Foto Jotabê Medeiros
O compositor, maestro, arranjador, professor e engenheiro de som Ian Guest em sua casa, em Minas Gerais

Um assunto intrigante. Cantar, batucar, dançar, festejar, cultuar, regozijar, lamentar acompanha o homem desde tempos imemoriais. No ritual da música, de natureza essencialmente participante e coletiva, o fluxo das melodias não cessa, passando por movimento e descanso.

Nos últimos séculos, a música sai do culto, passa de ritual a entretenimento. Surge o público pagante e o músico remunerado. Ouvir música pelo ingresso pago mas não participar, cobra criar um enredo, uma aventura de prender a atenção, emocionar e evitar sua evasão. A melodia fluirá, com movimentos e repousos, sobre o leito de uma nota central que a sustenta: o centro tonal, chamada tônica. A nota do repouso. O conjunto de notas da melodia pode ser organizado em ordem ascendente e se chama escala.

Na cultura ocidental, predomina a tonalidade maior, cuja escala começa e termina na nota dó (tônica): dó ré mi fá sol lá si dó – ao lado da tonalidade menor, começando e terminando na nota lá (tônica): lá si dó ré mi fá sol lá.
Outrora, a música era cantada e tocada numa altura confortável, não determinada. Até que, com o avanço de complexidade da prática musical, a afinação dos instrumentos precisou ser padronizada, para o conjunto instrumental e vocal não desafinar. Tonalidades convenientes, escolhidas em função da sonoridade e facilidade de execução. As escalas maior e menor então, passam a ser sujeitas a mudar de altura. Guardando as estruturas, aparecem as notas fixas alteradas, sustenidos e bemóis. Cantar a melodia solfejando e nomeando as notas reais, inclusive as alteradas (pronunciando “sustenido” ou “bemol”) é inviável. Sua prática deixa de criar um reflexo. Não passa de informação, é mero exercício de raciocínio e, no fim das contas, uma acrobacia cerebral. Esse tipo de solfejo deve ser descartado.

Por outro lado, nosso velho companheiro, o dó maior, já se tornou o nosso reflexo (é tão fácil solfejar em dó maior!). Podemos levá-lo a tira-colo para qualquer tom (qualquer altura). É o chamado dó móvel. Que alívio! Cantar sempre em dó maior (ou lá menor) e, em caso de mudar de tom (modular), levá-lo na garupa Mas muito cuidado. No discurso musical e na notação em pauta, somos obrigados a usar os nomes fixos, ou seja, no sistema absoluto. Assim, deparamos com a dualidade da nomenclatura dó-ré-mi no Brasil, em seu uso: no sistema absoluto e no relativo. Cantamos no relativo, e conversamos no absoluto. Entretanto, essa dualidade não nos incomoda: ela ocorre também nos idiomas.

Afirmar que o som da nota lá deve vibrar 40 vezes por segundo, seria tão absurdo como atribuir, a cada semínima, um segundo de duração! Ora, altura e duração são relacionadas com o contexto da música, e não com o gerador de som. Já o fabricante de instrumentos, ao contrário, produz nota por nota, cada uma com as respectivas vibrações determinadas e padronizadas. Mas veja só, quem lê a melodia ou solfeja, ignora a fonte de cada nota: embarca num tobogã e segue sua topografia: é subir-descer, respeitando o tempo e duração. A melodia não é feita de notas e sim, de movimento linear. Tudo isso é representado brilhantemente na pauta musical, onde a melodia é colocada na dimensão espacial, bem visível, a ser reproduzida pelo audível, já que o visual oferece uma assimilação mais imediata.

O compositor, educador e folclorista húngaro Zoltán Kodály (1882-1967) não foi um renovador no
processo da alfabetização musical, nem mesmo consentiu que o método se chamasse “Método Kodály”,
mas foi vencedor, num concurso mundial sobre métodos de musicalização e educação, usando a
ferramenta da voz, e destinado a todo cidadão. Apenas sugeriu voltar à prática milenar de cantar em dó maior, até mesmo confirmando a disposição das notas, tão bem visualizadas, no teclado. Ou seja, anotar a melodia no espaço e lê-la no tempo. Segundo ele, e confirmado pela tradição histórica, transformar o desenho gráfico da linha melódica em som, é intuitivo e surpreendentemente imediato, desde que se desenvolva o reflexo de dar nome às notas em dó maior. Mas atenção! Evitar o solfejo com nomes absolutos das notas; ele conduzirá ao desmantelamento do reflexo relativo já conquistado. Logo, os dois sistemas são mutuamente excludentes. Um é racional, o outro, visceral.

A utilização da nomenclatura dó-ré-mi nas línguas latinas, remetendo o som às respectivas frequências estabelecidas, é um sistema incompatível com a ferramenta da alfabetização musical. Na maioria dos países ocidentais, foi criado o sistema de nomenclatura A-B-C para o sistema fixo da notação, e dó-ré-mi no sistema móvel para a assimilação da leitura. Sentir a mobilidade da melodia, é sentir a relação de suas notas com a tônica. É o caminho não só à leitura, mas também à compreensão do fenômeno da música.

Professor Ian Guest. Tiradentes, março de 2020

 

IAN GUEST é compositor, pianista e educador. Parceiro de Raul Seixas e Vinicius de Morais em canções, foi o engenheiro de som que atuou na gravação do disco ‘Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10’, de Raul Seixas, Sergio Sampaio, Miriam Batucada e Edy Star, em 1971. Vive atualmente em Tiradentes (MG), onde leciona música. Este texto, inédito, foi cedido pelo autor para publicação no Farofafá
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