS. 

Refugiado da Hungria com a família no Rio de Janeiro, Ian Guest encontrou sua vocação no lendário Beco das Garrafas, o berço da bossa nova. Ex-funcionário da CBS, Guest se caracterizava pela ousadia e inovação. Assinou sucessos da Jovem Guarda com o codinome Átila.  Numa de suas aventuras, ao produzir o disco Som, Sangue e Raça (1971), de Dom Salvador e Abolição, foi demitido pela gravadora. Também foi parceiro de entidades da música brasileira, como Vinicius de Moraes. Em 2018, em companhia do fotógrafo Juvenal Pereira, visitei Guest em Tiradentes para colher seu depoimento para o livro Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida (Todavia Livros, 2019), e ficamos amigos. Ele me enviou diversos textos de reflexão filosófica sobre a atividade musical, dos quais publicamos um até agora.

Amava Minas Gerais mais do que qualquer outro lugar do mundo. Contei parte de sua história na revista CartaCapital em 10 de março de 2019, texto que reproduzo abaixo:

 

Por Jotabê Medeiros

EM TIRADENTES (MG)

Numa ruazinha curta detrás da Igreja de São Francisco de Paula, na labiríntica cidade mineira de Tiradentes, de vez em quando escapa (de uma casa dividida em dois blocos independentes) um som incrivelmente afinado de uma pianola Steck, que chega até o calçamento. Todos já sabem que quem toca a pianola é professor Ian, como é conhecido por ali. Tem 79 anos e vive só, mas quase nunca está só: alunos, amigos, discípulos, artistas e ex-discípulos, muitos o procuram em algum ponto de alguma pesquisa ou dúvida para clarear o caminho.

Ian Guest é o nome do discreto professor, mestre reconhecido, cidadão mineiro por escolha, professor da Bituca – Universidade de Música Popular, em Barbacena (seu curso tem 170 alunos, escolhidos entre 1.800 inscritos). Quem o vê ali, tranquilo, estendendo roupa no varal, não imagina o que ele já viveu.

Sua família chegou ao Rio de Janeiro em 1956, fugindo da revolução na Hungria, um levante popular que, partindo do movimento estudantil, se insurgiu contra o controle da antiga União Soviética. Naquele ano, 200 mil húngaros viraram refugiados em alguma parte do mundo, e a parte que János Geszti (seu nome de batismo) escolheu foi justamente aquele trecho da Rua Duvivier, em Copacabana, que compreendia o Little Club e o Bottles Bar, o lendário Beco das Garrafas, onde se iniciava uma pétrea revolução: a bossa nova. Amadores da música, de bom gosto, se reuniam ali. Me tornei amigo de Luiz Carlos Vinhas, Luizinho Eça, Rubens Bassini, Sergio Mendes. Tive até carteirinha do Clube Jazz e Bossa, conta Guest. Eu tocava piano, tinha estudado música erudita, mas tinha vergonha de tocar qualquer coisa porque Tom Jobim tocava piano, me sentia humilhado tocando perto dele, lembra o professor, que, mesmo escondendo o ouro, ainda se tornaria co-autor de duas músicas de Vinicius de Moraes (Tempo de Solidão e Pergunte a Você), entre parcerias com outros luminares daquele grupo.

Um conterrâneo de Guest, Zoltán Merky, que trabalhava como engenheiro de som na Odeon, arrumou para o garoto Ian uma ocupação além da boêmia, um trabalho de técnico de estúdio na companhia de discos, o primeiro trabalho com carteira assinada, bem-remunerado. Guest trabalhava com equalização, compressão e importação de discos. A partir daí, ele entrou para a história da música brasileira. Durante o período áureo da jovem guarda, por exemplo, o jovem Ian, a contragosto, ajudava a gravar discos que se destinavam a alimentar o mercado. “Eu odiava o rocknroll. Era um gênero periférico, como chamavam na academia, a cada dois anos mudava, sumia, entrava outro”, lembra. “Mas a porra do rock’n’roll não mudou, tá aí até hoje. E eu detestava, discriminava. Para mim, refletia a caretice, era um som quadrado. Depois melhorou um pouquinho, com os baianos, a música tropicalista.”

Mas ele compunha cotidianamente, e, embora técnico de estúdio, todos sabiam que ele era um músico de mão cheia. Muitos recorreram a suas composições, como Trio Esperança, Trio Ternura, Lafayette e seu Conjunto. “E eu morria de vergonha porque eles sempre escolhiam as piores músicas para gravar. Então, mudei de nome, passei a assinar apenas como Átila”. Todo Meu Amor Você Levou, de Renato e Seus Blue Caps, é composição de Átila. Se Por Acaso Te Encontrar, sucesso de Márcio Greyck, de 1971, é composição de Átila. 

Progressivamente, o trabalho começou a fazê-lo mudar de opinião sobre a música brasileira. Filho de um pianista de grande reputação na Hungria, George Geszti (que costumava enfiar lotes de lápis e borrachas dentro do piano para obter certo efeito de som), ele tinha o nariz empinado, mas foi perdendo a pose. “O Brasil me catequizou”, diz Ian. “Na Hungria, era profundamente desprezada, para nós da elite da música, e na Europa em geral, a música popular. Desprezada profundamente, eu odiava também. Mas quando cheguei ao Brasil, fiquei de queixo caído ao ver como as pessoas humildes não sabem como fazem e o que fazem, mas fazem, e lá na Hungria a pessoa sabia o que fazia, sabia como fazia, mas não fazia.”

Um dos encontros que ajudou na “catequização” de Guest foi com Milton Nascimento. Ian tinha 20 anos e Milton foi ao Rio de Janeiro com um coral de Ouro Preto fazer um disco daquele coral na gravadora Odeon. Alguns, como o pianista, compositor e arranjador Ubirajara Cabral, já tinham total consciência da qualidade do garoto Milton, mas Milton estava ali como agregado. “Ninguém o conhecia ainda, foi antes do Clube da Esquina. O Milton Miranda, diretor artístico da Odeon, perguntou ao Milton se queria fazer um teste para gravar um compacto simples. E eu, como técnico de som, fui encarregado de gravar”.

No intervalo da gravação, Milton pegou no violão e Ian Guest foi ao piano, para experimentar. Ficaram ali tocando e improvisando. “E eu fiquei impressionado com a qualidade como ele tocava e cantava. Aí eu perguntava: ‘O que é isso que você fez?’. Ele não sabia dizer. É isso: o Brasil faz, mesmo sem saber. E Milton tem aquela humildade, só fala quando é perguntado, diferente do carioca que só fala e não quer ouvir ninguém. O Milton já era muito fechado em si mesmo, mas muito aberto e descontraído com aquilo que sabia fazer. Tenho muito contato com ele até hoje”, afirma Ian Guest.

Aí, prossegue, um dia apareceu Milton Banana, o famoso baterista, com seu Milton Banana Trio. Ia gravar, mas faltava uma música no disco e ele perguntou a Guest, que sabia que tinha composições: “Você não tem uma pra gente gravar?”. E Guest: “Eu tenho uma boa”. Mostrou e Milton Banana adorou, resolveu gravar. “Mas como é o nome da música?”, perguntou. Ian Guest foi até a secretária da gravadora, Maria Helena, e perguntou: “Maria Helena, você não tem uma ideia de um nome pra essa música?”. Ela deu de ombros: “Não sei, ora bolas!” Aí virou Ora Bolas. É a penúltima música do disco Balançando com Milton Banana Trio (Odeon, 1966). Lá, a canção está creditada a Ian Guest, e não a Átila.

O trabalho em estúdio evoluiu e logo Ian iria ser contratado pela gravadora CBS como coordenador do departamento nacional. Era o chefe dos outros produtores do estúdio, e foi assim que conheceu um baiano arretado que se tornou seu amigo inseparável: Raul Seixas. 

Raulzito acabava de chegar de Salvador após o fracasso do disco Raulzito e Os Panteras (1968). De volta ao Rio para trabalhar na CBS como produtor, Raul se tornou amigo de Ian. Foi Ian que entrou com Raulzito no estúdio para produzir um disco lendário da MPB, Sociedade da Grã-Ordem Kavernista (CBS, 1971), com Miriam Batucada, Edy Star e Sergio Sampaio – contratado pela gravadora por Ian Guest. O disco termina com o som de uma descarga de privada, e foi Ian quem colocou o microfone dentro do vaso sanitário, a pedido de Raul Seixas.

Seu trajeto passou a cruzar a linha evolutiva da MPB. “Fui eu quem colocou Angela Ro Ro na profissão de cantora, porque ela era atriz. Era tão bonita e cantava tão bem. Lembrava a Maysa, muito linda. O Sidney Magalhães também. Que é o Sidney Magal, fui eu que incentivei”, vai enumerando. Também participou das lutas e diatribes da música brasileira. “Quando tava adiantada a história da bossa nova, quando a bossa começou a fraquejar, queimar o cartucho, com letras cada vez mais complicadas, harmonias tomando conta da música, e não a melodia, aí surgiu um protesto chamado Música Nossa. Foi nos anos 1970, no Teatro Santa Rosa, que ficava entre Copacabana e Ipanema, e eu participei, eu e o Menescal, o Taiguara, Beth Carvalho, Walter Santos, Chiquinho de Morais.”

Ian Guest conta que foi demitido da gravadora por ter feito um “disco diferente”: Som, Sangue e Raça (1971), de Dom Salvador e Abolição. “Era uma coisa maravilhosa, de bom gosto”, explica. Em 1975, rumou para os Estados Unidos, para estudar música na Berklee College of Music, em Boston. Ao voltar, não quis mais enquadrar-se na produção de álbuns, sentiu que já estava esgotado aquele veio, e investiu na educação musical.

Já tinha cursado composição na UFRJ, ex-aluno de José Siqueira e Henrique Morelenbaum (“José Siqueira era importantíssimo nas relações com o partido na União Soviética. Ele me levou para a linguagem nacionalista brasileira, e Morelenbaum era o cosmopolita, diretor da Orquestra do Teatro Municipal”.

Guest então abriu sua própria escola num prédio histórico na Candelária. No auge, chegou a ter nove salas de aula. “Às terças, eu convidava os músicos que eu queria. Quem apareceu lá foi o Djavan. Lembro que combinamos a participação dele no trânsito, num engarrafamento. E Ney Matogrosso, Hermeto Pascoal, Cássia Eller: todo mundo se encontrava lá.”

Mas acabou o dinheiro. “Eu não sabia que vivia às custas da inflação, porque o dia em que acabou a inflação, duas semanas depois eu tive que abandonar o lugar correndo. Eu aplicava dinheiro duas vezes por dia.” Finalmente, descobriu que Minas Gerais era o lugar com que tinha sonhado a vida toda. “Eu pensava que o Rio de Janeiro era o Brasil”, diverte-se.

Lá em seu refúgio mineiro, Ian Guest tem controlado sossego e vive sem pressa. Durante cinco anos, o cineasta Marcello Nicolato seguiu Guest, indo com o músico até sua cidade natal na Hungria, filmando suas aulas, seu cotidiano. O resultado é o documentário, ainda inédito, O Imperfeccionista, produção da Macaca Filmes. Também já está para sair o primeiro disco autoral do músico, batizado como Aventura de Lápis e Borracha: Música Popular Camerística, 15 composições gravadas ao vivo durante um concerto (o título é uma homenagem ao pai). Enfrentando um processo de surdez progressiva, além de perda de memória recente (consequência de um acidente de lambreta quando tinha 19 anos, coisa que ele só descobriu muito recentemente), Guest dribla as dificuldades com bom humor e alegria. De olho num convite para a academia, ele diz, divertidamente, que está rondando a Universidade de São João del Rey “como o cachorro está rondando o açougueiro”. Corre lá um processo de reconhecimento honoris causa. Apesar de sua excelência, somente tal título pode permitir que lecione em universidades (atualmente não o deixam dar aulas em conservatório nem universidade, o que dificulta sua sobrevivência).

Detesta tecnologia. “Nunca aprendi a escrever música com computador, não me interessa nem um pouco. Também não aceito qualquer tipo de relacionamento online, nenhum tipo”, confidencia, manuseando um celular flip sem tela antigo.

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