O curta-metragem Dois Garotos Que Se Afastaram Demais do Sol, da Cia Os Crespos, é um soco no estômago da intolerância e da homofobia. O filme reconta a disputa pelo título mundial do boxe, que opôs os meio-médios Emile Griffith (Sidney Santiago Kuanza) e Benny Kid Paret (Rodrigo de Odé). Em 1962, eles subiram ao ringue para uma derradeira e trágica luta. Griffith, nascido nas Ilhas Virgens Americanas, era um bissexual assumido e, no dia anterior à luta, foi ofendido por Paret por conta de sua orientação sexual. No 12º round, Griffith partiu para o ataque, levando seu adversário às cordas e esmurrou-o sem piedade. Dez dias depois, o cubano morreu sem ter recuperado a consciência.
A corajosa produção audiovisual da Cia Os Crespos estreou dia 4 de outubro na 3ª Mostra de Cinema Negro Faz Lá o Café., em parceria com o Grupo Clariô de Teatro. A obra é baseada na peça 12º round, do jornalista e dramaturgo Sérgio Roveri. O personagem Emile Griffith se tornou um dos ícones da causa gay, mas aquela luta o marcou pelo resto de sua trajetória. O super campeão mundial, na vida real, só fez as pazes consigo mesmo 40 anos depois, quando encontrou Benny Jr., o filho de Kid, que o perdoou.
O filme-espetáculo, que substituiu uma montagem nos palcos e cujos ensaios foram suspensos em março de 2020, se vale de uma reflexão nada trivial, mas fundamental na abordagem dos corpos negros. Há um apagamento histórico deles, porque o espaço que se dá a eles é sempre marginal, diminuído, muitas vezes negando-lhes um lugar na sociedade. E tanto Emile quanto Kid, os dois garotos, se afastaram demais do Sol.
A súbita inversão de papéis que os dois personagens vivem evidencia como a masculinidade negra é invariavelmente posta à prova, como se não restasse outra arena que não seja um ringue mortal. Emile passa de vítima (da homofobia) a algoz (da violência) e o sentido inverso dessa equação ocorre com Kid. O debate sobre o racismo também se faz presente nesta nova obra d’Os Crespos, um coletivo composto por atores e atrizes negros e negras.
O curta-metragem propõe um perspicaz jogo cênico que aproveita o tempo de uma luta de boxe para contrapor o derradeiro confronto, marcados pelos rounds, com flashbacks da vida dos dois lutadores, que acontecem nos intervalos. Na edição de imagens, essa alternância entre cenas do passado e presente são favorecidas pelos enquadramentos cinematográficos, e pela opção de usar uma fotografia em preto e branco. Mas a junção entre a companhia teatral, o dramaturgo e a equipe de direção, compartilhada entre Lucelia Sergio e Cibele Appes, da Fuzuê Filmes, funcionou. Imagina-se que, num palco, essa construção teria de ser ainda mais criativa.