Até o advento do álbum Chega de Saudade, de João Gilberto, em 1959, o nicho dos discos brasileiros de longa duração foi dominado por artistas veteranos que não sabiam exatamente o que fazer com o novo formato instalado aos poucos a partir do início daquela década. Foi um período de LPs inaugurais de artistas oriundos da era do rádio, que não teriam mais voo longo no futuro, como Ademilde Fonseca, Ataulfo Alves, Carmélia Alves, Conjunto Farroupilha, Dalva de Oliveira, Dircinha Baptista, Emilinha Borba, Heitor dos Prazeres, Isaura Garcia, Ismael Silva, Leny Eversong, Lupicinio Rodrigues, Marília Baptista, Marlene, Nora Ney, Orlando Silva, Palmeira e Biá, Silvio Caldas etc.
Os que souberam se adaptar melhor à mudança de ventos conseguiram sobrevida mais ou menos bem-sucedida na era dos LPs, como vários dos comentados em Álbum 1: Aracy de Almeida (até 1966), Dorival Caymmi, Os Cariocas, Cascatinha e Inhana, Demônios da Garoa, Elizeth Cardoso, Inezita Barroso, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Roberto Silva, e mais os infelizmente ausentes Agostinho dos Santos, Altamiro Carrilho, Angela Maria, Cauby Peixoto, Dick Farney, Doris Monteiro, Lúcio Alves, Marinês e Sua Gente, Moreira da Silva, Nelson Gonçalves, Teixeirinha, Tito Madi, Tonico e Tinoco, Trio Irakitan, Zé Fortuna e Pitangueira…
Caso curiosíssimo dessa fase intermediária (também deixado à margem em Álbum 1), é o de um cantor efêmero que adotava o árido nome artístico de Volta Seca. Ele lançou, em 1957, o LP temático de 10 polegadas Canções de Lampeão (sic). Tratava-se de uma seleta de canções sertanejas próximas do mundo do cangaço, e não era para menos. Cantando e tocando (sob direção do maestro pernambucano Guio de Moraes) sob as normas celebrizadas em meados dos anos 1940 por Luiz Gonzaga, o sergipano Volta Seca era nada mais, nada menos que um cangaceiro sobrevivente do bando de Lampião. Havia ficado duas décadas na prisão, entre uma e outra fuga – um Robin Hood dos morros (ou melhor, da caatinga), rei da malandragem, provavelmente um Dexter se vivesse à época do hip-hop.
Volta seca era tido como o cangaceiro mais jovem do bando de Lampião e Maria Bonita e teria sido incorporado ao grupo aos 10 ou 11 anos de idade. Preso aos 14 anos, em 1932 (quando, segundo consta, já havia deixado o bando) e indultado pelo presidente Getúlio Vargas em 1952, Volta Seca constituiu família, trabalhou em diversas profissões, gravou disco, ficou midiático e sobreviveu até 1997.
Na contracapa do disco, é atribuída ao próprio Volta Seca a autoria das oito canções que ele contava serem populares nas horas de lazer e/ou de combate dos cangaceiros de Lampião. Entre elas estão duas cantigas hoje fixadas no imaginário popular brasileiro: “Acorda Maria Bonita” (“acorda, Maria Bonita/ levanta, vai fazer o café/ que o dia já está raiando e a polícia já está em pé”) e “Mulher Rendeira” (ainda sem os versos “tu me ensina a fazer renda/ que eu te ensino a namorar”). Essa última era gravada por diversos intérpretes desde pelo menos 1937, como tema “tradicional” ou de “domínio público”, ou atribuída, em regravações posteriores, ao paraibano Zé do Norte, que a retomou em 1953 para ser incluída na trilha sonora do filme O Cangaceiro, de Lima Barreto. Há quem atribua a Lampião em pessoa a autoria de “Mulher Rendeira”.
Baião, xote e xaxado dominam as Cantigas de Lampeão, com momentos poéticos como “A Laranjeira” e matreiros como “Sabino e Lampeão” (que chacoteava o chefe com versos como “Lampião diz que é valente/ é mentira, é corredor/ correu da mata escura que a poeira levantou”) ou “Ia pra Missa” (“ia pra missa, ia chorando/ e a polícia vinha atrás me acalentando/ mas deixa disto, deixa de brincadeira/ mas a policia vem tomar uma carreira”). Ir à missa, segundo o jargão entre os cangaceiros, significava partir para a peleja pela caatinga. O LP intercala as cantigas com locuções de Paulo Roberto, da Rádio Nacional, que romanceiam a história do Volta Seca sem acrescentar grandes informações sobre ele ou sobre o grupo liderado por Virgulino Ferreira. O protagonismo do forró não resistiria à chegada simultânea da mãe e do pai do rock – Celly Campello e João Gilberto -, na virada dos anos 1950. Bossa nova, rock, LP, jovem guarda, televisão, festival e Brasília definiriam o futuro próximo da indústria fonográfica nacional.
Volta Seca, Cantigas de Lampeão, Todamérica, 1957
1. “Acorda Maria Bonita” (Volta Seca)
2. “A Laranjeira” (Volta Seca)
3. “Ia pra Missa” (Volta Seca)
4. “Mulher Rendeira” (Volta Seca)
5. “Se Eu Soubesse” (Volta Seca)
6. “Sabino e Lampeão” (Volta Seca)
7. “Escuta Donzela” (Volta Seca)
8. “Eu Não Pensei Tão Criança” (Volta Seca)