Emicida visita a canção em “AmarElo”

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Emicida - foto Júlia Rodrigues
Emicida - foto Júlia Rodrigues

O rap de Emicida tem se encaminhado lentamente na direção da canção, e AmarElo é, até aqui, o ponto culminante dessa trajetória. Bordado predominantemente na candura, AmarElo é um disco de raps-canções afetivos e afetuosos, que colocam Emicida e o hip-hop brasileiro num outro platô de observação das coisas da vida.

Vários são os temas idílicos do CD, e o maior deles talvez seja “Cananeia, Iguape e Ilha Comprida”, conduzido na levada de “Voo Sobre o Horizonte” (1977), do trio Azymuth. Mas não é só o mote que evoca a velha MPB – uma melodia rappeada acompanha os versos sobre pequenas alegrias da vida adulta em companhia das crianças, com direito a um (auto)sarro contra a dureza habitual do rap. Sim, o rap sabe, se quiser, cantar e tocar piano.

Outras faixas com essa pegada são “Pequenas Alegrias da Vida Adulta”, com piano de Marcos Valle, “9nha”, com Drik Barbosa e “A Ordem Natural das Coisas”, em duo com MC Tha, que trata com ternura de um tema doloroso: “A merendeira desce, o ônibus sai/ dona Maria já se foi, só depois é que o sol nasce/ de madruga que as aranha tece no breu/ e amantes ofegantes vão pro mundo de Morfeu/ e o sol só vem depois/ o sol só vem depois/ é o astro rei, ok, mas vem depois/ o sol só vem depois”.

Ainda no bloco da doçura está “Quem Tem um Amigo (Tem Tudo)”, sambossa-rap dedicado ao amigo Wilson das Neves e cantada com Zeca PagodinhoOs Prettos e a Tokyo Ska Paradise Orchestra: “Ser mano igual Gil e Caetano/ nesse mundo louco é pra poucos”. Juntas, as canções plácidas de AmarElo fazem lembrar de perto as baladas praieiras do idílico álbum Sonhos e Memórias – 1941-1972 (1972), do mestre Erasmo Carlos.

Evidentemente, a placidez não significa um abrandamento da braveza do rap, ou de Emicida. “Principia”, a faixa de abertura, cantada com Fabiana Cozza, equaciona perdas e ganhos, amores e raivas: “A música é só uma semente/ um sorriso ainda é a única língua que todos entende”, “enquanto a Terra não for livre eu também não sou”, “tudo que nós tem é nós”.

A já conhecida “AmarElo”, com a artista trans Majur e a cantora drag Pabllo Vittar, recorre à melodia alta de Belchior em “Sujeito de Sorte” (1976) para falar da depressão e combatê-la. “A meta é deixar sem chão quem riu de nóiz sem teto”, clama Emicida. “Só eu e Deus sabe o que é não ter nada, ser expulso/ ponho linhas no mundo, mas já quis pôr no pulso/ sem o torro, nossa vida não vale a de um cachorro, triste/ hoje cedo não era um hit, era um pedido de socorro/ mano, rancor é igual tumor envenena raiz/ onde a plateia só deseja ser feliz”, afirma o libelo antidepressão, citando Gonzaguinha.

“Ismália” concorre com “AmarElo” em densidade, ao falar de suicídio feminino com base no poema simbolista de Alphonsus de Guimarães (recitado ao final por Fernanda Montenegro), e ao mesmo tempo de suicídio masculino, com o narrador se comparando a Ícaro. “A felicidade do branco é plena/ a felicidade do preto é quase”, canta Larissa Luz, enquanto Emicida passa outro forte recado: “80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo”.

Nesse mesmo pique, “Eminência Parda” soma cantiga de roda na voz de Dona Onete e versos de ira: “Isso é deus falando através dos mano/ sou eu mirando e matando a Klu/ só quem driblou a morte pela norte saca/ que nunca foi sorte, sempre foi Exu”.

Embora o presente ecoe em AmarElo o tempo todo, a única faixa que fala abertamente do Brasil atual – e sem traço otimismo – é “Paisagem”: É louco como adianta pouco, mas olhe/ com sorte talvez piore”, “a rede social dá o que nós quer enquanto rouba o que nós precisa/ porque nada é sólido, nada”, “reconheça sério que o mal foi sagaz/ como um bom cemitério tudo está em paz”. Somos todos esse cemitério de que fala o rapper.

Como é habitual nos trabalhos de Emicida, a faixa final faz a síntese do que foi dito ao longo do disco. “Libre” conta com a participação forte do grupo franco-cubano Ibeyi, rima favela com Mandela e termina com recado-sonho direto e reto: “Se o gueto acordar/ o resto que se foda”. É o jeito Emicida de dizer-sonhar o mesmo que dizia-sonhava Belchior, “tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro/ ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”.

Emicida - foto Júlia Rodrigues
Emicida – foto Júlia Rodrigues
AmarElo. De Emicida. Laboratório Fantasma/Sony.
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