Em uma entrevista recente, o obstetra Jefferson Drezett, chefe do serviço de aborto legal do hospital Pérola Byington, em São Paulo, deixou ver uma pequena fresta da realidade terrível a que estão submetidas meninas e mulheres brasileiras. O médico revelou que “35% dos casos que atendemos são de adolescentes e crianças, grávidas de relações incestuosas”. A declaração passou quase despercebida, em meio à histeria de determinados setores da sociedade brasileira contra a presença de um artista nu dentro de um museu.
O espetáculo Enquanto Ela Dormia, que volta em cartaz no Teatro Vertigem, escancara a violência que cerca as mulheres tanto no espaço público quanto no interior de suas casas. Dora (vivida por Lucienne Guedes) é uma professora do ensino médio que sente empatia por suas alunas e ensina a elas sobre Antígona, a tragédia grega que descreve a opressão feminina, escrita por Sófocles 442 anos antes de Cristo.
Após presenciar uma cena de abuso sexual dentro de um ônibus, a professora vai depor em favor da vítima numa delegacia. A partir daí, ela se depara não só com a prepotência da lei e das autoridades patriarcais como com a emergência de traumas de infância há muito represados.
Em cena sozinha e dentro de uma caixa de ferro cercada de alambrados, vidros quebrados e bacias de lata – na cenografia sufocante de Marisa Bentivegna –, a atriz submerge ao fluxo de suas lembranças. A concepção visual é assumidamente inspirada nos autorretratos da fotógrafa norte-americana Francesca Woodman, que se suicidou aos 22 anos. Em uma imagem de grande força poética, Dora se joga na água que brota das paredes e alaga o assoalho, evocando a Ofélia de Shakespeare.
O texto da estreante Carol Pitzer, baseado em uma história real relatada por uma amiga e selecionado entre os projetos do Núcleo de Dramaturgia do Sesi-British Council, emociona sem deslizar para o sentimentalismo, efeito potencializado pela atuação matizada de Lucienne Guedes, que expressa a força e a delicadeza da personagem. Ao final, a peça desperta no espectador uma consciência mais vívida sobre a condição feminina no mundo de hoje, a revelação de uma opressão que, de tão antiga, naturalizou-se.
“Quando a coisa vem aguda, é mais fácil de reagir. Mas é um massacre crônico este a que estamos submetidas. Por isso, a gente se acostuma”, disse a diretora Eliana Monteiro, do Teatro da Vertigem, num debate com o público após a apresentação do domingo 1o de outubro de 2017. “Eu acho que, como mulher, eu dormia mesmo antes. Eu simplesmente não via tudo o que esta peça me apresentou.”
N.R.: Texto publicado originalmente em outubro de 2017 na edição impressa da CartaCapital