Criolo, Mundo Livre S/A, o osso e a medula

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1999
Criolo com os pais no clipe de "Cleane"
Criolo com os pais, Cleon e Maria, no clipe de "Cleane"

Professora de artes no bairro paulistano do Grajaú e mãe de um filho de 12 anos, Cleane Gomes virou estatística ao tornar-se aos 39 anos, em 5 de junho passado, mais uma das incontáveis vítimas fatais brasileiras da covid-19. Seu irmão mais velho, Kleber Cavalcante Gomes, de 46 anos, homenageia Cleane agora na forma de um rap furioso que ficará marcado como um dos retratos musicais do Brazil assassino de 2021. Kleber é o rapper Criolo, que divide “Cleane” com a dupla de produtores Tropkillaz, num som irado que remete aos primórdios musicais, ainda como Criolo Doido, na época do hoje longínquo CD de estreia Ainda Há Tempo (2006).

O clipe termina com a impactante imagem de Criolo de mãos dadas com os pais, o metalúrgico Cleon Gomes e a professora e filósofa Maria Vilani Cavalcante Gomes. A letra, reproduzida abaixo, flagra a revolta do rapper com as circunstâncias que lhe tiraram a irmã, mas vai além do microcosmo trágico. “Faz arminha, pretos morrendo/ monetiza com pretos morrendo/ dinheiro pra nós pra sair do veneno/ ninguém tá ligando pra pretos morrendo”, dirige-se Criolo a alguém não nominado, mas que todos sabemos quem é. “Um tiro na cara, um tiro na nuca,/ um tiro no amor, outro na cultura”, continua, demarcando que a guerra de extermínio é, também e sobretudo, cultural.

“Não é filme do Rambo, Brasil tá sangrando”, demarca Criolo, não à toa opondo os Estados Unidos de Rambo e o Brasil do indizível. “Eu tô puro ódio, revolta no pódio/ futuro rasgado, cês tão entendendo”, afirma quem já constatou que não existe amor em SP e tem certeza de que a sociedade brasileira está (estamos) completamente ciente(s) do genocídio em curso. A elite econômica também recebe seu quinhão de ira, aqui incluídos certamente muitos fãs de Criolo: “Favela é amor e só quer crescer/ você entra lá e só quer foder/ quem sustenta a boca é filho de rico/ que fornece o cheque pro chefe do chefe/ o chefe do chefe é o pai do filho/ é o pai, é o filho, família de rico/ que culpa o pobre que leva o castigo“. A sociedade minion arrasa o país, responsabiliza os mais pobres pelas mazelas e quem paga com a vida são as cleanes. A covid-19 é uma doença classista/racista, e é impossível ser mais nítido e transparente que Criolo em “Cleane”.

Cleane

Teu representante alimenta com feno
Viagem de esporo na dobra do tempo
Baryshnikova que que que que temo?
Talão zona azul de jazigo pequeno

Pilaco da morte, você é pequeno
Quimera de sal, olho seco e relento
Encosta, meu caro, aqui não é centro

Talão zona azul de jazigo pequeno
Fa-fa-faz arminha pre-pretos morrendo
Mo-mo-monetiza com pretos morrendo

Dinheiro pra nós pra sair do veneno
Ninguém tá ligando pra pretos morrendo
Esse sangue pisado não é açaí
Mataram inocente, granola e caqui

500 no pote, prepara o malote
Na praia da morte do grande vizir
Um tiro na cara, um tiro na nuca
Um tiro no amor, outro na cultura
Terror de fragata, radim de cintura
Caneta que assina o papel da estrutura
Se não é com você, que que tá acontecendo?

Sentado no muro, conforto, isento
Se orvalho é descaso, molharam sua bunda
Molharam sua bunda que tá aparecendo
Não é filme do Rambo, Brasil tá sangrando
Essa brisa não bate, bala de veneno
Não é filme do Rambo, Brasil tá sangrando
Essa brisa não bate, bala de veneno

Chambers
Você não disse que ia passar tudo, Chambers?
Ah, Chambers
Eu vou ter que desenhar pra você?
Chambers

Quem é de favela sempre isolamento
Dos sonhos que tenho distanciamento
Seu rosto, sua roupa, meu drip do centro
Já sei, copiaram meu drip no centro
O justo e pobre nessa terra morre

A mente brilhante de um ser cantante
Abraçar minha irmã já não tenho mais tempo
Sem ouro e sem prata, talento é fermento
Eu tô puro ódio, revolta no pódio
Futuro rasgado, cês tão entendendo

Carro rebaixado, o som tá no talo
Favela não vence, tamo no veneno
Cê não pode com procedê, a calça pesa então vamo vê
Favela é amor e só quer crescer
Você entra lá e só quer foder
Quem sustenta a boca é filho de rico

Que fornece o cheque pro chefe do chefe
O chefe do chefe é o pai do filho
Quirera é passado, moleque quer cash
Dancinha faz tik no tok do clinch
Lutar 12 round com asma e bronquite
Cês não tão sabendo, povo tá morrendo
É o chefe do chefe que lucra com a peste

É o pai é o filho, família de rico
Que culpa o pobre que leva o castigo
Cês paga de louco, nois é louco e pouco
Nas venta da morte por aquecimento
Visão de boçal, semente do mal
É Sonia lutando e parente morrendo

O Mundo Livre S/A em "Usura Emergencial" - foto Tiago Calazans
O Mundo Livre S/A veste uniformes do Sistema Único de Saúde (SUS) para lutar contra os vírus – foto Tiago Calazans

Noutro front, pernambucano e manguebeat, o status quo genocida não encontra refresco em “Usura Emergencial”, novo single e videoclipe da banda Mundo Livre S/A, de Fred 04, editado em nome de um selo loquazmente batizado Estelita. A extrema direita fascista encalhada em Brasília protagoniza o mangue-rock pesado desde o título em referência ao “auxílio emergencial” oferecido aos deserdados do coronavírus, atualmente na faixa rasteira de 150 a 375 reais mensais.

Os pontos de vista minion e antifascista se confrontam em versos como “‘vai pra China!’/ Wall Street gera desnutrição/ anticorpo é carne e feijão/ farta usura emergencial/ contamina”. Sobre imagens antigas de frenesi de bolsas de valores estadunidenses, o refrão é de meias palavras, para maus e bons entendedores: “Geno geno geno geno geno geno geno eugenia/ hidróxi hidróxi hidróxi hidróxi cloro megaincorporação”. A metáfora futebolística frequenta campos estranhos ao idílio setentista do ídolo Jorge Ben, e o “geno” é rebatizado como “futecida”. Os integrantes da banda tocam mascarados, e a capa do single é protagonizada pelo touro louco de Wall Street.

A safra é quente e, para os fãs mais entusiasmados, Criolo e Mundo Livre S/A dão uma dica preciosa a mais: para dizer tudo que se tem entalado na garganta não é preciso dar nomes aos bois (o que equivaleria – e equivale sempre – a propagandeá-los, mesmo que à base do “falem mal, mas falem de mim”). Descer do muro e sair do armário não é tão difícil, e os macacões do SUS vestidos pelo Mundo Livre S/A estão aí para provar. Como diria o velho poeta, alguém tem que exercer as funções de medula e de osso na geleia geral brasileira.

CleaneClipe e single de Criolo e Tropkillaz. Oloko Records.

"Usura Emergencial" (2021), do Mundo Livre S/A

Usura Emergencial. Mundo Livre S/A. Estelita/Deck.

 

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