O poeta que sonhou em plantar uvas

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Morreu aos 101 anos o poeta norte-americano Lawrence Ferlinghetti, um dos últimos remanescentes do grupo dos beatniks, referência da moderna poesia internacional, fundador da livraria City Lights de São Francisco.  Eu o entrevistei longamente em 2012. Reproduzo a entrevista, por considerá-la ainda esclarecedora – foi em outra circunstância política, mas as previsões de Ferlinghetti mostraram-se acertadas.

ATUALIZAÇÃO: A editora 34, que publica Ferlinghetti no Brasil, anuncia para abril o inédito Poesia como arte insurgente (tradução de Fabiano Calixto). A editora ainda promete lançar também uma antologia poética, em tradução de Fabiano Calixto e Natália Agra, prevista para o fim deste ano de 2021. Será o volume mais abrangente da poesia do autor já publicado no Brasil (101 poemas).

 

 

 

“Time of Useful Consciousness” (ou tempo de consciência útil) é um termo aeronáutico que define aquele momento da última consciência de alguém que, por falta de oxigênio, encontra-se a ponto do desfalecer – o único breve espaço de tempo em que sua vida pode ser salva. É com esse nome que o poeta, editor e livreiro Lawrence Ferlinghetti batizou seu novíssimo livro de poemas, lançado esta semana nos Estados Unidos pela New Directions Book.

O título é, segundo Ferlinghetti, uma metáfora da atual condição do mundo dito civilizado. Ou é ressuscitado agora ou morre. Aos 93 anos, o autor notabilizou-se por ter se atrevido a publicar o mítico poema O Uivo, de Allen Ginsberg – além de trabalhos de Charles Bukowski, Jack Kerouac, William S. Burroughs e ensaios políticos de Noam Chomsky e Howard Zinn.

Em 1958, escreveu uma obra-chave da poesia norte-americana, A Coney Island of the Mind. Foi figura central da beat generation, cujos expoentes estão quase todos mortos (Kerouac, Ginsberg, Burroughs, Corso, Orlovsky). Sua livraria City Lights, em São Francisco, tornou-se um centro de agitação cultural que atravessou fervilhantes cinco décadas.

O último livro de Ferlinghetti tinha sido Poetry as Insurgent Art, de 2007. Time of Useful Consciousness se insere dentro de uma tradição que ele chama de “corrente de consciência” norte-americana, na qual podem ser incluídos Fall of America, de Ginsberg: e Paterson, de William Carlos William. Mas desta vez não é a América o foco, é o mundo todo.

O poema como um fluxo de consciência volta a mostrar Ferlinghetti em plena posse de suas capacidades de ritmo e até de musicalidade, como é característica da escola beatnik de onde veio. Ele, na verdade, não concorda com a ideia de que seja produto de um movimento específico. Conta que chegou a São Francisco, pátria dos beats, em 1951, e que era apenas integrante da onda boêmia de North Beach.

“Ninguém nasce poeta. Você se torna poeta, em geral contra sua vontade. Não se escolhe essa vocação. Quando eu cheguei a São Francisco, queria comprar um pedaço de terra e fundar uma vinícola”, diz Ferlinghetti.

O senhor disse, numa entrevista a uma rádio, que sua mãe era portuguesa. É verdade?

Sim, era uma judia portuguesa sefardita, cuja família deixou Portugal no século 17 ou 18 e foi para St. Thomas, nas Ilhas Virgens. Seu sobrenome era Mendes Monsanto. Era uma trajetória comum para os sefarditas, irem para o Caribe via Curaçau. A família dela depois imigrou para Providence, Rhode Island, ainda um centro de imigração portuguesa.

E o seu pai era italiano, certo?

Certo. Eles se conheceram em Coney Island, por volta de 1902, talvez 1904. Se conheceram em uma Border House, em Coney Island. Ela teve quatro filhos. Quando eu nasci, meu pai tinha acabado de morrer. Minha mãe entrou em colapso. Ela concluiu que não conseguiria cuidar de quatro filhos e me deu para uma mulher francesa que era casada com seu tio, Lourdes Monsanto. Ela me levou para a França quando eu tinha 3 anos. Vivíamos perto de Estrasburgo. Aprendi a falar francês antes do inglês.

O senhor leu os poetas franceses antes dos de língua inglesa?

Oh, sim. Fui para a Universidade de Paris, a Sorbonne, pouco antes de alistar-me no Exército e me tornar um GI-Joe. Fiz doutorado em Literatura e, naquela época, os existencialistas estavam ainda muito ativos. Li, claro, Sartre e Camus. Traduzi Jacques Prévert. Ele escreveu um livro muito famoso, Paroles (Palavras , publicado no brasil pela Sextante), muito influente no underground francês.

E Ferlinghetti é do Norte da Itália, certo?

Sim, perto de Verona. A família Ferlinghetti vivia perto de Brescia, em Campochiaro. Uma família grande. Há dez anos, estive lá. Houve uma cerimônia na prefeitura, e o prefeito foi me encontrar, e todos os Ferlinghetti da cidade foram lá para me encontrar.

Em seu poema, o senhor fala em Bob Dylan, Johnny Cash, Pete Seeger, Woody Guthrie como sendo os “verdadeiros poetas populares da América”. Acha que os cantores pop foram mais eficientes que os poetas neste século?

O cantores folk, como Woody Guthrie e Johnny Cash e Bob Dylan e muitos outros foram poetas muito populares, venderam discos, foram às TVs. Todos os ouviram. Ao passo que os poetas, em comparação, atingiram uma audiência muito pequena. Isso é fato.

E o senhor, ainda assim, criou a City Lights, uma livraria. Hoje em dia, redes de livrarias fecham as portas todo dia. O que o senhor acha de e-books, e-commerce, todas essas novidades?

As redes de livrarias vão mal, mas não a City Lights. Nós estamos indo melhor do que nunca. Estamos nos beneficiando do fato de que somos a última livraria onde as pessoas podem ir e achar um livro de verdade. As pessoas vêm de todo lugar do mundo para buscar livros aqui. O que penso é que os e-books e toda a civilização eletrônica, a internet, o YouTube, Skype, tudo isso do mundo eletrônico, pode desaparecer em um segundo. Toda a civilização eletrônica. Pode acontecer a qualquer momento. Muitos cientistas respeitáveis do clima, hoje, advertem para o que chamam de “tipping point”, um mecanismo de esgotamento. Há fenômenos do tipo acontecendo em Miami, na Flórida, neste momento. Enquanto isso acontece, as mudanças climáticas acontecem, estão fazendo uma grande festa. Lord Byron escreveu um poema sobre a batalha de Waterloo. Descreve como, enquanto os canhões soavam a distância, as pessoas faziam uma grande festa na capital, alheias à destruição.

Seu livro menciona Gauguin no Taiti e Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss, que fala do Brasil. Refere-se a paraísos perdidos?

Seja no Brasil ou nos Estados Unidos, todo mundo sabe o que está acontecendo, mas ninguém faz nada a respeito. Todo mundo sabe o que não pode ser feito, mas faz mesmo assim. Tanto seu governo quanto o nosso sabe o que deve fazer. É uma perspectiva muito ruim. Quando Obama foi eleito, todo mundo na esquerda ficou eufórico, achando que ele era um revolucionário. Achavam que ele poderia salvar o mundo. Eu alertei as pessoas: Obama nunca foi um revolucionário, é um membro da burguesia negra. Bem no meio do caminho: não é de direita nem de esquerda. Não era o grande conciliador, não era capaz de grandes compromissos.

O senhor menciona algumas vezes O Grande Gatsby, de Fitzgerald, em seu poema. O que vê de tão especial no personagem?

Bom, Gatsby foi um dos primeiros self made men, um grande empreendedor. Foi um herói de um mundo emergente, e sua história é a história de como a gratificação do indivíduo não vem com o sucesso comercial. Também mostra o que há por trás do sistema, o establishment. Sua filosofia é a da dominação. O debate entre republicanos e democratas nos Estados Unidos, neste momento, é uma afirmação desse individualismo. Não se fala em coletivo, e o contrato social, a ajuda mútua, é um termo que deveria ser o compromisso.

O senhor cita Pasolini: “A desaparição dos vaga-lumes na Itália sinaliza o início de uma terrível era”.

Pasolini disse isso nos anos 1930. Não foi o único a prever esse tipo de tragédia. Bertolt Brecht foi viver em Los Angeles na 2.ª Guerra, fugindo do nazismo, e disse que Los Angeles era o “Inferno na Terra”. Pasolini disse o mesmo de Roma. Profecias infernais. Günther Grass. Eu o encontrei em São Francisco 20 anos atrás, e ele veio de novo para uma palestra no Goethe Institute em São Francisco. Numa conversa comigo, ele disse: “Em minhas visões do que o século 20 será, vejo que não haverá nações, e o futuro será feito de hordas étnicas vagando pelo mundo em busca de abrigo e comida”. E é o que está acontecendo com esses desastres ecológicos.

Há um verso em seu livro que parece falar de um fenômeno moderno, esses atiradores que matam pessoas em shoppings e cinemas. “O capitão do Vietnã empunha sua pistola/ Na cabeça do camponês/ Que explode em cores/Na CBC ABC NBC”. Fala desse tipo de violência?

É muito similar a imagem, mas falo de um evento que vi pela TV acontecendo no Vietnã. Tudo é consequência do que acontece hoje. A violência é consequência da falta de perspectiva, da falta de respostas às ansiedades sociais. Estão acabando com o Estado social, cortando assistência médica, seguro-desemprego. Vejo que, na América Latina, a esquerda parece querer caminhar junta. Acho que isso é bom, podem salvar a si mesmos, podem salvar os seus cidadãos. O movimento Occupy é similar aos movimentos dos anos 1960, ambos se rebelam contra um capitalismo predatório. Mas, para sobreviver, deverá atentar para demandas específicas. É época de se tornar mais claro. Uma grande demanda pode ser a nacionalização do petróleo.

O senhor menciona Gertrude Stein em um trecho do poema, dizendo que ela jamais disse a Jack Kerouac, no Caffe Trieste, a frase “vocês todos são uma geração cansada” (a beat generation).

(Risos). É uma paródia do que ela disse a Hemingway, “vocês todos são uma geração perdida”.

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