Juçara explora os limites em “Delta Estácio Blues”

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Juçara Marçal lança "Delta Estácio Blues"
Juçara Marçal lança "Delta Estácio Blues" - foto Luan Cardoso

Juçara Marçal tem uma história musical que foi construída tijolo por tijolo, jamais de uma hora para outra. Delta Estácio Blues, que sai no próximo dia 30, é apenas o segundo disco solo da cantora e compositora de 59 anos nascida em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, e radicada desde cedo entre a cidade litorânea paulista de São Sebastião e a capital do estado. Seu trajeto musical, no entanto, data do início da década de 1990, quando integrou o quarteto feminino Vésper Vocal, que interpretava versões à capela de canções dos repertórios de Elis ReginaAdoniran BarbosaItamar Assumpção, Racionais MC’s e outros.

Com o grupo A Barca, a partir de 1997, ela empreendeu um mergulho de profundidade no reservatório musical tradicional colhido nas Missões de Pesquisa Folclórica de Mário de Andrade. Durante esse período inicial, no qual se formou em jornalismo e letras pela USP, levou a música como atividade paralela enquanto garantia a sobrevivência como professora de língua portuguesa e canto. Seus rumos musicais começaram a mudar a partir do encontro com o músico paulistano Kiko Dinucci, de quem hoje se considera quase uma irmã. Com Kiko, num primeiro momento, lançou o álbum Padê (2007), dominado pelos pontos de candomblé e pela tradição, mas já atirado a um início de pendor pelo experimentalismo e por tudo aquilo que nos acostumamos a chamar de vanguarda paulista.

O trio Metá Metá, constituído em 2011 com Kiko e com o saxofonista Thiago França, foi decisivo em lançar não só Juçara e o trio, mas todo um grupo de músicos de São Paulo ao encontro de uma musicalidade áspera, intrincada e descarnada, em nada rendida a gerar facilidades para o público ouvinte e, por isso mesmo, cheia de personalidade e identidade. Só depois dos dois primeiros discos do trio, Metá Metá (2011) e Metal Metal (2012), Juçara se aventurou a iniciar uma carreira solo, com o álbum Encarnado (2014), bordado em tons de morte que parecem ainda mais ajustados aos dias de 2021 que aos do ano de lançamento original. “Ciranda do Aborto” era apenas o título mais explicito de um trabalho que já investigava, na origem, o louco processo de suicídio que o Brasil começava então e não deixou até hoje de viver.

A artista define a guinada das experiências mais tradicionais com Vésper e A Barca para o radicalismo estético aprimorado pelo Metá Metá. “Gosto muito da possibilidade de ir experimentando os limites das coisas, tanto do ponto de vista do uso da voz quanto da sonoridade que se constrói para que essa voz se coloque. Isso me dá muito prazer, me movimenta e instiga muito”, afirma, por vídeo, de São Sebastião, onde se prepara para extensa turnê europeia a partir de outubro, acompanhando Kiko.

Foi só depois dessa fase de consolidação, em 2015, que Juçara abandonou de vez a carreira de professora pela de artista de música – e ocasionalmente de teatro, como na encenação negra da peça teatral Gota d’Água, de Chico Buarque, rebatizada provocativamente como Gota d’Água {Preta}. Nesse momento, ela já angariava prestígio como intérprete, em gravações como convidada seja de emepebistas de vanguarda como Luiz Tatit (“Quem Gostou de Mim”, 2010), Ná Ozzetti (“Musa da Música”, 2013) e Cacá Machado (“Valsa Lunar”, 2013, também com Arrigo Barnabé), seja de rappers como Emicida (“Samba do Fim do Mundo”, 2013, também com Fabiana Cozza), Criolo (“Fio de Prumo – Padê Onã”, 2014), Rodrigo Ogi (“Correspondente de Guerra”, 2015) ou Edgar (“Enquanto as Freiras Se Divertem”, 2016).

Um traço distintivo dessa outra vanguarda paulista tem sido o apreço pelo trabalho coletivo acima do individual. Uma já vasta discografia abriga álbuns em duo (como o Padê de Kiko e Juçara, O Retrato do Artista Quando Pede, 2009, de Kiko Dinucci e Douglas Germano, ou Anganga, 2015, de Juçara com Cadu Tenório), em trio (Metá MetáMetal MetalMM3, de 2016, e Gira, de 2017, com Kiko e Thiago, ou Sambas do Absurdo, 2017, com Rodrigo Campos Gui Amabis), em quarteto (Passo Torto, 2011, e Passo Elétrico, 2013, de Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Rodrigo Campos e Romulo Fróes) e em quinteto (Thiago França, 2015, do Passo Torto com Ná Ozzetti). Mesmo nos trabalhos solo de Juçara, Kiko é onipresente. O intercâmbio entre esses artistas é constante nos palcos e nos discos e rende também trabalhos rascantes produzidos para Elza Soares (A Mulher do Fim do Mundo, 2015, e Deus É Mulher, 2018) e Jards Macalé (Besta Fera, 2019, com Juçara nos vocais de “Peixe”).

Delta Estácio Blues ainda não foi lançado, mas toda a discografia anterior de Juçara (inclusive Abismu, um trabalho de improvisos gravado com Kiko em 2015) está disponível para download gratuito no site oficial da artista. A generosidade em relação a direitos autorais é outra característica de união de vários dos integrantes dessa nova vanguarda paulista. Leia abaixo a entrevista de Juçara, e aqui mais detalhes sobre Delta Estácio Blues.

Pedro Alexandre Sanches: A turnê pela Europa será a volta aos palcos depois de quanto tempo?

Juçara Marçal: Nossa, muito tempo sem a gente se apresentar. O último show presencial foi imediatamente antes de começar a quarentena, dia 14 de março de 2020. Era o show com repertório da Brigitte Fontaine, que eu estava fazendo com Kiko Dinucci e Thaís Nicodemo. A gente participou do Nublu Jazz Festival, quando já estava naquela confusão de pandemia, cancela/não cancela. Nesse período fizemos alguns gravados, mas show mesmo, nenhum. Vamos começar pela Bélgica, mas ainda estamos na dependência de várias decisões de quarentena, porque lá também as coisas mudam a cada dia. A gente ainda não tem claro se vai já no meio de outubro para cumprir uma quarentena de 14 ou dez dias. Tem país que já aceita brasileiro testado, mas outros exigem a quarentena. Talvez a gente tenha que ir antes para fazer isso. Mas é incrível poder voltar a tocar, está todo mundo na torcida.

PAS: O Delta Estácio Blues foi feito nesse período de quarentena?

JM: A maior parte dele, sim. A gente começou bem antes, mas de um jeito muito tranquilo, sem pressa de terminar, experimentando possibilidades, se encontrando nas brechas de temporadas que a gente tinha, tanto Kiko com Rastilho como turnê do Metá Metá, um monte de coisa que a gente está acostumado a fazer. Ele foi sendo gestado nesses encontros, desde 2017. Na verdade logo antes, no início de 2020, a gente tinha decidido que daquele ano não passava. Mas aí, com a pandemia, deu aquela barriga de tempo, de não saber direito o que fazer. Eu, principalmente, estava muito abalada com tudo. E aí rolou o patrocínio da Natura Musical, e o edital ajudou a dar gás, agora a gente tinha um prazo a cumprir. Também ajudou no sentido de ter ferramentas para poder chamar as pessoas para trabalhar. Naquele momento da pandemia, era imprescindível poder convidar alguém para tocar, “olha, tem um cachê para você”. A gente sempre fez disco na raça, os amigos tocam porque curtem o som e é todo mundo ali somando, cada um tocando no disco do outro. Mas, na pandemia, a possibilidade de ter um retorno financeiro para as pessoas era muito legal. A gente estava em casa, então taca fazer o disco. Eu e Kiko moramos no mesmo prédio, então estávamos quarentenados praticamente juntos. Foi tranquilo, a gente ia de máscara, mas era possível ir para o apartamento dele, sentar em frente do computador, e taca-lhe pau.

PAS: Os outros músicos participaram virtualmente?

JM: Todos. Mesmo Thiago França, que é do Metá Metá, gravou o sax dele lá e mandou para a gente, e a gente editou separado. Quem mais? Rômulo Alexis (trompetista em “Sem Cais”) também, a gente mandava a base para a pessoa, às vezes nem finalizada, mas com um corpo que já tinha a cara do que imaginávamos que seria a canção. Paulinho Santos foi outro, participou de uma música que não entrou no disco, que vai estar no EP que vamos lançar daqui a uns meses. Mandamos para ele em Belo Horizonte, ele gravou várias guias e quando chegou a gente acabou mudando a forma da música de acordo com o que ele tinha gravado. Paulinho Bicolor gravou as cuícas do Rio de Janeiro, mandou milhões de versões e a gente foi picotando e colocando na música que dá nome ao disco, “Delta Estácio Blues”.

PAS: Esse processo foi muito diferente por causa da pandemia?

"Anganga" (2015), de Cadu Tenório e Juçara Marçal
“Anganga” (2015), de Cadu Tenório e Juçara Marçal

JM: Sim, foi diferente. O Anganga (2015), um disco que fiz com Cadu Tenório, foi feito assim, remotamente. Gravei as vozes em São Paulo, mandei para ele no Rio, ele fez os arranjos a partir dessas vozes, depois voltaram e eu até refiz algumas. Mas era uma coisa meio excepcional, você gravava às vezes por facilidade, para evitar que se trancasse a agenda por conta da gravação. Nesse, não, a regra do disco foi o remoto. A única coisa que a gente gravou presencial foi a voz, que fui fazer no estúdio Minduca, do Bruno Buarque. Pensar em ir para estúdio foi só para fazer a voz mesmo, ainda morrendo de preocupação. Eu ficava tensa, tem coisa que é retrato de ter feito nesse momento. Todas as participações foram feitas à distância, inclusive a do Fernando Catatau (“Lembranças Que Guardei”).

PAS: Você é autora de todas as músicas?

JM: Participei pelo menos da construção da base com Kiko, sugerindo coisas na construção. Às vezes fiz melodia, de algumas fiz a letra, ou parte da melodia, ou contribuí com a letra. Por exemplo, Negro Leo fez a letra de “Sem Cais” e a gente meio trabalhou junto. Ele fez a maior parte, mas a gente sugeriu coisas. Foi um processo muito compartilhado de composição, desde o início. Kiko era o arquiteto das bases, era quem trabalhava no computador construindo, mas eu estava o tempo todo ao lado dele escolhendo coisas, “isso não”. A da Maria Beraldo, “Baleia”, a gente fez uma parte, mandou para ela, ela fez outra, voltou, acabei incluindo outra parte. Foi muita troca, cada um acrescentando um pontinho no que o outro tinha feito. “Ladra” é da Tulipa Ruiz, a cara dela. “Corpus Christi” além da base eu e Kiko fizemos a melodia e Douglas Germano fez a letra. A letra de “Iyalode Mbe Mbe” eu adaptei de um oriki em iorubá. É uma letra curtinha que fala de Oxum. ”Vi de Relance a Coroa” é do Siba, uma música inteira que ele mandou e a gente fez o arranjo. Foi um processo não usual no disco, porque em geral a gente fez a base e a canção surgiu daí. A do Siba e a da Tulipa foram duas que foram o contrário, eles mandaram a música e a gente fez o arranjo, dentro da linguagem que já estava correndo. “Crash” é letra do Ogi, “Delta Estácio Blues” é do Rodrigo Campos, “Lembranças Que Guardei” é do Catatau, e tem a da Brigitte Fontaine (“La Femme à Barbe”) e a do Tantão (“Oi, Cat”), que já vinham de antes, do show da Brigitte. E tem quatro que a gente vai lançar em EP, talvez em janeiro, uma da Jadsa, uma da Alzira E, uma parceria minha com Clima e uma parceria minha com Kiko, essa em que Paulinho Santos fez a percussão.

PAS: Como a pandemia aparece no resultado desse trabalho?

JM: Olha, acho que está no clima do disco (ri).

PAS: Seu disco anterior, Encarnado (2014), tinha até mais cara do momento atual, não?

JM: Sim, mas esse tem também, por outras vias. Ele tem uma dureza que tem a ver com o jeito como foi concebido, mas tem a ver com a pandemia. As escolhas de repertório também, tanto que as quatro que não entraram não entraram porque traziam uma ideia que eu achava que não casava com o momento. Aquelas mais pancadas tinham mais a ver com o que a gente estava querendo dizer com o disco agora. E a escolha de “Crash” para ser o primeiro single também tem a ver com isso.

PAS: Me chamou atenção “Lembranças Que Guardei”, porque tem uma melodia bonita, talvez mais simples que a maioria das canções feitas por esse grupo do qual você faz parte, que tenta sempre evitar saídas mais fáceis.

JM: (Ri.) Não sei, a gente gosta das coisas simples também (ri), tem espaço para elas. Nessa específica do arranjo do Catatau, a música surgiu de um jeito bem mais complexo, que foi sendo simplificado, até por sugestão do Catatau. Ela foi se tornando mais simples e foi tomando mais força por conta disso. Foi bem essa coisa de um fazer um pedaço, outra fazer outro. A segunda parte é melodia nossa, a letra é toda do Catatau, teve esse processo de ir descobrindo o jeito de ela fluir melhor dentro daquela história. E mil idas e vindas, isso também foi muito característico desse momento. Algumas coisas que você decidiria numa olhada, numa tocada, nesse processo demorou muito mais. Mas o resultado acabou que foi tudo muito fluido.

PAS: Você é muito identificada com São Paulo, com a chamada vanguarda paulista, mas nasceu no Rio de Janeiro. Pode contar um pouco sobre suas origens?

JM: Acho que é porque a minha formação toda foi em São Paulo. Por mais que eu tenha nascido no Rio, vim para cá muito cedo, então tudo que absorvi de música, que fui conhecendo e gostando, estava em São Paulo, porque eu estava aqui. O momento da vanguarda paulista é o momento em que eu estava na faculdade, descobrindo e me apaixonando pelo som do Itamar Assumpção, do Rumo. Foram coisas que descobri na minha vivência em São Paulo e me identifiquei, principalmente. Eu poderia estar aqui e ainda me identificar com o som do Rio, mas não, estava aqui e esse som me cativou desde o início. Minha ideia de fazer música foi sempre seguindo essas referências que me tocaram de alguma maneira, esses sons que descobri na minha juventude. E as amizades que fui fazendo por conta disso, porque todos os amigos músicos também beberam nessa fonte. Por isso o som segue por aí.

PAS: Você nasceu em Duque de Caxias e tem uma ligação com São Sebastião, não?

JM: Sim, estou aqui em São Sebastião, inclusive.

PAS: Vi um show seu aí, no Vento Festival, você estava orgulhosa porque estava cantando pela primeira vez em São Sebastião.

JM: É verdade, porque a minha família veio para cá. A gente saiu do Rio para São Caetano e de São Caetano para cá. Morei aqui numa parte do ensino médio, mas logo fui para São Paulo, fazer cursinho para prestar faculdade. Estudei e fiz amigos em São Sebastião, mas identificação, principalmente do ponto de vista musical, é com São Paulo.

PAS: Você fez jornalismo e letras?

JM: Fiz jornalismo e depois letras. No segundo ano de jornalismo entrei em letras, porque na época podia fazer duas faculdades ao mesmo tempo. Terminei jornalismo cravado nos quatro anos, e letras demorei para caramba para terminar. E já comecei a dar aula enquanto terminava a faculdade.

PAS: Onde estava a cantora e compositora nesse período?

JM: Estava nos tempos livres. Por conta da dificuldade financeira, não dava para eu simplesmente abraçar a carreira artística e deixar de mão algum trabalho que me desse retorno financeiro imediato. Por isso dar aulas naquele momento era uma coisa importante, dava a estabilidade necessária para poder fazer música. Primeiro dava aulas de português e redação, rádio e TV, depois de canto na Anhembi-Morumbi. No tempo livre eu fazia minha carreira cantando, participando do Vésper, depois d’A Barca e depois do Metá Metá. De todos esses grupos eu era integrante, totalmente mergulhada, mas paralelamente ao trabalho de dar aula. Só em 2015 eu parei de dar aula.

PAS: A Barca era um projeto maravilhoso, como foi essa experiência?

JM: Foi em 1998, na virada do século, que a gente se juntou para pesquisar material do Mário de Andrade. Foi basicamente esse o mote inicial de juntar a gente com o pessoal da Companhia do Latão. Foi a descoberta de um universo sonoro que a gente não tinha ideia de tão grande que era quando começamos. E só foi se aprofundando, à medida que a gente ia vendo que o manancial era muito maior. Desde que começamos a pesquisar as músicas das Missões de Pesquisa Folclórica do Mário, fomos percebendo que tinha muita coisa para descobrir e precisávamos ir nos lugares, para ver o que estava rolando agora. Quando conseguimos ir para os lugares, não paramos mais de descobrir coisas. O que a gente descobriu nessas viagens, de tocar com as pessoas das várias comunidades, celebrações, brincadeiras, terreiros, tudo que a gente visitou ficou muito impregnado em tudo que a gente faz até hoje. Todas as pessoas d’A Barca (entre elas estão Chico Saraiva, Lincoln Antonio, Marcelo Pretto, Sandra Ximenez Thomas Roher), se você for olhar o que fazem hoje, tem sempre a ver com o momento de virada da gente descobrir essa fonte inesgotável da cultura tradicional e popular do Brasil.

PAS: Em você isso permaneceu presente, mas você radicalizou para um outro lado bem diferente, não?

JM: Sim, cada um foi levando de acordo com as suas identificações musicais. No meu caso, gosto muito da possibilidade de ir experimentando os limites das coisas, tanto do ponto de vista do uso da voz quanto da sonoridade que se constrói para que essa voz se coloque. Isso me dá muito prazer, me movimenta e instiga muito. Talvez por isso acaba tendo uma outra cara. Mas aquilo está sempre presente, ainda que não seja escancaradamente. Ainda que não seja explicitamente uma cantiga de cultura popular, um ponto de terreiro, eles estão ali presentes, sempre. Para fazer, preciso que eles estejam presentes.

PAS: O disco Padê (2007), principalmente, dá para ver como uma sequência direta d’A Barca.

JM: Sim, o Padê, talvez mais explicitamente. Eu até coloco no disco “essa música aprendi no tambor da mata do seu Luís de França“. Mas ainda hoje, fazendo show do Metá Metá, canto ponto que aprendi na Casa Fanti Ashanti, na vivência dos terreiros. Me sinto identificada com o maracatu que Siba trouxe (“Vi de Relance a Coroa”) porque já fui, já vi como é, está presente no jeito de eu entender a canção.

PAS: Como aconteceu seu encontro com Kiko Dinucci?

JM: Um pouquinho antes do Padê, a gente fez um show juntos. Ele me acompanhava ao violão e o jeito dele tocar violão já era um negócio. Tocava violão do jeito dele, já achava um jeito de tocar com muita personalidade. E principalmente as canções dele tinham uma presença, ele também tinha uma vivência forte com a música de matriz africana. Isso estava presente nas composições, mas de um jeito muito pessoal, trazendo alguma coisa dele. Desde aí a gente foi construindo muita afinidade de repertório, de tocar juntos, de vislumbrar possibilidades de som. Me considero meio irmã dele. Tem Tulipa Ruiz e Gustavo Ruiz, Ná Ozzetti e Dante Ozzetti, eu sinto Kiko como meu parceiro e mano de música, porque é muita identificação. Tanto que nessa viagem que vamos fazer vou ser a “featuring” dele. É possível fazer Rastilho, o disco dele, mas tem mil outras possibilidades que podemos encontrar na hora do show e vão tornar a temporada mais diversificada, mais gostosa de fazer. Fazer 31 shows iguais, o mesmo todo dia, ninguém aguenta.

PAS: Você tem feito sempre um trabalho coletivo, seja no Vésper, n’A Barca ou no Metá Metá, e mesmo quando é solo a mesma turma está sempre ao redor, todos colaborando. Em que momento nasce uma Juçara Marçal que é uma artista que vai lançar seu próprio disco, e agora está lançando um segundo?

JM: Acho que é no momento em que falo: agora sou eu que levo a brincadeira, gente. Só isso. Não muda muito. É só a possibilidade de propor a partir de onde a gente vai e discernir a palavra final, dizer “legal, é isso”. E, quando digo “legal, é isso”, nunca é uma vondadezinha solitária que burilei sozinha. No conjunto, no coletivo, você percebe que funcionou. Só muda no sentido de que eu escolho o repertório, decido no final se essa entra ou não, tenho poder de veto (ri). Consigo pensar e trabalhar melhor no coletivo.

PAS: Entrevistei há pouco Douglas Germano, que diz que vocês gostam das músicas dele, mas ele não faz propriamente parte desse grupo.

JM: É verdade.

PAS: Com você é diferente? Na verdade, você é parte fundamental do grupo, não?

JM: Pode ser, de ter um trânsito maior, talvez. Outro dia alguém estava me falando isso, sobre ter essa comunicação que pode ser ao mesmo tempo com Cadu Tenório, que é do universo do (projeto de improvisos ao vivo) Nós da Voz, e Douglas Germano, que faz aquele samba mais sofisticado. Acho que é por causa do gosto pelas possibilidades sonoras que cada um dos universos musicais traz, e esse gosto pelo coletivo, de fazer parceria. Agora vou trabalhar com Gui Amabise Rodrigo Campos, vamos ver o que sai desse trio, ou com Thomas Roher, vamos ver o que sai desse duo. Essa é a diversão, é o mais gostoso, se deixar envolver pelo que te propõe aquele artista que você resolveu tornar parceiro.

PAS: Vocês vão fazendo trabalhos em duos, trios e quartetos, e parece que a identidade individual de cada um não é tão importante assim. É isso?

JM: E ao mesmo tempo a identidade está lá. Se você vê o Metá Metá, a discografia de cada um dos integrantes é um negócio. No Metá Metá a personalidade dos três está lá, sempre um é muito alimentado pelo outro, mas o grupo é sempre alimentado pelas coisas que cada um traz das suas viagens particulares. É por isso que tem pano para manga para a gente continuar produzindo. O Metá Metá ficou numa fase bem mais quietinha agora, eu fazendo meu disco, mas um convite de um festival já chama a atenção da gente para uma outra possibilidade sonora do trio. Não sei onde vai dar, mas o fato de a gente ter estado em vários lugares fazendo outras coisas já alimentou o som do grupo para pensar em outros trajetos.

PAS: Você falou de poder de veto, é possível dizer que os dois trabalhos que assinou sozinha são onde você tem mais liberdade, ou não é necessariamente assim?

"Sambas do Absurdo" (2017), de Rodrigo Campos, Gui Amabis e Juçara Marçal
“Sambas do Absurdo” (2017), de Rodrigo Campos, Gui Amabis e Juçara Marçal

JM: Acho que não. Quando me proponho e me junto a alguém, é sempre alguém que preza muito também a liberdade, te dá espaço para sugerir, e vetar também. Brinquei sobre a possibilidade de veto, mas no Sambas do Absurdo (2017, com Rodrigo Campos e Gui Amabis), se tivesse alguma coisa que eu não curtisse, também não ia rolar. É muito de decidir junto, respeitando o que o outro falou. A liberdade é construída pelas parcerias até. Se eu fosse ter um parceiro que é alguém muito rígido em algumas crenças musicais, talvez isso me deixasse com menos mobilidade. Se rolar isso muito provavelmente não vou ficar muito tempo naquela parceria. As parcerias que prosseguem são as que dão espaço para essa liberdade que está no meu disco solo, mas está no Metá Metá, no Anganga, e por aí vai.

PAS: Pode explicar como a vanguarda paulista dos anos 1980 impactou sua obra?

JM: Foi bem de formador mesmo, bem o momento em que eu estava na faculdade de jornalismo, começando a conhecer o universo musical do ponto de vista não só de quem ouve rádio, mas de quem vai em show, fica muito fã, se identifica artisticamente mesmo. Principalmente Itamar e Rumo foram norteadores totais do que penso, ou pelo menos foram estopins, acho que dá para dizer assim, de músicas, canções, jeito de pensar música. Foram estopins do que fui procurar a partir daquilo. Foi um lugar tanto de referência como de instigar a minha expressão musical, de “nossa, dá para fazer assim, que legal”, “como seria eu fazendo isso?”. Você vai se descobrindo como artista a partir da referência que te encanta e instiga.

 

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