O ex-secretário de Cultura de Bolsonaro, Helio Ferraz, posa com metralhadora nas redes sociais

“Você sabia que 78% da verba da Lei Rouanet ficava concentrada nas mãos de 10% das grandes empresas?”, escreveu o secretário de Fomento e Incentivo à Cultura da Secretaria Especial de Cultura do governo federal, André Porciuncula. A conclusão do secretário pode até parecer sagaz e inédita para recém-chegados, mas é tão velha quanto a própria Lei Rouanet, que completa 30 anos este ano. O fato é que nada mudou nessa tendência. Os maiores usuários da Lei Rouanet em 2021 são, pela ordem: Petrobrás, Gerdau, BNDES, Banco John Deere, Siderúrgica V&M, Sabesp, Atacadão, CSN , Aymoré Financeira e Banco do Brasil. Somente os 20 maiores captadores de recursos movimentaram até este mês de outubro cerca de R$ 180 milhões, quase 40% de todo o valor captado no País (R$ 464 milhões).

Assim, a era Bolsonaro vai fechando o seu terceiro ano de gestão da Lei Rouanet mantendo intacto aquilo que aponta como vícios da legislação em gestões passadas. Um exemplo: a concentração regional. Num balanço parcial dos números de 2021, vemos que a destinação de recursos segue favorecendo a concentração regional de recursos no Sudeste (907 projetos e R$ 329 milhões de captação, ante 23 projetos na Região Norte e R$ 1 milhão de captação, por exemplo) e no Sul (319 projetos e R$ 100 milhões de captação; a região Sul abriga algumas das empresas que têm dado suporte financeiro ao bolsonarismo).

“O que tínhamos não era uma política pública cultural, era o enriquecimento de uma pequena elite, que monopolizava as verbas públicas da cultura”, escreveu Porciuncula. Tudo nessa declaração é mistificação: não se conhece caso de nenhum artista (artistas têm sido considerados inimigos preferenciais pelo governo) que tenha enriquecido com tais recursos. A lei estabelece limites de cachês por projeto para artistas solo (R$ 30 mil por artista e R$ 60 mil para grupos), o que torna impossível qualquer “mamata” pessoal. Valores maiores que esses têm que passar por aprovação da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), e direitos autorais têm limite de 10% do valor total do projeto. Houve raros casos de malversação de recursos por produtores, mas isso foi apontado pela própria fiscalização do governo e denunciado aos órgãos competentes.

No período de Bolsonaro, descontínuo e com viés unicamente punitivista, além da atrofia desse que é maior mecanismo de incentivo à cultura do País, talvez o destaque seja apenas uma dança das cadeiras de privilégios, porque a verdade é que o governo segue destacando os proponentes mais abastados – e alguns politicamente amistosos, como o Banco John Deere e a Riachuelo, que reverteram da renúncia fiscal para si mesmos, respectivamente, R$ 11 milhões e R$ 8 milhões para seus projetos somente este ano.

O grupo Riachuelo pertence ao empresário Flávio Rocha, um dos financiadores de Bolsonaro na sua campanha eleitoral e aliado de primeira hora. O governo aprovou a captação de 12 milhões de reais para o grupo de Rocha fazer a manutenção do plano anual de seu teatro (e já captou 5,1 milhões só este ano).

Outro aliado bem tratado é o agronegócio. O banco John Deere, ligado à multinacional norte-americana fabricante de tratores e outros equipamentos agrícolas, está construindo no Rio Grande do Sul a sede do seu Memorial da Evolução Agrícola. O valor da renúncia fiscal aprovada pelo governo para essa construção é de 30 milhões de reais.

Entre a rarefeita movimentação que a combalida Lei Rouanet experimenta nessa era de ideologização, maniqueísmo e comportamento antirrepublicano do bolsonarismo, destacam-se os investimentos das estatais brasileiras em cultura. Os bancos estatais lideram o cenário negativo. Segue um pequeno painel, parcial ainda, das inversões de recursos nesse período:

A Caixa Econômica Federal (CEF) tem operado uma retirada progressiva do cenário do incentivo fiscal – não utilizou nenhum centavo em 2021 (até agora), e apenas R$ 250 mil no ano passado.  O investimento do Banco do Brasil desabou: de R$ 33 milhões em 2020 para R$ 7 milhões até agora em 2021, assim como o BNDES, que baixou de R$ 45 milhões para R$ 12 milhões. O BNDES parece ser o único banco estatal que orienta de fato uma política de descentralização de recursos incentivados, tendo destinado R$ 1,8 milhão para a Região Nordeste.

A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT), que chegou a destinar R$ 12 milhões em 2012, na prática abandonou completamente o mecanismo de incentivo fiscal para a cultura – usou zero real em 2020 e zero real em 2021 (em 2019, tinha utilizado apenas R$ 66 mil).

A Eletrobrás investiu apenas R$ 2 milhões em 2020 e, até agora, R$ 4 milhões em 2021 (chegou a usar R$ 52 milhões em 2010). Toda a renúncia fiscal utilizada pela Eletrobrás neste ano foi para a Região Sul do País.

O ponto dissonante é a Petrobrás, cuja política destoa dos números gerais. A estatal  ensaia bater em 2021 um recorde de seus investimentos nos últimos 8 anos (usou R$ 23,5 milhões até agora, ante R$ 9 milhões em 2020). Desse total, R$ 21 milhões foram alocados em projetos na região Sudeste.

Mais que a conjuntura econômica, o problema principal que a Lei Rouanet enfrenta atualmente é a insegurança de gestão, que por sua vez provoca insegurança jurídica. O resultado é afugentar tanto produtores quanto incentivadores – e parece que isso é de fato o intuito dessa política de Estado. Usada como instrumento de casuísmo político e ideológico pelo secretário Mario Frias e seu voluntarista secretário Porciuncula, a Lei Rouanet experimenta uma desativação drástica de seus instrumentos de avaliação e habilitação. Em um único dia, segundo revelou o FAROFAFÁ com exclusividade, foram descredenciados 174 pareceristas do incentivo fiscal. Agressivos em sua relação com o Congresso e com a imprensa, os servidores da cultura no âmbito federal radicalizam cada vez mais seu discurso hostil, obscurantista e deslocado da realidade, ao mesmo tempo em que tratam com escárnio os mecanismos de participação e deliberação da sociedade.

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