O encontro de Belchior e Zé Limeira no céu

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Zé Limeira estava sentado à mesa com inscrições talhadas a canivete que ficava no fundão do Armazém Dante Alighieri, falso depósito de provisões da alma na Ala 7 do Paraíso. No armazém funciona, há uma eternidade, um pub clandestino que nem o Pedro desconhece. Foi quando se acercou dele um rapaz de bigode volumoso, bem aparado, um anjo de pessoa resolutamente tímida.
“Zé, posso me sentar?”.
Zé Limeira puxou um banco de madeira com o pé e o ajeitou de forma a que o visitante se postasse direto à sua frente, para não ter que ficar virando a cabeça.
“Zé, meu nome é Antonio Carlos Belchior, eu era lá de Sobral, no Ceará”.
“O compádi Einstein quando avistou/O universo relativo de Sobral/Não podia adivinhar a explosão/Dessa bomba de vaidade em seu quintal”, declamou Zé Limeira, criando na hora uma embolada e empurrando uma branquinha na direção de Belchior.
O bigode de Belchior se movimentou na direção das bochechas rosadas, indisfarçando o riso. Zé Limeira, o poeta de Teixeira, demonstrava conhecer perfeitamente a cidade de onde ele saíra. Mas o assunto que trazia Belchior ali era penoso, e embora essa palavra seja proibida no céu, ele decidiu não arrodear o arrodeio.
“Zé, eu sei que estão dizendo no Twitter que eu plagiei você”. Zé fez uma cara de surpresa e espanto em igual medida:
“Eita, ediceta, pei-bufo e coisa e tal/Que esse tal de tuintiu eu não sei se é banal ou capital”, disse Zé.
“Zé, eu também não sou de Twitter, embora saiba que tá cheio de língua falsa aqui no Paraíso. Mas tenho minhas fontes e elas me contam o seguinte: um verso meu que frequenta os muros da mortandade, que já virou até bloco de Carnaval lá embaixo, uma estrela do hip-hop gravou, que esse verso teria sido anteriormente escrito por você, segundo relata o livro de Orlando Tejo, Zé Limeira – O Poeta do Absurdo. Rapaz, eu poderia aqui simplesmente dizer a você que é só uma das centenas de casos de intertextualidade na minha música, de diálogos entre ideias e sentidos. Era você, Ascenso Ferreira, Inácio da Catingueira, eu comia com farinha. Mas como eu soube que você estava por aqui, e como é um ídolo, achei melhor vir até sua presença para…”
Zé cortou abruptamente a frase de Belchior:
“Você vê a desgraça: basta morrer que os infelizes lá embaixo já te arrumam uns apelidos sem sentido. Poeta do Absurdo? É como diz o zarolho da existência: o absurdo são os outros! Sempre fui o poeta dos acontecidos”, desabafou.
Belchior riu. “Zé, a frase correta é ‘O Inferno são os Outros!’ Você está citando Sartre ou está me tirando de propósito?”.
“Para saber a diferença/Entre citação e plágio/É preciso conhecer o adágio/Do verso cego de nascença”, declamou Limeira.
Zé então tratou de acalmar o seu colega de mesa, que estava já parecendo quase transtornado com aquela missão de se penitenciar por algo que nem sabia se era penitenciável.
“E qual é o tal verso que escolheram para te aperrear?”, perguntou.
Ano passado eu morri/Mas esse ano não morro. É parte de uma canção chamada Sujeito de Sorte“.
Zé fez um longo silêncio. Coçou a orelha como se arrancasse carrapato. “Eu disse mesmo esse verso a Orlando Tejo?”, perguntou.
“Está no livro como teu”, respondeu Belchior.
Zé Limeira olhou a garrafa vazia, balançou pelo gargalo e ela tornou a encher – uma das vantagens de ter morrido e pós-viver na terra prometida era essa, não precisar chamar o garçom.
“Mas se você diz que não me plagiou, que somente me desapropriou… Eu acredito em você, oras. Acredito nas ideias que andam sem precisar de cão-guia. Tá vendo aquela mulher ali?”. E apontou uma branquela com blusa de manga comprida rendada nos pulsos, sentada à frente de uma taça de absinto.
“Quem é?”, perguntou Belchior, que àquela altura já estava tomando outra coisa porque cachaça nunca tomou na vida lá embaixo e ali basta imaginar uma garrafa de Château Lafite Rothschild que ela aparece.
“Emília. Os de língua enrolada a chamam de Emily. Emily Dickinson. Pois bem: ela escreveu um verso que eu acho que poderia perfeitamente ser meu também. Por essa altura, no ano passado, eu morri (Twas just this time, last year, i died). Mas como poderia ser meu se é dela?”.
Zé Limeira puxou então um pedaço de jornal que mantinha debaixo do seu prato de tripas fritas e mostrou uma frase grifada com catchup: “Naquela noite descobri que só se pode morrer uma vez, e quem morre este ano está livre de morrer no seguinte!”.
“Quem disse isso?”, perguntou Belchior. “Ernesto. Os de língua enrolada chamam de Ernest Hemingway”, disse o Zé, que prosseguiu: “Rapaz, é preciso dizer que Orlando Tejo, que não tenho visto ultimamente, tinha incumbido a si mesmo de uma missão na Terra, que era desmascarar os falsos literatos, derrubar o poleiro dos empolados, refogar a buchada dos laureados. Uma vez, ele e dois discípulos inventaram um poema que atribuíram a Drummond para testar uma banca de notáveis, e a banca acabou consagrando o falso poema de Drummond como uma obra-prima. O que eu disse a Tejo eu posso ter dito ou ele pode ter adivinhado, isso não faz diferença pra mim porque ele sabia o que precisava ser dito”.
Belchior já estava ficando à vontade com Zé Limeira.
“Me diga uma coisa, Antonio Carlos”, perguntou Zé Limeira, agora demonstrando já uma nova intimidade. “Você que chegou a ver o século 21 lá embaixo, aquilo tem jeito?”
Belchior sacudiu a garrafa de vinho, que voltou a encher. “Não”, respondeu, abaixando os olhos.
“Mas se a Terra já tem dono, o céu ainda não tem”, respondeu Zé Limeira, se apropriando de um verso de Belchior e fazendo um sinal na mesa do lado para Aldir Blanc se juntar a eles.
E encheram os copos mais uma vez.

 

 

Texto publicado originalmente na revista Parêntese, de Porto Alegre.

Jotabê Medeiros é jornalista e escritor, autor de Belchior – Apenas um rapaz latino-americano
(Todavia, 2017) e Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019)
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