Há 88 plataformas de streaming em operação no Brasil, um número que parece elevado, mas é inferior às 95 do México e às 98 da Argentina. Em toda a América Latina, há 235 plataformas OTTs (Over the Top, em inglês) que exibem 475 mil filmes e 84 mil séries. O estudo Mapa da TV Paga e OTTs 2021, da empresa de pesquisas de mercado de mídia e telecomunicações BB Vision, mostra ainda que Netflix, Amazon Prime, Claro Vídeo, Google Play e HBO Max são os serviços mais consumidos, mas outras 71 plataformas latino-americanas abocanham mais de 60% desse mercado. Em outras palavras, os pequenos Davis do audiovisual não precisam de pedras para derrotar os gigantes Golias do streaming.
A explosão de plataformas de streaming era um fenômeno mais do que esperado. A pandemia do novo coronavírus impôs um necessário distanciamento das salas de cinema. E as pessoas passaram a consumir mais conteúdo online, em suas casas. Para os profissionais do audiovisual, havia duas soluções: migrar para os serviços já existentes (como o Looke ou o Mubi), nem sempre acessíveis, ou investir numa nova plataforma. A realizadora, roteirista, produtora e diretora Zienhe Castro já organizava o Festival Pan-Amazônico de Cinema, que de presencial desde 2009 teria de virar online para continuar ativo. O festival presencial na capital Belém costumava atrair em torno de 400 a 500 pessoas por dia. No ambiente virtual pandêmico, o público era uma incógnita. Mas isso não impediu que ela e o companheiro Manoel Leite apostassem na inovação.
“Nosso objetivo foi fazer uma plataforma-teste para apagar um incêndio mesmo, e depois articular melhor para aprimorá-la”, lembra Zienhe. Era abril de 2020 e assim nascia a Amazônia Flix, um serviço de streaming de produções amazônicas reverenciado pela cineasta Tata Amaral. “Este é um exemplo de que as mulheres não vão voltar para trás”, disse Tata em entrevista por ocasião do lançamento da sua série As Protagonistas (Canal Brasil).
“Esse impacto que a gente viu com a Amazônia Flix, de uma visibilidade mais ampla, gera um impacto muito interessante para a região. A gente está deslocando esse eixo de curadorias feitas por Rio e São Paulo e passa por outra feita por nós, hackeando o sistema e apresentando para o mundo essas produções amazônicas. Acho que não tem volta e tem um impacto muito positivo, sem estar refém das grandes plataformas, que tomam decisões por outros caminhos, mais comerciais e mais capitalistas”, explica Zienhe Castro.
Com um investimento de 30 mil reais, um pouco mais da metade cobrado por outras plataformas, a Amazônia Flix conseguiu lançar o serviço em setembro do ano passado com dois festivais, o Amazônia.DOC e As Amazonas do Cinema. “Bombou muito e foi inesperado. A gente abriu a plataforma para o mundo, teve acesso de 32 países, e mais de 30 mil visualizações”, diz Zienhe. “Nós sabemos que vamos ser a periferia das plataformas. Mas apostamos na agregação de forças”, acrescenta Manoel Leite. O Festival de Cinema de Cuiabá aconteceu graças à Amazônia Flix.
A aposta em boas curadorias já é um item essencial para o streaming. Se antes a Netflix reinava, com um serviço eficiente e um catálogo variado (embora com ênfase na cinematografia pós-anos 1990), com o tempo a plataforma perdeu títulos para os concorrentes que foram surgindo, como Disney+, Amazon Prime Vídeo e HBO Max. A disputa entre os grandes se tornou acirrada. Mas isso vale também para a “periferia” dos serviços.
Foco no cinema nacional
Em fevereiro de 2019, o diretor do Itaú Cultural, Eduardo Saron, não tinha uma bola de cristal, mas já previa o futuro. Ciente de que os conteúdos digitais em torno do site do instituto só cresciam em acessos, ele jogou no ar a proposta de uma plataforma de streaming para Claudiney Ferreira, gerente do Núcleo de Audiovisual e Literatura da instituição. Durante dois anos, eles procuraram parceiros tecnológicos, porque há inúmeras questões técnicas envolvidas. Os donos das plataformas precisam se preocupar com quando e por quanto tempo os filmes ou séries serão exibidos, se eles podem ser exibidos no Brasil ou para o público estrangeiro, com ou sem exclusividade, lançamentos etc.
Assim surgiu o Itaú Cultural Play, que aposta em uma curadoria também fora do eixo comercial, com filmes de autoria indígena, do cinema negro, curta-metragens, animação e mostras temáticas. “Os filmes são as causas do instituto”, resume Claudiney Ferreira, que lembra que Saron gostaria que o serviço tivesse um olhar focado no cinema brasileiro. A plataforma voltou a exibir filmes clássicos de Glauber Rocha, como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967); Joel Zito Araújo, com A Negação do Brasil (2000); ou Luiz Carlos Barreto e Eduardo Escorel, com Isto É Pelé (1974). A plataforma já fechou parcerias com os festivais forumdoc.bh, É Tudo Verdade e In-Edit Brasil.
Até para uma instituição do porte do Itaú Cultural as negociações para exibir um filme se tornaram mais difíceis. É que, agora, os produtores audiovisuais têm poder de escolha. “Foi impressionante como começamos em agosto do ano passado e em novembro todas as negociações se tornaram mais complexas, porque cresceu muito o número de plataformas”, diz Ferreira. O Itaú Cultural Play paga em torno de 6 mil reais para contratos de seis meses por um longa, sem exigir exclusividade. Até dezembro deste ano, já há 90 filmes negociados.
O Belas Artes à la Carte, que criou a plataforma em 2019, verifica um crescimento mensal de 10% neste ano. Tudo por conta de uma curadoria de filmes clássicos e, muitas vezes, fora dos catálogos. A proposta sempre foi oferecer a programação do Belas Artes, um tradicional cinema de rua de São Paulo, para públicos de outras cidades brasileiras.
A plataforma não ambiciona chegar aos milhões de assinantes de uma Netflix, mas a meta é atingir pelo menos 200 mil até o fim do ano. O custo mensal é de 9,90 reais. Nessa disputa, uma importante variável a ser considerada é que os usuários têm recursos limitados para pagar os serviços de streaming, assim como tempo para assistir a tudo que está disponível online.
“O À la Carte quer se tornar um hub do cinema”, diz a diretora-executiva Juliana Brito. “Temos um cuidado curatorial com quatro ou cinco filmes por semana, e o ideal é chegar a seis. A pessoa sempre vai encontrar um filme que seja do gosto dela. E tem toda a plataforma extra, que é falar sobre cada obra, passar a ideia de que o consumidor encontra entretenimento, mas também aprende sobre o que vai ver.”
A fadiga do streaming
Nos Estados Unidos, já se fala em fadiga do streaming, com a consultoria Omdia apontando que pela primeira vez está caindo o número médio de assinaturas de plataformas. Estima-se que, entre serviços pagos e gratuitos, cada casa ou família assine até sete serviços de streaming. Sete pode aparentar ser um número elevado, mas não se levar em conta a oferta tão facilitada. Quem quiser filmes nórdicos, por exemplo, tem disponível a Ponte Nórdica. Cinema latino-americano? Tem o Cine.AR, da Argentina, e a Retina Latina, fruto da união dos setores audiovisuais de Bolívia Colômbia, Equador, Peru, México e Uruguai. E há ainda o Spcine Play, a “única plataforma pública de streaming do Brasil”.
A Supo Mungam também lançou sua plataforma de streaming durante a pandemia, embora a ideia tenha surgido ainda em 2017. A proposta era lançar um serviço próprio para poder dar visibilidade a filmes que não chegam a algumas cidades ou tinham de ser alugados online, explica Pedro Henrique Leite, co-diretor e fundador da empresa, que nasceu em 2014 como uma distribuidora. Partindo de 30 títulos iniciais, a plataforma já possui 107, com uma média de 20 filmes lançados por mês. São obras de procedências como Afeganistão, China, Japão e países europeus. O plano mensal sai por 23,90 reais.
Com a experiência de levar filmes de arte para as salas de cinema, Leite diz que não enxerga um risco com essa pandemia de streamings, e que essa opção veio para ficar. “No streaming, você tem um alcance que alguns filmes não conseguiriam ter somente em cinema, trazer filmes restaurados, obras para serem redescobertas. E no cinema tem aquela coisa de a pessoa ir, um lazer, de ter uma emoção em público, sentir e dar risada. Os dois modelos são diferentes e vão continuar coexistindo”, vaticina. No catálogo da Supo Mungam Plus, há filmes como O Funeral das Rosas (1969), de Toshio Matsumoto, Os Meninos da Rua Paulo (1968), de Zoltán Fábri, Mephisto (1981), de István Szabó, e Entre os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet.
Mas as plataformas nasceram também como espaço de um outro tipo de disputa, como a Sala 54. A plataforma é sazonal e está atrelada à curatoria proposta pelo Nicho 54, um instituto de combate ao racismo estruturante no audiovisual brasileiro. “Das várias coisas que a Sala 54 e o Nicho 54 fazem é apontar a imensidão das vidas negras, que a gente fez e faz obras há muito tempo para muito além do discurso da representatividade”, explica Heitor Augusto, fundador e programador-chefe da iniciativa.
Ao perceber que havia uma produção pungente, porém nem sempre com janelas de exibição, o trio Heitor Augusto, Fernanda Lomba e Raul Perez decidiu criar o Nicho 54. O projeto propõe fortalecer uma rede de criadores negros no audiovisual, alterar as práticas de contratação pelo mercado desses profissionais e “refundar imaginários, pensar e diferenciar as vivências negras na tela, repensar”, diz Augusto.
Gratuita, a plataforma de streaming só vai ao ar quando houver necessidade. “A Sala 54 almeja estar sempre conectada aos projetos curatoriais do instituto. Ela existe em função dos projetos e mostras culturais do Nicho 54”, explica o fundador da iniciativa. Em 2020, houve o festival Nicho.Novembro, com o tema “cinema como direito ao trabalho”, e neste ano, América Negra.