Marisa Monte durante sua mais recente turnêfoto de leo aversa

Tem 6 anos e outro dia cantou “Vilarejo” na cerimônia de formatura do infantil com um coro de amigos.

Desde então, Tito canta a canção dia sim, dia sim. Sabe a letra de cor e salteado e passou a gostar de ouvir no carro também o disco Memórias, Crônicas e Declarações de Amor, que reencontrei outro dia.

Quando foi anunciada triunfalmente a chegada do show de Marisa após uma década de pausa, pensamos na hora em levá-lo para ver em uma caravana familiar, mas nem sempre é possível ir todo mundo e começamos a votação para escolher a dupla vencedora. Mamãe e Tito ou Papai e Tito? Bento e Tito não dá, não tem como. Bom, agora não me lembro bem pq a opção Papai e Tito venceu…

No sábado, ele colocou uma jaqueta jeans que adora e abotoou em cima, perto do pescoço. Não deixou que a abrissem em nenhum momento. Pegou também o seu colar com uma garrafinha com um desenhinho de um VILAREJO inteiro dentro, cortesia da Ludmila. Tímido, pôs no bolso, não queria que ficassem olhando para sua joia.

Bom, pegamos o carro por volta das 20h30 do sábado e rumamos para a Barra Funda. Ele ia quietinho atrás, levou seu cobertor e travesseiro, e eu tava com medo que dormisse ANTES de chegarmos. Costuma dormir por essa hora, tem sido a regra da casa. Resolvi puxar conversa para evitar o pior. 

“Qual músico você gosta mais de ouvir tocando? O guitarrista, o baixista?”. Ele ficou em silêncio muito tempo pensando. Respondeu do jeito dele. “Pai, percebeu que tudo termina com ISTA? Pianista, guitarrista, baixista, baterista”. Eu emendei: “Saxofonista, trompetista, flautista. Vai ter todos os istas hoje na banda”, brinquei.

Logo ele ficou em silêncio de novo. “Você vai mesmo ficar acordado até “Vilarejo”? É a quinta música”, perguntei. Ele fez aquela longa pausa de jogador de sinuca. Demorou para responder, mas logo veio uma vozinha determinada: “Vou ficar até a quinta música depois de ‘Vilarejo’”, prometeu. Achei formidável a convicção.

Estacionamos num daqueles galpões fabris antigos e imensos na frente da funk parade do Memorial e caminhamos lado a lado com muita gente na estica na direção do Espaço das Américas – muito salto alto, muito paletó e muitos vestidos longos, parecia até que era show do Roberto Carlos. Mais de 3 mil eram aguardados, e tive a impressão que todos foram. Após entrarmos, fizemos a foto ao lado do banner de Marisa, andamos pelo saguão e nos encaminhamos para a mesa. Todo mundo era recepcionado com dois exemplares de máscaras KN95, e a moça explicou que era para o caso de perdermos a que trouxemos ou para substituir, se estivesse vencendo. 

Tito pediu água ao garçom, achou divertida a chegada da taça e o serviço de mesa. Marisa demorava um pouquinho para entrar, e ele, demonstrando um pouco da sua doce impaciência, saiu de sua cadeira e veio para o meu colo. Aninhou-se. Perguntei de novo: “Tá pensando em dormir? Se estiver, podemos ir para casa, ok?”. Ele: “Por que não podemos dar uma volta? É proibido?”. Saímos então em direção à primeira fileira para conhecer o palco, e ele pareceu despertar de novo com o vento dos ventiladores, a fumaça seca, o povo que o paparicava no gargarejo. Apontou um violão lá dentro que aparecia pela fresta da cortina aberta e me pediu para erguê-lo nos braços para o vento do ventilador soprar diretamente no seu rosto.

Encontramos a Bebel Prates na pista lateral às mesas e ela, que já sabia da minha história ali, me assoprou, carinhosamente: “’Vilarejo’ é a quinta música”.

22h20 e Marisa entra como se fosse uma imagem de Iemanjá que um barquinho trouxesse de volta para a praia, e o show finalmente começa. Eu o sacudi gentilmente no colo para que não se acomodasse demais. Ele não tirava a máscara de jeito nenhum, é muito mais rigoroso com os protocolos que os adultos.

Eu sempre olho para os músicos da banda antes de para o astro principal. Quando o Dadi está empunhando o contrabaixo do lado direito do palco, tenho a sensação de estar muito vivo, um tipo de conforto estranho. É como se, enquanto ele estiver nos palcos, houvesse uma garantia de que o testemunho de nossa saga musical também estará ainda em movimento. Reconheço depois Davi Moraes na guitarra, ele está mais parecido com o pai, e eu penso uma banalidade típica também da minha geração: como são bacanas essas mulheres que conseguem trabalhar na boa com os exs.

Liberado da tentação de escrever profissionalmente sobre o show, eu descobri quase aterrorizado que ainda não conseguira uma licença dos vícios da atividade. Enquanto estive ali, me peguei analisando o que, além da canção-tema “Portas”, autorizaria essa nova abordagem conceitual de Marisa. Não ouvi o disco novo até agora mas, evidentemente, a metáfora da pacificação, da tolerância, da aceitação da diversidade (tema do carro-chefe) era o que estava em tudo ali.

Há outras portas insieme, como diriam os italianos – até mesmo em “Vilarejo” (“portas e janelas ficam sempre abertas/ pra sorte entrar”). “Vilarejo” é de 2006, do disco Infinito Particular. Há a porta para a aceitação de si mesmo, chave virada pela quarta canção da noite, “Maria de Verdade”, de Carlinhos Brown (“tua pessoa Maria/ mesmo que doa, Maria”). Há a porta para a aceitação da própria vontade (“qualquer coisa que você quiser cantar/ sei lá, é só deixar”).

Chamei atenção dele para o vestido espelhado de Marisa Monte. Uma hora ele fica vermelho, outra hora fica azul, outra hora fica verde – depende da música e do calor dos metais. Essa façanha é possível por uma artimanha da iluminação, que joga um único holofote de cores diferentes sobre ela a cada nova música. O garoto começou a prestar atenção nisso e o rosto se iluminava quando a mágica acontecia.

Em seu oratório particular, um palco-caixa pulverizado por projeções em todas as paredes, Marisa surge como uma diva do sincretismo, uma Madonna com coroa de Botticelli em cena, uma Nossa Senhora high tech de trio elétrico, um orixá pós-tropicalista. Flauta, trompete e trombone têm o peso mais determinante no escoramento da voz, e isso é outro lance sedutor do show. 

Quando ela inicia “Vilarejo”, ele me olha com os olhos gigantes e eu vejo que, mesmo sabendo que ia rolar, Tito não acreditava naquilo. Ouve mais um pouco e me olha de novo, com um brilho nos olhos. Era mesmo dela essa música, parece dizer. E está viva.

Quando chegou a “Ainda Bem”, Tito deu aquela pescada e a cabecinha desabou, e eu segurei o rosto dele e disse: “Vambora?”. Ele apenas concordou com a cabeça. Colocamos a máscara, recolhemos os ingressos, perguntei se ele poderia ir caminhando. Ele disse que sim. Despediu-se dos amigos da mesa, seguimos até o saguão. Foi então que Marisa começou a cantar “Beija Eu”, e eu parei e fiquei assistindo de pé. Ele esperou do lado pacientemente. Quando a canção já terminava, puxou minha camisa. “Por que você parou?”. “É que eu gosto dessa”, eu disse. “Posso ouvir mais um pouco?” E o icei para os braços.

Tito é muito convicto em suas opiniões. Eu tinha perguntado a ele, após Marisa cantar “Quanto Tempo”, o que estava achando. “O som está muito alto”, ele disse, com olhar grave. Claro, é necessário que seja alto porque o lugar é grande demais, mas eu me lembro de Marisa em locais menores e o encantamento tinha sido ainda maior naqueles lugares, porque a excelência da voz dela não precisa de barricada. Mas todo mundo quer ver, é o paradoxo supremo da popularidade na música, e todos têm o direito. Quem sabe num próximo show?

A turnê de Marisa agora vai para os Estados Unidos, em março: Fort Lauderdale (4), Atlanta (6), chegando a Nova York (22) e Los Angeles (27). Antes, porém, passou intacta pela avaliação de um garoto de 6 anos, que amou o primeiro show de sua vida. E que sorte que foi logo esse.

 

 

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