O que Ladybug ensina sobre o pesadelo autoritário

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Há alguns anos, por conta da função pai, passei a ser coadjuvante de sofá das aventuras de Ladybug & Cat Noir. A primeira coisa que notei é que o fascínio das crianças por esses personagens vai crescendo conforme os seus pequenos espectadores também vão crescendo.

Não era, a princípio, um desenho que me provocasse curiosidade. Não gosto tanto da animação, não tem artesanato, parece sempre fácil e automatizada demais.

Com o tempo, entretanto, Ladybug & Cat Noir foi me provocando cada vez mais curiosidade e reflexão. Já tem um tempo na TV, uns cinco anos, mas é assim mesmo: os pais geralmente acordam tarde para as coisas dos filhos.

Quem são eles? Em linhas gerais, trata-se da história de dois personagens parisienses comuns: Marinette/Ladybug, a filha sino-francesa de um casal dono de uma pâtisserie, e Adrien/Cat Noir, o filho abastado de um estilista viúvo e pedante. Eles estão na mesma escola, mas Adrien está ali a contragosto do pai, que não o quer misturado com gente comum.

“As aventuras de Ladybug” é, como de resto são os grandes sucessos adolescentes do nosso tempo, uma colagem pós-moderna. Marinette e Adrien se transformam em super-heróis por conta da escolha mística de um mestre chinês baixinho e fora de forma (um clone do Sr. Miyagi de Karatê Kid). Aquilo que os dota de habilidades extraordinárias para salvar Paris e o mundo todo santo dia são dois pequenos “miraculous” (dois kwamis, seres fantásticos minúsculos, como fadas). Seu inimigo é único, embora múltiplo: Hawk Moth, um misterioso personagem que raramente combate, terceirizando a confusão com pessoas “possuídas”, recrutadas para combater em seu lugar, não importando se são bebês, moradores de rua ou idosos.

Ladybug é uma tragédia romântica clássica: Marinette ama Adrien, que ama Ladybug, que por sua vez despreza Cat Noir, mas ama Adrien. Como não sabem quem são durante suas identidades secretas, estão condenados a amar um ao outro eternamente e nunca se encontrarem de fato. Marinette é atrapalhada e confusa em sua identidade comum, e Adrien é ético e responsável na sua. Quando põem as máscaras, ela passa a ser autoconfiante e milimetricamente precisa, e Adrien passa a ser debochado e levemente irresponsável. Acontece com muita gente quando veste as fantasias sociais.

A chave da leitura de Ladybug está no vilão, Hawk Moth. Ele é a identidade secreta de Gabriel Agreste, o pai do herói, Adrien. Seu poder está em se aproveitar das frustrações das pessoas, transformando isso em violência e vontade de aniquilação. Onde há gente recalcada, ressentida, ali é o terreno favorável para germinar o monstro do autoritarismo, da intolerância. Hawk Moth não quer dominar o mundo, como é comum nesses vilões: ele quer poder para fazer o passado reviver (mantém a mulher morta numa câmara criogênica), o passado que ele venera e acredita ser melhor que o que vive atualmente. Odeia as pessoas mais humildes e os trabalhadores comuns, a base de todo o pensamento supremacista e autoritário. Qualquer semelhança com o Brasil de 2021 é mera coincidência, mas o encaixe é perfeito. As pessoas negligenciadas que Hawk Moth escraviza lhe são fieis, mas ele as despreza, tem em mente que são zumbis descartáveis. Adrien vive essa sombria realidade: o inimigo está o tempo todo abrigado em sua própria família, mas ele não sabe.

Os pais são, em geral, alienados e distanciados, casos do roqueiro Jagged Stone, do prefeito Bourgeois e de sua ex-mulher, a estilista Audrey Bourgeois. Os sobrenomes (burguês, em francês) não são também coincidência, há algo de evidentemente politizado na série. Quando não, são distraídos e ingênuos, como os pais de Marinette.

Há elementos de Harry Potter (na confraria escolar e no engajamento em magia, por exemplo), série que, por sua vez, já era um caldeirão pós-moderno.  O fato de mudar o eixo do super-heroísmo de Nova York para Paris é um dos elementos mais interessantes – não por acaso, em um dos episódios os garotos parisienses vão para Nova York e se encontram com a bidimensionalidade dos heróis norte-americanos, movidos a frases feitas e dogmas patrióticos.

Dizem que são as meninas que gostam mais de Ladybug. Então até nisso o desenho é revelador: as meninas geralmente percebem antes, como diz uma das personagens a Marinette, quando ela descobre atônita que todos na escola sabem de seu amor por Adrien. “Será que ele também sabe?”, ela pergunta, apavorada. “Não se preocupe, Marinette: os meninos nunca sacam essas coisas…”.

Miraculous – As aventuras de Ladybug. Gloob e plataforma Now. França, 2015
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