O Museu do Ipiranga reabrirá suas portas este ano, após nove anos fechado, como parte crucial das comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil, no dia 7 de setembro. É inequivocamente a maior obra pública da área cultural das últimas décadas, reformado e revitalizado a um custo estimado de 210 milhões de reais. A condução dessa obra foi do governo do estado de São Paulo, via Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (Fusp), mas o grosso dos recursos (R$ 160 milhões) são incentivados pela legislação federal (via Lei Rouanet, de renúncia fiscal). No ano passado, em um confronto inédito em tempos republicanos, o governo federal obrigou o governo do estado de São Paulo a retirar o logotipo de realizador da obra do material de divulgação da obra, alegando usurpação da sua condição. Agora, a proximidade da inauguração e o vale-tudo eleitoral levantam a possibilidade de um novo e encardido arranca-rabo.

“Novo Museu do Ipiranga será entregue em setembro de 2022 pelo governo federal”, alardeia em seu site a Secretaria Especial de Cultura do governo Bolsonaro, encabeçada por Mario Frias, cuja maior “obra” para a posteridade parece que terá sido, ao final e ao cabo, o espectral projeto Casinha Games, para o qual ele “reservou” R$ 4,6 milhões do Fundo Nacional de Cultura e que, após revelado por FAROFAFÁ, levou um oportuno chá de sumiço. Por sua vez, o governo paulista (cujo desmonte na área cultural já atingiu até a Imprensa Oficial, que teve seu parque gráfico fechado e demitiu centenas) também prepara uma grande festa para inaugurar o edifício-monumento, a joia do Bicentenário, e criou até um relógio de contagem regressiva para marcar as celebrações.

A batalha do Ipiranga, que vai revelando novos lances a cada mês, levou Sérgio Sá Leitão, o autoritário secretário de Cultura e Economia da Cultura de São Paulo (que foi ministro da Cultura de Michel Temer e ameaçou agredir um vereador em evento no interior de São Paulo), a chamar o colega da cultura federal de… “autoritário” e “golpista”. Em uma entrevista recente, Leitão deitou o verbo em cima de Frias, que considerou pior ainda que seu antecessor no cargo, Roberto Alvim (afastado por ter citado o nazista Joseph Goebbels num discurso).

Para Leitão, Mario Frias e seu secretário de Fomento à Cultura, o PM negacionista André Porciuncula, destroçaram a Lei Rouanet. “De maneira que hoje, por exemplo, quase todas as instituições culturais brasileiras que realizam trabalho em caráter permanente, por exemplo, museus, corpos artísticos, não têm planos anuais aprovados na Lei Rouanet”, afirmou. “Eles vão fechar. Não é o caso aqui de São Paulo. Vamos lá… São Paulo tem uma vitalidade, uma potência, tanto pelo estado quanto pela iniciativa privada. (Mas) Não precisa ir longe, não. Vai lá no Rio. O Museu do Amanhã só tem Lei Rouanet. Não tem para 2023. O Museu de Arte do Rio não tem Lei Rouanet para 2022. Isso significa que dia 1º de janeiro vão fechar”, analisou Leitão.

“Qual é o governo conservador do mundo que quer fechar museus? Existe coisa mas conservadora do que o museu?”, ironizou o secretário de São Paulo. “Esse cara aí, o Mário Frias, ele quer destruir tudo!”.

Para o governo de Jair Bolsonaro, apropriar-se da criteriosa, cuidadosa e monumental reforma do museu paulista é uma das raras chances de tentar mostrar alguma ação no setor cultural em ano eleitoral. Não há nada, nenhum projeto efetivamente tocado pelo governo federal nesse setor. Como toda obra impulsionada pela Lei Rouanet, o Museu do Ipiranga só saiu do chão porque houve aporte de recursos da iniciativa privada e um planejamento de gestão fundamentais. Nada disso tem a mão de Frias.

O Museu do Ipiranga é o museu público mais antigo de São Paulo e um dos mais antigos do país. Tombado pelo patrimônio histórico municipal, estadual e federal, foi construído entre 1885 e 1890 e está situado dentro do complexo do Parque Independência. Concebido originalmente como um monumento à Independência, tornou-se em 1895 a sede do Museu do Estado, criado dois anos antes. Desde 1963, funciona sob a administração da USP, com funções de ensino, pesquisa e extensão.

Sua reforma e ampliação envolveu uma ousada concepção de acessibilidade, informou a USP, conceito que começa no novo saguão de entrada, adaptado para todos os públicos (pessoas com deficiência visual, motora, auditiva e intelectual). O prédio foi dotado de elevadores especiais, salas com planta tátil das exposições, telas táteis e pranchas visu-táteis, exibições multimídia com legendas, audiodescrição e tradução em libras, podo-táteis em todo o percurso expositivo, obras com tratamento multissensorial e material de apoio e educativo. São cuidados que estão em polos diametralmente opostos da atual gestão cultural do governo federal, cuja maior audácia está em posar com armas nas redes sociais.

“Mais do que dispor de equipamentos que facilitem a participação do público nas instalações do museu, a direção da instituição focou, desde o início do projeto, em dar condições mais amplas de exploração do acervo com cerca de 3,5 mil obras nas 49 salas. Para isso, 379 peças terão tratamento multissensorial de apreciação, que poderão ser tocadas, ganharão texturas, serão descritas em linguagem simplificada, com legendas e libras (língua brasileira de sinais) e terão exibições multimídia. Até mesmo o olfato será estimulado em alguns dos trabalhos. O processo ainda se completará na programação educativa a ser oferecida na reabertura, com uma gama variada de ações e estratégias de mediação que serão propostas de forma a contemplar distintos perfis de público”, informa o material de divulgação da USP.

No Salão Nobre, que tem 182 metros quadrados e mais de dez metros de pé-direito, pontifica a famosa tela do paraibano Pedro Américo, Independência ou Morte (óleo sobre tela de 415 por 760 cm, de 1888). Portento da arte acadêmica, trata do ato em que foi anunciada a ruptura política com Portugal. Por meio de um programa de fomento artístico do Bank of America, dos Estados Unidos, o Museu do Ipiranga restaurou nove quadros que ornamentam o Salão Nobre. São telas do pintor brasileiro Oscar Pereira da Silva e do italiano Domenico Failutti, cuja feitura foi encomendada por Afonso d’Escragnolle Taunay em 1922. As pinturas retratam episódios políticos que antecederam a declaração de Independência e personagens cruciais dos acontecimentos, como o imperador Pedro I de Bragança, Leopoldina de Habsburg-Lorenz, primeira imperatriz do Brasil e a combatente Maria Quitéria de Jesus, além de políticos e cenas icônicas. Está em curso também a produção de um livro com os bastidores do restauro e a história das obras.

“O Museu do Ipiranga tem uma grande quantidade de obras que precisariam ser restauradas para a reabertura das exposições em 2022 (são 43 no total), com um custo total aproximado de R$ 1,3 milhão. No entanto, a sua concretização dependia efetivamente de verbas para a sua realização”, declarou Rosaria Ono, diretora da instituição.

Também está em recuperação o Jardim Francês, localizado em frente ao museu e inaugurado em 1895. Foi projetado pelo paisagista francês de origem belga Arsenius Puttemans e inaugurado em 1909. Além de toda a área construída e do paisagismo, haverá a instalação de um restaurante, infraestrutura para food bikes, restauro e modernização da iluminação pública, requalificação das vias de acesso e a reativação da fonte central. O governo de São Paulo informou que investiu R$ 19 milhões nas obras de restauro e requalificação do Jardim Francês, o que inclui a reativação da fonte central, composta por 19 tanques interligados que formam um efeito cascata e deságuam no tanque principal, totalizando um volume aproximado de 1,5 milhão de litros de água. A fonte será equipada com projetores LED e bicos especiais para os efeitos de luz e água. Na parte da iluminação, serão preservados, recuperados e padronizados os pontos de luz originais, com substituição da infraestrutura para luminárias led de baixo consumo. Na parte botânica, foi realizado um trabalho de pesquisa iconográfica, já que não existem registros do projeto original. Buscou-se um equilíbrio entre a identificação do patrimônio vegetal existente, com a supressão de plantas que nasceram espontaneamente e que não dialogavam com o paisagismo, bem como um plano diretor de identificação e substituição de plantas no ciclo final de vida e o plantio de indivíduos que se encontram ausentes, para a preservação da simetria do jardim.

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