Os anos de chumbo são hoje, na escrita de Chico Buarque

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Chico Buarque
Chico Buarque em fevereiro de 2021 - reprodução Rede Brasil Atual

Com o trunfo da despretensão de um apanhado de contos curtos num livro curto, Chico Buarque apresenta Anos de Chumbo e Outros Contos, com oito historietas empacotadas em 166 páginas de formato menor que o habitual. A obra é pequena, mas contém um bocado de coisa em seu interior. O início, com “Meu Tio”, prepara para um acerto de contas com diversos fantasmas do Brasil, na história de um tio e sua sobrinha (essa, a narradora) numa praia carioca. Aparentemente banal, “Meu Tio” dá conta da tragédia brasileira e dos anos brutos que vivemos no presente, mais ainda que no passado.

As expectativas se invertem no segundo conto, o cômico “O Passaporte”, narrativa em primeira pessoa de um “grande artista” que passa apuros no aeroporto rumo a Paris, ao ter seu passaporte saqueado e jogado no lixo por um anti-fã. É puro suco da vida trôpega de um ídolo que tem de se acostumar à barbárie instalada no pós-internet, com pinceladas mais fortes em meio à comédia. “O passaporte não estava no cubículo, e sem saber o que fazer, o grande artista se olhou no espelho bem no momento em que estava envelhecendo. Pensou na humilhação de depender de um acompanhante nas próximas viagens, por incapaz de cuidar de seus papéis e se arranjar sozinho”, escreve Chico, refletindo sobre o envelhecimento à beira dos 80 anos, mas não somente sobre isso. “Ele às vezes suspeitava que se deixar amar por desconhecidos é uma forma de corrupção passiva”, revelam-se os sentimentos de culpa por trás do mito. O “grande artista” compara a canalhice do não-fã que o odeia à sua própria canalhice, reconhece a “raiva fermentada” que também o acomete, até mesmo extravasa essa raiva. Não é dos anos de chumbo de ditaduras passadas que ele está falando, mas sim dos anos de chumbo de hoje mesmo.

“O que não falta é gente com instinto de polícia”, reconhece adiante, em “Os Primos de Campos”, mais uma trama familiar algo rodriguiana, que fala recordações de adolescência entre primos como se elas acontecessem agora e não anos atrás. Os personagens se desnudam aos poucos: “O que de fato me surpreendia num primeiro momento, sempre que eles chegavam para as férias, era vê-los um pouco mais morenos do que eu os recordava. Com os dias, porém, eles como que iam clareando”. A temática racial se impõe, a namorada do narrador ensina que o certo a dizer não é “mulatos”, mas sim “afrodescendentes” – também estamos em sintonia mais com o presente que com o pretérito. Não deixa de soar com um branco tentando adivinhar sentimentos que só pretos conhecem, algo comparável ao que acontece em “Cida”, em que um homem do Leblon acompanha momentos cotidianos de uma mulher grávida em situação de rua.

De modo geral, a atmosfera de sonho, delírio e pesadelo dos romances buarquianos cede, nos contos, à mais crua e espessa realidade. Mas ela retorna no quinto conto, “Copacabana”, por onde um garoto de 16 anos vaga em encontros e desencontros com Pablo NerudaJorge Luis BorgesAva GardnerRoy Schneider, João GilbertoJohn HustonWalt Disney e outras celebridades do século passado. A realidade se impõe, no entanto, nas participações especiais: Adolf HitlerAugusto Pinochet e o general Etchegoyen também vagueiam, em Copacabana ou bem longe dela.

O envolvente “Para Clarice Lispector, com Candura”, se auto-explica pelo título. Aqui, o narrador é um jovem de 19 anos, filho de uma professora de pintura da escritora, que se vê frente a frente com Clarice, na casa dela. Em 1968, quando Chico tinha 23 anos, Clarice (aos 47) escreveu para ele em uma crônica: “Além de ser altamente gostável, você tem a coisa mais preciosa que existe: candura. Meus filhos têm. E eu, apesar de não parecer, tenho candura dentro de mim. Escondo-a porque ela foi ferida. Peço a Deus que a sua candura nunca seja ferida e que se mantenha para sempre”. Sim, há candura em Anos de Chumbo, mesmo que embrenhados em densa cerração.

“O Sítio” gira em torno dos não-acontecimentos na vida de um casal recém-formado que parte para um sítio para fugir de uma pandemia, “pensei que fôssemos ficar com o sítio por quatro ou cinco semanas no máximo, pois tudo indicava que a peste estaria sob controle ainda naquele outono”. O casal vai ficando, talvez ao ritmo mesmo da “peste” – cujo nome só é citado uma vez, de forma corriqueira, no primeiro conto, na aparição de um vendedor que usa “a máscara da covid”.

O conto que dá título ao livro encerra Anos de Chumbo, mais uma vez invertendo expectativas. A ambiência fica entre o sonho e a troça, enquanto o narrador menino brinca de fazer guerra embaixo da cama. “Eram uns bonecos do Exército brasileiro, muito mequetrefes”, afirma o menino narrador, numa frase que condensa em si tudo que há para ser dito sobre aquela instituição. De novo uma tragédia familiar carioca que faz pensar à distância em Nelson Rodrigues, é o único conto que trata efetivamente dos anos de chumbo que Chico Buarque experimentou em sua juventude. Mas os rumos tomados pelo menino de “Anos de Chumbo” desperta emoções bastante presentes, que gostaríamos de desafogar hoje mesmo.

"Anos de Chumbo e Outros Contos" (2021), de Chico Buarque

Anos de Chumbo e Outro ContosDe Chico Buarque. Companhia das Letras, 168 pág.,

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