“Nunca tenha medo do seu inimigo/ quando não é você que começa a brigar”, canta Baco Exu do Blues a certa altura de seu terceiro álbum cheio, QVVJFA – Quantas Vezes Você Já Foi Amado?, lado a lado com ua indagação-observação: “Por que me olha com ódio se eu sou tão lindo?/ ando tentando não ser agressivo”. O blues-rap se chama “Inimigos”, mas os versos iniciais foram escritos por Jorge Ben (Jor) e eram cantados pel’Os Originais do Samba em 1971, sob o título “Tenha Fé, Pois Amanhã um Lindo Dia Vai Nascer“.
Muitas águas turbulentas passaram por baixo da ponte desde que Mussum, à frente d’Os Originais e d’Os Trapalhões, era o modelo positivo possível de homem negro (engraçado, irreverente, simpático, cachaceiro), de acordo com a mídia dominante que ainda hoje tem o desplante de se afirmar não-racista contra todas as evidências. “Nenhum playboy se parece comigo/ nada de branco nesse preto rico/ seu amor veio tarde, agora não preciso/ nego romântico/ conquistando o mundo sem nem ter um visto/ atacaram meu povo primeiro, eu sou a resposta, seu novo inimigo”, declara o rapper baiano de 26 anos, desmentindo Jorge e Mussum com as próprias palavras deles, 50 anos mais tarde, e não raro ostentando um sorriso no rosto que Mussum não costumava ostentar quando cantava.
Desde o começo com Esú (2017), Baco Exu do Blues, codinome de Diogo Moncorvo, vem erguendo com esforço uma construção intelectual, de compreender melhor e afirmar as condições que representa – homem, preto, altivo, sensível, sensual. Mas o tempo atual é de extrema beligerância (pelas boas e pelas más razões) e, mesmo disposto a ressaltar os traços tidos como positivos, Baco não abre mão da posição de ataque, como deixa evidente a letra de “Inimigos”. A reciprocidade do ódio ele admitiu antes, no primeiro número do álbum, “Sinto Tanta Raiva…”, embora a letra não fale em sentir raiva, mas em ser alvo do ódio alheio (“pensei em desisti, mas me acostumei com o peso de ser odiado/ só porque venci querem que me sinta culpado”). Ele admitirá a matéria com que está lidando adiante, também, em “Imortais e Fatais 2”: “Minha cidade tem meu rosto, minha pele/ o ódio é o próprio espelho, é fictício”.
Em “Sinto Tanta Raiva…” “Inimigos” e mais alguns dos novos raps, o desejo de libertação do artista é travado pelo hábito que acomete dez entre dez celebridades pós-internet, de atribuir à inveja alheia todos os infortúnios que acompanham a montanha-russa da “fama” e do “sucesso”. Ele está num meio de caminho, oscilante entre perseguir a emancipação e ao mesmo tempo se auto-afirmar menos como homem que como menino.
QVVJFM navega entre os dois polos, ainda sem muito equilíbrio. Os raps de investigação do ódio se abrandam na languidez dos temas de amor e sexo, como “Dois Amores”, “Samba in Paris” ou “Lágrimas”, mas a tensão se restaura nos rasgos de machismo-romantismo refratário (traços de menino) do soul-rap “20 Ligações” ou de “Mulheres Grandes” (“mulheres grandes demais/ com desejos gigantes/ não servem pra ser amantes”). Felizmente, as dúvidas falam mais alto que as certezas (traços de homem), em passagens até dentro dos mesmos raps, como “relacionamentos são prisões, tô em condicional” (em “Dois Amores”), “cê sabe que te amo enquanto te fodo e te xingo/ (…) você não me quer, quer me mudar/ não sou o melhor, mas amo meu jeito de ser” (“20 Ligações”), “não acredito em mim, como acreditar em mim?” (“Mulheres Grandes”) ou no romance sexy encenado ao lado da trans-rapper Gloria Groove em “Samba in Paris”, ou em “Autoestima” (“ocupo dedos com anéis pra não puxar gatilhos”).
O ciclo de amor & ódio é abordado às últimas consequências, a cada nova faixa. “Se ama a minha cultura/ por que me odeia?”, pergunta Baco em “Imortais e Fatais 2”, virando a face do espelho na direção da ouvinte (e do não-ouvinte). “Prometi que eu ia ser rico/ um dia eu compro o mundo” (menino) e “eu sinto todo ódio em mim/ foda-se quem olhou torto para mim/ (…) nenhum de nós aqui vai morrer pobre” (homem), confessa-se às “4 da Manhã em Salvador”.
Entre as habituais citações a Kanye West e outras estrelas-celebridades dos Estados Unidos, Baco parte mais intensamente rumo à música brasileira, também uma forma de reconciliação com o espelho. Acontece em “Lágrimas”, que sampleia a voz de Gal Costa na lírica “Lágrimas Negras” (1974), de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, dando sentido adicional à cor das lágrimas, além de lembrar que “Cássia (Eller), eu sou poeta, mas não aprendi a amar”. “Amor, o mundo sempre foi tão cruel comigo/ pra mim é tão difícil ter que confiar/ eu tenho medo, eu tenho medo/ não conte pra ninguém, é o meu segredo”, abre-se o homem sensível e desarmado, cavando pântanos que nessa idade Mano Brown não teve como frequentar.
Em continuação ao “me ame, mas se ame primeiro” e ao “se ache linda, se ache lindo” de “Imortais e Fatais” (2017), “Imortais e Fatais 2” sampleia a voz de Vinicius de Moraes no afro-samba “Tempo de Amor” (1966), dele com Baden Powell. O amor romântico de Vinicius (“ah, bem melhor seria poder viver em paz/ sem ter que sofrer”) mistura-se ao ódio marca registrada dos anos 2000 neofascistas de Baco (“vivemos do ódio, não ligamos mais pra nada/ morte aos inimigos, nossa alma tá lavada”). A conclusão dessa faixa (e de QVVJFA como um todo), que vale para o amor ou para ódio, é do rapaz que está caminhando, mas ainda não encontrou um rumo seguro: “Quem vive na margem não se afoga nessa água”. Mergulhado ele já está, como provam as lágrimas negras caem, saem, doem – ainda e sempre com medo, mas com menos medo do que antes.
QVVJFA – Quantas Vezes Você Já Foi Amado? De Baco Exu do Blues. 999.