‘Abjeto-sujeito’ testa o limite da humanidade

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Cena de 'Abjeto-Sujeito', com Denise Stoklos
Cena de 'Abjeto-Sujeito', com Denise Stoklos - Foto Leekyung Kim

Quando Denise Stoklos sobe ao palco do Teatro do Sesc 24 de Maio, um sofisticado pacto se estabelecerá, em maior ou menor grau, entre plateia e artista. A linguagem será posta à prova, a identidade do humano questionada, e o limite da humanidade, um produto aparentemente em escassez, testado sem que o público seja minimamente alertado. O ser estará em questão, e três mulheres orquestrarão esse jogo: Clarice, Elis e a própria Denise.

Abjeto-sujeito: Clarice Lispector por Denise Stoklos é uma performance artística da atriz, dramaturga e escritora descendente de ucranianos. No palco, a artista nascida em Irati, no Paraná, interpreta textos da ucraniana Chaya Pinkhasivna Lispector, que no Brasil se tornou Clarice Lispector. Maior escritora judia desde Franz Kafka, nome internacional da literatura, a autora de Paixão Segundo G.H., Perto do Coração Selvagem e A Hora da Estrela é dona de uma escrita ímpar, considerada hermética por alguns, enigmática e desafiadora por outros. Em 2022, quando a Rússia massacra a Ucrânia numa guerra insana, a montagem ganha outras camadas de interpretação. Se em Extinção, que Denise levou aos palcos em 2018, a única saída possível era desautorizar tudo o que estava posto, estabelecido, em Abjeto-sujeito a palavra de ordem é defender, a todo custo, a liberdade do eu num mundo em frangalhos.

A peça tem direção de Elias Andreato e dramaturgismo de Welington Andrade. Denise Stoklos lê e interpreta diferentes textos de Clarice Lispector, e as duas são apoiadas por músicas míticas de Elis Regina, a primeira estrela da canção popular brasileira. Denise explica, logo na introdução, que um dia entrevistou Clarice. E Clarice, que também já foi jornalista, entrevistou Elis e lhe perguntou, de chofre, se a cantora não pudesse subir ao palco, o que ela faria? Vibrante e combativa, Denise dá vida às duas potências femininas ressignificando as suas obras, seja na leitura dos textos ou na performance, com direito a soberbas mímicas, das músicas interpretadas pela porto-alegrense Elis.

Denise desconstrói  a cena. Ela lê trechos inteiros de Clarice e admite que faz isso por estar com 71 anos. A aparente fragilidade logo se desfaz, porque a sua presença no palco é um chamado para que todos reflitam sobre questões filosóficas e humanísticas. A existência do ser, assim como o não-ser, é o mote para que a atriz abra espaço para que cada um da plateia se veja convidado a interpretar o que está sendo encenado, ou performado, à luz de sua própria existência.

Em Abjeto-sujeito, a escolha de textos não tão conhecidos de Clarice Lispector, como os contos O Ovo e a Galinha, O Búfalo e O Amor, soma inúmeros pontos. O primeiro é considerado pela própria Clarice como um misterioso texto que foi escrito para ser lido em um congresso de bruxaria. Em O Búfalo, o encontro da mulher com o seu “duplo” propõe a descoberta dos vários outros dentro de si. Já no último conto, a protagonista Ana se vê diante de uma situação em que lhe surge a oportunidade de viver outras vidas e aventuras, mas para isso teria de abandonar a sua estabilidade.

Não espere uma peça convencional, mas diante de um mundo que dá pouco valor à humanidade, que se sustenta em fragmentadas individualidades, Abjeto-sujeito é um convite a fugir do óbvio.

Abjeto-sujeito: Clarice Lispector por Denise Stoklos. Com Denise Stoklos.  No Sesc 24 de Maio, de quinta-feira a sábado, às 20 horas e domingos, às 18, até 3 de abril. Ingressos a 40 reais.
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