Há duas questões imperativas para uma efetiva tentativa de superação do racismo no Brasil: a primeira é que não basta não ser racista, é preciso ser antirracista; a segunda é que a luta contra o racismo e o preconceito não é coisa de negro, mas uma luta de todos nós, de qualquer um que se indigne com qualquer forma de injustiça, sobretudo nos turbulentos dias atuais.
“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, escreveu Joaquim Nabuco, mais de século depois musicado por Caetano Veloso. A abolição da escravidão, em 13 de maio de 1988, não libertou, de fato, as pessoas escravizadas, vindas da mãe África. Empurrou os negros aos guetos, sem terra para produzir ou qualquer outra condição de trabalho.
Ou seja: exatamente como continua acontecendo até hoje, quando negros têm menor grau de escolaridade (em todos os níveis) e, consequentemente, menos oportunidades que brancos, ganham menos, têm menos acesso a políticas públicas e direitos sociais e são maioria absoluta da população carcerária brasileira.
O Canal Curta! estreia hoje (24), às 22h30 o documentário “Sobre sonhos e liberdade” [2020, 70 min.], coprodução Brasil-Portugal, dirigido pelos cineastas Márcia Paraíso e Francisco Colombo. O filme chega em momento oportuno, enriquecendo o debate, configurando-se em importante peça pedagógica, sem panfletarismo, discutindo questões fundamentais, com a alegria e a leveza características do povo brasileiro – embora haja controvérsias: a eleição do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro em 2018 descortinou as chagas da violência e do ódio e, com o estímulo de seus gestos e discursos irresponsáveis, levou o país a retroceder enquanto sociedade.
Se Paraíso e Colombo são cineastas brancos, não querem, no entanto, tomar o lugar de fala de ninguém: todos os personagens que comparecem à tela são negros, sem qualquer nível de hierarquização entre intelectuais, artistas e populares. Rodado no Recôncavo Baiano, berço do samba de roda e lugar de forte herança africana, o filme visita comunidades quilombolas e diversas manifestações culturais populares, entre mais e menos conhecidas.
A narrativa é conduzida pelo depoimento de Mateus Aleluia (ex-Os Tincoãs), lenda vida da música e da cultura popular brasileiras. Um senhor altivo e sereno, que conversa empunhando seu violão, dentro de um terreiro. “Só sei que eu sou negro por que tem pessoas que não são negras; só sei que eu sou gordinho, por que tem pessoas mais magras; só sei que eu não sou baixinho por que tem pessoas mais baixas do que eu, como tem pessoas mais altas; a nossa mente é comparativa”, diz, sábio, nunca a justificar qualquer tipo de discriminação. A lição possível é (por mais óbvio que possa parecer): as diferenças existem e precisamos conviver com elas, com respeito e harmonia. Ninguém é melhor do que ninguém nem deve ser assim considerado pela cor de sua pele, altura, peso ou qualquer outra característica.
“Não basta libertar o outro simplesmente pela lei, precisava depois, imediatamente, inventar, incrementar políticas de inclusão na sociedade; essas políticas vêm como? Eles têm que ter acesso a terra, para produzir, para sua economia de sobrevivência, eles deviam ter direito a educação, para serem preparados para entrar no mercado livre para concorrer com os imigrantes europeus que vieram, porque já era uma outra forma da economia, uma economia com outra forma de produção, de industrialização; eles não foram preparados para serem incluídos; então as desigualdades que já começam com a escravidão e depois da escravidão tem esse legado negativo, precisava políticas de inclusão na sociedade”, afirma, numa das passagens, o antropólogo Kabengele Munanga, autor de “Origens africanas do Brasil contemporâneo” (2009).
Sonhos e liberdade são estados de espírito que não podem e não devem nunca ser cassados.
Após a exibição de estreia, hoje, “Sobre sonhos e liberdade” terá várias reprises no Curta! e ficará disponível na plataforma de video on demand Tamanduá TV, do canal.