Belchior: ano passado eu não morro

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Lançado em 2004, meu livro Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (Boitempo) anda tão desaparecido como andou Belchior nos últimos anos de uma GRANDE vida. Em homenagem à morte do GRANDE artista e pensador cearense em momento histórico tão eloquente, resgato aqui (*) (com alguns reparos e penduricalhos) o capítulo devotado ao GRANDE homem no livro protagonizado por Roberto CarlosErasmo CarlosWanderléa etc.

Viva BELCHIOR.

 

Viva Belchior (1946-2017)

Não quero lhe falar, meu grande amor…

Havia perigo na esquina, e o perigo se chamava Belchior, que tanto Roberto como Erasmo Carlos notavam com simpatia nos primeiros minutos. Mas espere um pouco.

Antes disso, procurando solapar o silêncio imposto pelo regime ditatorial e tentando reatar o compromisso de brasilidade por através do silêncio, Milton Nascimento deu bela voz, em 1970, a um manifesto sul-americano chamado “Para Lennon e McCartney” e composto por Lô Borges, Marcio Borges e Fernando Brant, três integrantes do que passaria para a história como clube da esquina, de que Milton seria líder e porta-voz principal. Vociferavam os da esquina, querendo atingir John Lennon e Paul McCartney: “Eu sou da América do Sul/ eu sei, vocês nem vão saber/ mas agora sou caubói/ sou do ouro, eu sou vocês/ sou do mundo, sou Minas Gerais” [1]. Estavam preocupados em dinamitar os restos mortais dos Beatles e em se revalidar como cidadãos do mundo, mas John e Paul continuaram sem saber do lixo ocidental cá de baixo. O movimento mineiro ganhou força e prestígio, mas nunca chegou a adquirir contornos de penetração popular como os que conseguiam artistas “do povo” que varriam um espectro entre Roberto Carlos e Raul Seixas.

Quase concomitantemente aparecia um “clube da esquina nordestino”, construído de peculiaridades porque ficava no rincão ainda distante que era o Ceará e porque idolatrava apaixonadamente o tropicalismo personalista de Caetano Veloso. Estreando em disco em 1973, o dito Pessoal do Ceará (que, ao menos no LP Meu Corpo – Minha Embalagem – Todo Gasto na Viagem, se restringia a Ednardo e ao casal Rodger Rogério e Tetty), procurou fincar bandeira vinda de longe na história do pop brasileiro. Para aquele disco, Ednardo elaborou uma adaptação da passada “Para Lennon e McCartney” a que batizou “Terral”, que dizia mais ou menos assim: “Sou da América/ sul da América/ South America/ eu sou a nata do lixo, eu sou o luxo da aldeia, eu sou do Ceará”. Pouco depois, Ednardo voou solo e lançou O Romance do Pavão Mysteriozo (RCA Victor, 1974), encetando belíssima confissão de inadaptação na faixa “Pavão Mysteriozo”, mas de modo geral passando em brancas nuvens [2]. Por aqueles dias, o conterrâneo Raimundo Fagner também estreara em disco com Manera Fru Fru, Manera (Philips, 1973), homenageando-criticando seu ídolo Roberto Carlos (numa versão áspera do blues-iê-iê-iê “Nasci para Chorar”, vertido ao português em 1965 por Erasmo Carlos) e partindo para um discurso equivalente, como em “Cavalo Ferro”: “Montado num cavalo ferro/ vivi campos verdes, me enterro/ em terras tropicamericanas”. Em comum, todo aquele pessoal tinha a vontade ainda indecisa de migrar para o sul e fazer sucesso nacional (como haviam feito Caetano e Gil, vindos da Bahia, ou Milton, egresso de Minas Gerais). Estreavam no burburinho que ainda restava da cultura de festivais, embora houvessem, atrasados e mais longínquos, perdido o bonde do quiproquó de 1968. Ednardo, nascido em Fortaleza, em 1945, e Fagner, nascido em Orós, em 1950, viram de longe o rebuliço dos festivais da Record, tentando fazer o deles no microcosmo cearense e no ambiente universitário que frequentavam.

Belchior, 1974Eles tinham um amigo/parceiro chamado Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes. Nascido em Sobral, em 1946, 13º filho de uma família que chegaria aos 23, o futuro Belchior fora cantador de feira e poeta repentista em sua terra natal. Semi-migrou para Fortaleza para também se integrar à universidade (num inacabado curso de medicina). Iniciou o traumático período migratório vencendo no Rio de Janeiro o IV Festival Universitário da MPB, em 1971, com “Na Hora do Almoço”. Esperou ainda três anos para ter seu primeiro disco, juntando-se às estreias de Fagner e de Ednardo com Belchior (lançado pela gravadora brasileira Chantecler, em 1974), um disco todo pós-tropicalista, todo concretista, todo arroubado, todo arrojado.

Já de abertura, em “Mote e Glosa”, iniciava agressivamente nordestino, repetindo 28 vezes: “É o novo”. Em seguida, em “A Palo Seco” (que Ednardo lançara no disco do Pessoal do Ceará), de nome emprestado de poema de João Cabral de Melo Neto, aderia à retórica utópica sul-americana. “Tenho 25 anos de sonho e de sangue/ e de América do Sul/ por força deste destino/ o tango argentino/ me vai bem melhor que o blues”, cantava, inserindo melancolia própria no ideário da nova música cearense, num tema que era bem mais blues que tango. A voz anasalada, desencontrada, bem sertaneja, conduzia a um recado final de poesia dura e concreta, que era rascante, quase assassino, talvez suicida: “Eu quero é que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês”. Quando o recado revoltado não vinha com esse grau de objetividade e agressividade (coisa que acontecia também na canção de ódio familiar “Na Hora do Almoço”, francamente influenciada pela tropicalista “Deus Vos Salve Esta Casa Santa”, de 1968, de Caetano Veloso e Torquato Neto), o disco evitava ceder ao palatável, recaindo no discurso concretista muito influenciado pelo Walter Franco de Ou Não (Continental, 1973) e pelo breve Caetano Veloso de Araçá azul (Philips, 1973) de “Bebelo”, “Máquina” (em duas versões) e “Cemitério” (esta influenciada pela tropicalista “Miserere nobis”, de Gilberto Gil e Capinan). A linguagem estava interditada, Belchior tentava fazer poesia visual com sua garganta inóspita, quase fanha, sob abundantes arranjos de cordas – e com muito sentimento blue de revolta.

Soou agressivo e hermético, passou em brancas nuvens, um pouco como já acontecera e continuava acontecendo aos parceiros de ex-exílio cearense. O destino reservava a Belchior, no entanto, uma rota diferente da de seus colegas originais, pelo menos numa primeira fase das carreiras de todos eles, a dos herméticos anos 70. Se Fagner e Ednardo conquistaram prestígio razoável e popularidade regular com receitas de concretismo, densidade poética e hermetismo, Belchior caiu primeiro no agrado do grande público, principalmente a partir do fato de Elis Regina tê-lo tomado como compositor-revelação e gravado, num só golpe, dois futuros sucessos tanto do campo da MPB intelectualizada quanto do pop de apelo de massa: “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”. As duas abriram o disco Falso Brilhante (Philips, 1976), em que Elis aderia com vivacidade às utopias latino-americanas, associando Belchior com a panfletárias “Gracias a la Vida”, da chilena Violeta Parra, e “Los Hermanos”, do argentino Atahualpa Yupanqui, além de três panfletos mineiros-cariocas/suburbanos da dupla João Bosco/Aldir Blanc. (Elis e Wilson Simonal foram os primeiros intérpretes a gravar a breve dupla Fagner-Belchior, ambos em 1972, ela com “Mucuripe”, ele com “Noves Fora”).

Alucinação, 1976, de BelchiorO disco de Elis saiu quase simultaneamente a Alucinação, que marcaria a estreia de Belchior no conglomerado Philips (que já havia perdido Fagner, após um único disco gravado, mas queria manter a mítica da gravadora que possuía os mais contemporâneos e acachapantes artistas em seu elenco). Mas antes “Como Nossos Pais” já estava em circulação na voz de Elis, na temporada do show Falso Brilhante, que só mais tarde seria transformado em disco. “Paralelas” também colocaria por essa época Belchior em evidência, dessa vez na voz de Vanusa [3], mas as duas gravações de Elis foram essenciais para que o até então marginalizado cearense passasse a ter existência artística para todos os efeitos. Para Belchior, o advento de Elis podia significar sua admissão num lugar cobiçado, mas que não era bem dele – cinco anos mais novo que Roberto e Erasmo, quatro anos mais novo que Caetano e Chico, chegando atrasado ao cenário nacional, Belchior não era nem da geração daqueles todos nem da geração seguinte; estava sentado à beira do caminho das gerações. Para Elis, no entanto, aderir ao discurso de Belchior em “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida” embutia significados multifacetados – o principal dos quais um manifesto contra sua própria geração, uma corajosa autoprovocação dirigida não só à sua geração platinada como a ela própria, individualmente.

O arranjo de “Velha Roupa Colorida” descoloria um pouco a canção como um todo, por não primar pela sutileza. Mas colocava Elis numa posição estranha, de criticar as velhas roupas coloridas da geração hippie (à qual ela nunca se integrara de fato, chegando ao extremo de se opor com fúria ao lado mais colorido do hippie brasileiro – ou seja, a tropicália), e de engavetar nisso aí uma revisão cruel de tudo que ela própria vivera. “Você não sente, não vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo/ que uma nova mudança em breve vai acontecer/ o que há algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo/ e precisamos todos rejuvenescer”, cantava Elis, feito uma Janis Joplin entupida de blues. Já intérprete veterana, ela estava nisso alertando para a necessidade de renovação que vivia a MPB, e fornecia a Belchior o posto de arauto de tal nova geração, que ela por sua vez estava vindo anunciar. Belchior, quando escrevera tais versos, pensara em seus ídolos e heróis, que por ansiedade ou angústia de influência ele sentia necessidade brava de suplantar. Citava vários deles no segundo bloco da canção, quando executava um jogo concretista espelhado entre “never” e “raven”, ou seja, entre “nunca” e “corvo” – citando literalmente o poema “O Corvo” e seu autor, o norte-americano Edgar Allan Poe. Entre citações entrecruzadas aos Beatles, aos Rolling Stones, a Bob Dylan, a João Gilberto (“amor e flor”) e a Caetano Veloso (“cabelo ao vento”), o corvo de Poe voava do século XIX para cá, transmutando-se na poética de Belchior primeiro no “Blackbird” dos Beatles, depois no “Assum preto” de Luiz Gonzaga: “Blackbird me responde: ‘Tudo já ficou pra trás’”, “Assum preto me responde: ‘O passado nunca mais’”. Ironicamente, era o passado que dizia ao poeta narrador que o passado morrera; e assim fazia também Elis Regina, cantando tal canção e pensando (mas apenas em parte) estar alfinetando os tropicalistas, ídolos coloridos inequívocos de Belchior. Deslocando o eixo para lá do heroísmo musical, a canção pretendia ser mesmo uma crítica de geração, inconformada com o aborto da efervescência dos protestos pré-AI-5: “Nunca mais você saiu à rua em grupo reunido/ o dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor, que é do cartaz?/ no passado a mente, o corpo é diferente/ e o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Ambíguo, o narrador pretendia comemorar o passar do tempo, avisando que a roupa antiga das passeatas e dos protestos ficara puída. Mas isso era menos uma celebração que um lamento, em que a identidade bipartida Elis/Belchior conclamava de volta os seus, criticando a geração e meia que ambos, juntos, constituíam. Política de autocrítica, lamentava-se a acomodação dos antigos e novos passeantes, também porque não se podia condenar a ditadura que enfiara a todos debaixo da cama do medo e do terror noturno. Elis, frequentemente suspeita de reacionarismo, era quem peitava chamar de volta, mesmo que discretamente, o espírito “passado” das passeatas. Porque, ora, não era justamente o passado, o pássaro mítico nordestino assum preto (aquele dos olhos furados para que cantasse melhor, aquele que fizera Gal Costa cantar melhor numa declaração de amor a Luiz Gonzaga), quem acusava a morte do passado?

O jogo ambíguo e indeciso se completava em “Como Nossos Pais”, canção-mito da MPB pela interpretação sofrida e lancinante que Elis Regina lhe imprimiu. Ali estava de novo a provocação inconformada sobre o abandono da cultura de passeatas e festivais: “Já faz tempo eu vi você na rua/ cabelo ao vento, gente jovem reunida/ na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais”. Internalizava-se a dor provocada de fora para dentro pela censura militar, e o narrador ousava acusar os seus (e a si próprio) de adotarem procedimento equivalente a de seus pérfidos pais (os militares, bem entendido): “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos/ ainda somos os mesmos e vivemos/ ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. A primeira mensagem era “ainda somos os mesmos e vivemos” – uma elegia implícita (e apenas retórica) a quem optara pela resistência, pela luta armada e, muitas vezes, pela morte. No segundo turno virava “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais” – corrosivo por demais, o narrador equiparava a juventude de 1976 a seus carcereiros, ou, menos, os jovens entrando agora na música com vários ídolos de 1968 agora esmorecidos. Uma referência mais direta à nata pensante da MPB pré-AI-5 se dava no trecho “hoje eu sei que quem e deu a ideia/ de uma nova consciência e juventude/ tá em casa guardado por Deus contanto vis metais”. Os mais atingidos aqui eram Roberto Carlos, ídolo iê-iê-iê transmutado em 1976 em Frank Sinatra pós-juvenil [4], e os tropicalistas, que mais que ninguém haviam desferido novas consciência e juventude a quem os recebera de queixo caído em 1968. Elis, militante e resistente em 1968, pregava-se a peça da autocrítica, querendo metabolizar em 1976 o que não acreditara ter feito em 1968. Belchior criticava a tudo e a todos, feito roleta russa de metralhadora giratória, se é que isso existia.

Havia lotes de decepção ambígua na longa letra de “Como Nossos Pais”. Em “viver é melhor que sonhar/ eu sei que o amor é uma coisa boa/ mas também sei que qualquer canto/ é menor do que a vida de qualquer pessoa”, ao mesmo tempo suspeitava da veracidade do amor e desdenhava do poder mítico da canção, para ele ainda menor que a vida cotidiana de cidadão qualquer – noções de homens como Rogério Duprat e Tom Zé, anti-heróicos e anti-heróis por princípio e ética, estavam impregnadas no coração antiestelar de Belchior. Em “Por isso cuidado, meu bem, há perigo na esquina/ eles venceram e o sinal está fechado pra nós/ que somos jovens” colocava frente a frente e cara a cara o “tudo é perigoso/ tudo é divino, maravilhoso” de Caetano e Gil e o “sinal fechado” de Paulinho da Viola – quem vencera fora o espalhafato talvez vazio da tropicália, quem perdera fora a consciência provavelmente contrita do samba pós-bossa nova; mas também quem vencera fora a repressão militar, quem perdera fora a juventude idealista destroçada pelo AI-5. Enfim, em “nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam, não/ você diz que depois deles não apareceu mais ninguém/ você pode até dizer que eu tô por fora/ ou então que eu tô inventando/ mas é você que ama o passado e que não vê/ que o novo sempre vem”, Elis e Belchior se uniam para decretar, uma vez mais, a falência do passado e para celebrar o iminente advento do novo. Elis tentando suicidar-se, Belchior tentando ser o novo, encetavam um inédito brado de ruptura, que entretanto era muito mais textual que musical (e portanto parecia bem menos novo que a antiga tropicália).

A convivência entre o velho e o novo, ou melhor, entre o velho precoce e o novo precocemente envelhecido, entre Elis Regina e Belchior, transformava a canção em pleno paradoxo. E “Como Nossos Pais” conquistaria ouvintes apaixonados ao decorrer longo das décadas, um pouco pelo poder de sedução da constatação geracional atormentada e sempre válida de que “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais” e muito pela profunda melancolia de arranjo e interpretação somada à extrema coragem de Elis Regina em cantar tais palavras. “Como Nossos Pais” saía dos grotões do Ceará para a condição de uma das mais importantes e gigantescas gravações já feitas em música popular brasileira, por uma artista que cumpriria o mito e se semi-suicidaria de fato cinco anos mais tarde.

E ainda haveria, por cima desse barulho todo, a interpretação do próprio autor.

No disco Alucinação, tais conflitos, na voz acaipirada e fanhosa do compositor, ganhavam contornos, sim, de conflito geracional, mas de um conflito geracional interno. Isso estava brilhantemente exposto na faixa “Sujeito de Sorte”, nos versos “presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte/ porque, apesar de muito moço/ me sinto são e salvo e forte/ e tenho comigo pensado: ‘Deus é brasileiro e anda do meu lado’/ e assim já não posso morrer no ano passado”. É claro que trocando “velho” por “novo” na proposição “apesar de muito velho me sinto são e salvo e forte” Belchior estava provocando o sistema repressivo, que entre torturas, desaparecimentos e assassinatos tornara a juventude forma de risco de vida. Mas dentro disso havia o conflito interno novo/velho, de quem estava no meio de duas gerações, de quem deveria ter acontecido em 1968, mas teve de mendigar espaço por muito mais tempo que outros pouco mais velhos do que ele. De novo, não poder morrer no ano passado era expressão da angústia do autor diante de suas perspectivas temporais. Magoando-se por não se sentir ouvido, já regravava “A Palo Seco”, repetindo a assinatura cruel, quase sádica, de que “eu quero é que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês”.

Mas Alucinação, que por muitos prismas poderia ser considerado o primeiro álbum de Belchior, era um beijo e um soco no grande sistema da música popular brasileira. Era um beijo porque Belchior fora convencido, ao menos por ora, a abrandar o furor concretista, hermético e anticomercial do disco anterior e a enfileirar uma rede de melodias tristonhas de altíssimo potencial popular no Brasil ainda triste de 1976 – mais que isso, o fazia dentro de uma combinação em nada revolucionária (nem havia músicos especialmente brilhantes o acompanhando nesse disco), mas em tudo inusitada, de letras quilométricas à Bob Dylan, mais estruturas de blues, de rock e de country rock, mais um evidente fundo de forrós nordestinos que saltava para primeiro plano aqui e ali. Era um soco porque, por trás disso, era a declaração de guerra de Belchior a uma plêiade assustadora de ressentimentos e enfrentamentos atávicos, históricos, nordestinos, poéticos, contemporâneos, musicais, filosóficos. A declaração desses princípios de guerra estava na faixa “Como o Diabo Gosta”: “O que transforma o velho no novo [5]/ bendito fruto do povo será/ e a única forma que pode ser norma/ é nenhuma regra ter/ é nunca fazer nada que o mestre mandar/ sempre desobedecer, nunca reverenciar”.

Estava em campo, portanto, o discípulo cheio de angústia de influência, que fazia dessa angústia desobediência e irreverência. Os primeiros dardos vinham já na primeira canção, “Apenas um Rapaz Latino-Americano”, para sempre uma das que marcariam a tez artística do moço nordestino, carrancudo, machão, de coração duro – o anti-Roberto Carlos, portanto –, que apesar dessas características todas virava agora poeta da canção popular. As primeiras farpas iam para o mestre tropicalista Caetano Veloso, pouco mais velho, mas até então (e para sempre, na verdade) bem mais sortudo que Belchior. Primeiro o narrador lembrava que não lhe saía da cabeça a canção de rádio que dizia que “tudo é divino, tudo é maravilhoso”; logo adiante, contrariava o mestre, afirmando: “Mas sei que nada é divino/ nada, nada é maravilhoso, nada”, não sem antes haver atacado também outra canção de Caetano, “É Proibido Proibir” (1968), achando (com toda razão) que em 1976 “tudo é proibido”. Belchior provocava com plena consciência e noção de perigo, e assim se justificava, diante uma pergunta do jornalista Tárik de Souza, sobre se sua música era um rescaldo do tropicalismo: “Creio que sim. Liquidando as últimas unidades do estoque. Principalmente porque acho que estava precisando. Era uma emergência de consciência, isso. As pessoas estavam na expectativa de reflexão artística sobre esse trabalho, de que do ponto de vista estético alguém se manifestasse. É um dado ousado, sabe? O artista não faz isso impunemente. Tenho toda a tranqüilidade de quem sabe disso. Ninguém pode cantar como convém, sem querer ferir ninguém. Isso está numa das músicas” [6]. Sublinharia algo parecido em 1977, já em fase mais cuidadosa em relação a provocações em excesso: “Eu acho que esse pessoal do tropicalismo teve uma contribuição importantíssima na nossa música. Mas não tenho diante deles uma atitude de idolatria. Acredito que, para a sua época, eles trouxeram mudanças muito importantes. Mas, hoje, eles prosseguem fazendo aquelas coisas na base de magia, de misticismo, como se ainda vivêssemos na década de 60. Eles se recusam a adotar um comportamento racional para interpretar a realidade” [7]. Fazia pois essas provocações aos ídolos tropicalistas, não maiores que as que Elis Regina já portara em “Como Nossos Pais”.

Mais importante em “Apenas um Rapaz Latino-Americano” era a declaração de princípios que norteraria suas convicções e o grosso de sua obra: “Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve/ correta, branca, suave, muito limpa, muito leve/ sons, palavras são navalhas/ eu não posso cantar como convém/ sem querer ferir ninguém/ mas não se preocupe, meu amigo,/ com os horrores que eu lhe digo/ isto é somente uma canção/ a vida realmente é diferente/ quer dizer, ao vivo é muito pior”. Essa ia, na mosca, ao coração de Roberto Carlos e de todos que compreendiam como RC a canção, como gangorra dos romantismos e/ou carrossel multicolorido de parquinho de diversão. A canção era cruel, mas a vida, ah, a vida… era ainda muito pior, segundo as convicções de Belchior.

E, para quem pensasse que aquele narrador estava se colocando em confronto direto com a passividade romântica de Roberto Carlos e com a “neutralidade” “apolítica” de Caetano Veloso, não era só contra eles que Belchior voltava baterias. Sobrava também para Raul Seixas, o inverso conceitual de Roberto e o reverso comportamental de Caetano. “Alucinação”, canção-título, nem era direcionada explicitamente a Raul, mas antes a toda a geração “perdida” que se entregara, desde o início da década de 70, à desideologia do desbunde, do barato total, da entrega desesperançada à cultura das drogas contra qualquer pretensão de ativismo político. Ney Matogrosso recebia estocada que podia ser interpretada como grosseira, talvez mesmo homofóbica: “Um rapaz delicado que canta e requebra (é demais?)” [8]. Vestindo a roupa de careta revolucionário, o narrador afirmava que não estava interessado em nenhuma fantasia, e atacava: “A minha alucinação é suportar o dia-a-dia/ e o meu delírio é experiência com as coisas reais”. Havia, de fato, uma citação remetida a Raul, em “eu não estou interessado em nenhuma teoria/ nem nessas coisas do Oriente, romances astrais” – Gilberto Gil andava às voltas com macrobiótica, refazendas e sabedorias orientais; Raul cantara o bem e o mal de braços atados num “romance astral”, em “O Trem das 7” (1974). Apesar de citado de raspão, o maluco beleza que pregava a formação da “sociedade alternativa” vestiu direitinho a carapuça. Ainda em 1976, compôs e lançou “Eu Também Vou Reclamar”, em resposta principalmente a Belchior: “Apesar dessa voz chata e renitente/ eu não tô aqui pra me queixar/ e nem sou apenas o cantor [9]/ (…) mas agora eu também resolvi dar uma queixadinha/ porque eu sou um rapaz latino-americano/ que também sabe se lamentar”. Belchior declararia, sobre polêmicas dessa natureza: “Aprendi, pela literatura, que polêmica e divergências de ideias são coisas enriquecedoras. A história é feita de tensões e oposições” [10]. Desgraçadamente para ele, o epípeto de “chato” amplificado por Raul Seixas pegaria, e seria ecoado pela imprensa em reportagens e críticas.

Derrotada a tradição da briga e da luta verbal no Brasil, tal duelo musicado parece até frivolidade, mas em 1976 refletia mais um hábito saudável que uma rixa vã e vil entre astros abregalhados. Desse liquidificador, não custa lembrar que tanto Belchior como Raul e Caetano pertenciam à mesma gravadora e estavam sob os auspícios do mesmo André Midani – sentindo-se atingido, Raul tomou a briga para si e respondeu na lata, coisa que Caetano não faria jamais. O debate, se persistisse, ia continuar só entre os representantes populares do anticarlismo. No mais, Belchior tentava explicar na própria “Alucinação” a razão de tanta provocação, e usava para isso uma convicção tão cândida quanto duvidosa: “Amar e mudar as coisas me interessa mais”.

No reverso do pedido de mudança dos outros, havia a manifestação magoada e menos autocrítica de suas próprias penas. “Fotografia 3 x 4” era a canção-símbolo desse lado do autor e, ao que atestavam inúmeras entrevistas dele à imprensa na segunda metade dos anos 70, era pura autobiografia. Entre citações cruzadas a Luiz Gonzaga e Fernando Pessoa, o narrador contava sua sina de retirante que vinha dar nas metrópoles do sul (Rio e São Paulo, onde Belchior viveu alternadamente antes do sucesso), sofria batidas policiais constantes (por causa da aparência “suspeita” de nordestino pobre), tinha de morar no bairro carioca marginal da Lapa, não conseguia se adaptar e se integrar a crises familiares e a questões monetárias, por coração endurecido não sabia ou não podia conservar o amor (“a mulher que eu amei não pôde me seguir, não”), dormia ao relento (“a noite fria me ensinou/ a amar mais o meu dia”)… Tudo desembocava, evidentemente, na revolta angustiada contra Caetano. “Veloso, ‘o sol (não) é tão bonito’ pra quem vem do norte e vai morar na rua”, lamentava, referindo-se gráfica e antropofagicamente ao verso “o sol é tão bonito”, de “Alegria, Alegria” (1967). Traumatizado com as contingências por que passou e pela carência ressentida que o acometia, o narrador buscava se salvar na identificação com o público, com o brasileiro médio que ia ouvi-lo e possuía, provavelmente, história parecida com a sua: “A minha história é talvez igual à sua/ jovem que desceu do norte e que no sul/ viveu na rua e que ficou desnorteado/ como é comum no seu tempo/ e que ficou desapontado/ (…) e que ficou apaixonado e violento/ (…) eu sou como você”. À violência social que recebia na testa, o narrador respondia com violência interna equivalente, à maneira mesma do adolescente Alex da Laranja Mecânica (1971) de Stanley Kubrick (citada literalmente, aliás, na faixa “Alucinação”). O conflito essencial, por cima de outros muitos e fortes, era o da adolescência vivida em tempo inadequado, do sentimento de inadequação ao tempo (à idade) e à geografia (o sentimento de auto-exílio acometendo o retirante nordestino). A tristeza era a prova dos nove de Belchior, como era também a de Roberto Carlos. No primeiro, a tristeza era expelida com gases fétidos de vômito. No segundo, era ruminada e transtornada em medo calado, em pânico reprimido. “Eu sou como você” era constatação de aprendiz dirigida ao mestre Roberto Carlos, mais que a qualquer outro brasileiro.

 

* * *

 

Coração Selvagem, 1977, de BelchiorE então Belchior seguiu André Midani e foi participar da criação da Warner do Brasil – possivelmente como carro-chefe da nova gravadora, dadas as vendagens expressivas (em torno de 100 mil exemplares, dizia-se) de Alucinação. Para turbinar tal possibilidade, foi agregada à imagem do macho latino-americano bigodudo um novo rótulo, de “sex symbol”. A capa do disco Coração Selvagem (1977) expunha um Belchior de torso nu, banhado de mortiça luz lilás. Os anos seguintes Belchior passou desmentindo à imprensa a intenção de ser símbolo sexual, mas as mulheres passaram a desafogar comportamento de histeria sexual em seus shows, e nunca ficou totalmente esclarecido se o latin lover nascera do próprio Belchior, de estratégia da Warner ou de espontaneidade.

Belchior parecia enquadrado nesse novo disco, Coração Selvagem (1977). Encolhia-se a metralhadora giratória de citações, quanto mais se fossem no estilo provocativo do disco anterior – essas praticamente não haviam, ao menos não da forma literal e audaz de antes. Restava para a literalidade (mas também nem tanto assim) a faixa-título, que abria o disco citando Caetano, Gal, Roberto e Erasmo. O narrador repetia “meu bem, meu bem, meu bem” como em “Sua Estupidez” (lançada em 1969 por Roberto e regravada em 1971 por Gal Fatal), para afinal fazer a ponte com os estrangeirismos da jovem guarda e de “Baby”, o hino tropicalista cantado em 1968 por Gal e Caetano: “Meu bem, meu bem, meu bem/ que outros cantores chamam baby”. Nem era propriamente crítico, a não ser no trecho duro que dizia que “talvez eu morra jovem/ alguma curva do caminho/ algum punhal de amor traído/ completará o meu destino”. Desconfortável diante da noção de traição que seus princípios de discípulo rebelde aos ídolos lhe atraía, o narrador previa morte breve (morte artística, será?) e encetava mais uma provocação: citava de passagem “As Curvas da Estrada de Santos” de Roberto e Erasmo, mas colocava como aposto à citação a idéia do “amor traído”, um tema tabu para os jovens senhores católicos da jovem guarda, que até admitiam ser trocados por outro em suas canções, mas jamais se colocavam na posição de namorado traído (afinal, a traição era e é e sempre será um pecado, de acordo com o ideário romântico-cristão).

Em sinal de enquadramento também musical, instrumentistas de linhagem foram convocados para Coração Selvagem, e José Roberto Bertrami (o indefectível tecladista do Azymuth, hegemônico em discos dos anos 70) foi incumbido dos arranjos de base, que tomavam um inesperado tom movido por órgãos e coros femininos. Soava algo new age, uma tentativa não muito bem sucedida de encontrar o “novo” som. O que não mudava era a tônica textual da busca desesperada pelo novo – reivindicada ainda naquela tecla do conflito interno de meia geração que acometia Belchior, de novo compositor solitário de todas as canções do álbum. A obsessão pelo novo aparecia em “Caso Comum de Trânsito”, agora com enfoque autocrítico, desencantado, impotente: “Você fica perdendo o sono, pretendendo ser o dono das palavras, ser a voz do que é novo/ e a vida, sempre nova, acontecendo de surpresa, caindo como pedra sobre o povo”. Reaparecia na retomada de uma música perdida no álbum de estréia, “Todo Sujo de Batom”, em que agora se podia perceber bem o conflito geracional do narrador. “Quero uma balada nova, falando de brotos, de coisas assim,/ de money, de banho de lua, de ti e de mim,/ um cara tão sentimental”, cantava o pregador do novo, ao mesmo tempo em que citava velharias como os brotos do iê-iê-iê, o “Money” dos Beatles, o “Banho de Lua” de Celly Campello, a retórica sentimental à Altemar Dutra e, claro, Roberto Carlos. Aparecia, sobretudo, na obscura canção-manifesto de Coração Selvagem, “Clamor no Deserto”.

Essa última era onde o linguajar cru e cruel de antes reaparecia de forma mais nítida, desde o início: “Eh, meus amigos/ um novo momento precisa chegar/ sei que é difícil começar tudo de novo/ mas eu quero tentar”. Trovador esganiçado de deficiente dicção, partia então para a constatação precoce de que sua rota não seria plana: “A minha garota não me compreende/ e diz que desse jeito apresso o meu fim”. “Minha garota”, no contexto, podia ser facilmente substituída por “críticas”, “pressões”, “perplexidade” de quem não estava acostumado com nem pretendia ficar ouvindo as navalhadas na carne de Belchior. Se ele era a voz do não, “não” seria o que mais provavelmente iria ouvir de volta, e “Clamor no Deserto” demonstrava que esse contragolpe já fazia efeito no autor. Pois seguia a canção, abertamente incomodada com as más reações estimuladas por seu cancioneiro mórbido: “Quem me conhece me pede eu eu seja mais alegre/ mas é que nada acontece que alegre meu coração”. “Clamor no Deserto”, entretanto, decretava que não haveria capitulação, pelo menos por ora, e ainda arriscava uma nota sarcástica de espírito enfant terrible contra o que se acusava haver em suas canções: “Ano passado, apesar da dor e do silêncio,/ eu cantei como se fosse morrer de alegria/ hoje eu lhe falo em futuro e você tira o revólver/ puxa o talão de cheque e me dá um bom-dia”. A conclusão era a mais pessimista possível, citando o “grande irmão” pré-apocalíptico do romance 1984, de George Orwell: “Mas só falta um tempo para 1, 9, 8, 4/ agora eu estou em paz: o que eu temia chegou”.

O profundo desencanto de “Clamor no Deserto” se consumava em isolamento – o autor julgava estar jogando pérolas aos porcos, ao que parece – e se completava em outros momentos do disco. Pululavam canções sobre medo (“Pequeno Mapa do Tempo”, composta segundo ele em 1968 [11]), melancolia (sua gravação para “Paralelas”, já analisada no capítulo anterior), dor e infelicidade. Nesses dois últimos quesitos, era imbatível “Galos, Noites e Quintais” (lançada no ano anterior pelo sambista paulista Jair Rodrigues), de um narrador que lamentava profunda e nostalgicamente seu momento presente: “Quando eu não tinha o olhar lacrimoso/ que hoje eu trago e tenho (…)/ eu era alegre como um rio,/ um bicho, um bando de pardais”. O desenlace da canção optava pela lamúria (“mas veio o tempo negro e a força fez/ comigo o mal que a força sempre faz”), mas também por corajosa confissão de infelicidade (“não sou feliz, mas não sou mudo/ hoje eu canto muito mais”). Versos de tal canção teriam fundamental importância no cenário político brasileiro de então, mas é que em tudo que Belchior cantava saltava ao primeiro plano de sua voz inadaptada e indomada uma preponderância pessoal, existencial, um mal do século fincado no século errado.

Todos os Sentidos, 1978, BelchiorO composto de estratégias, desencantos e poses de sex symbol funcionou: em apenas três meses, Coração Selvagem vendeu 80 mil cópias. E credenciou produção rica e procura de modernização para o disco seguinte pela Warner, Todos os Sentidos, de um Belchior em fundo negro, camisa aberta, mão no rosto, olhar fatal. Já era 1978, e estava mais claro para onde tendia a se direcionar aquela ideia sexista que envolvia a embalagem do artista cearense. Desde o disco anterior para cá, chegara ao Brasil o boom norte-americano da discothèque, que ganhava contornos de massa pelo potencial popular da novela global Dancin’ Days, de Gilberto Braga. A música-tema da novela, de mesmo nome, era interpretada pelo grupo feminino de disco music Frenéticas, que lançara seu primeiro álbum no ano anterior, pela mesma Warner de Belchior. Havia no ar uma nova proposta hedonista, a tal política do corpo, o vale-tudo sexual movido não mais a maconha ou LSD, mas agora, principalmente, a cocaína (essa veia aparecia exposta na canção de marginália “Ter ou Não Ter”, uma epopeia deslindada em sexo por dinheiro, drogas e assassinato que inspiraria, anos mais tarde, sua filhota “Faroeste Caboclo”, da Legião Urbana de Renato Russo). Todos os Sentidos revelava que a estratégia que movia Belchior era a mesma da linha mestra da Warner, de injetar no Brasil balanço funk, música para dançar, energia sexual anfetaminada e energizada pela cocaína.

Convocou-se para a maioria dos arranjos do disco o futuro mago dos sintetizadores e dos arranjos primeiro funkeados, em seguida de pique discothèque, mais adiante new wave: Lincoln Olivetti, que já andava envolvido com o artista que mais se adequava a sua proposta, Tim Maia. As Frenéticas foram instadas a participar de forma ostensiva numa faixa – possivelmente contrariado, Belchior fê-las pronunciar letra francamente antipop, quase toda em latim (enquanto o próprio autor mencionava em inglês referências pós-modernizadas a Beatles, Bob Dylan e Cole Porter). Era uma garatuja musical, e Belchior parecia mesmo não desejar outra coisa para o esquisitíssimo disco-funk “Corpos Terrestres”. Letras complicadas em português mesmo acompanhavam outros exemplares discothèque do álbum, como o desastrado coro disco-funk de uma nova versão para a antiga “Na Hora do Almoço” (a terceira em sete anos) ou “Como se Fosse Pecado”. Sinal a mais de um Belchior iracundo, nessa última, quase toda conduzida por músicos norte-americanos, o efeito discothèque tinha de conviver com versos concretistas (“batuco um canto concreto pra balançar o coreto”) e diversas citações textuais ao cancioneiro brasileiro de Geraldo Pereira, Herivelto Martins e Marino Pinto, Jorge Ben, Ednardo – mas também aos Beatles.

Se até aqui tudo parecia a vontade meio desastrada de fazer de Belchior um John Travolta tropical, havia também a exposição frontal da política do corpo. Começava por “Sensual”, em que Belchior soava suave como nunca anteriormente, numa letra que parecia querer conquistar o público feminino suscetível à imagem do amante latino que ele já forjara. E encontrava ponto principal em “Bel-Prazer”, mais um inventário belchioriano da canção brasileira, com citações a “Irene” (de Caetano), “Soy Loco por Ti, América” (de Gil e Capinan), “Luar do Sertão” (de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco) e outras. O pressuposto estava em “achar (ou inventar) um lugar/ tão humano como o corpo/ onde pensar e gozar seja tão livre e legal/ como as razões de Estado”, e o último bloco parecia querer fazer um inventário do Brasil a partir do tropicalismo: “Entrar ou sair da escola/ mulher/homem/homem/mulher/ como luar no sertão/ como lua artificial/ como roupas comuns/ como bandeiras agitadas/ festival estranho festa/ feriado nacional”. Eis aí o dilema: o novo que tanto buscava o quase-novo Belchior se materializara em disco music, política do corpo e hedonismo cocainado. O artista tentava aderir aos novos preceitos, mas tão intoxicado como sempre pelos hálitos tropicalistas. Homem de meia-geração, primeiro ficara correndo para alcançar a geração imediatamente passada, sabendo que nunca teria sucesso nesse intento. Agora, dava de cara com a nova geração, e ela era muito bem representada pela futilidade adrenalinada das Frenéticas, pela ausência quase completa de tutano dentro das canções. Belchior não pertencia a nenhuma das duas pontas, e o que sempre temera estava acontecendo: era novo demais para os velhos, velho demais para os novos. Era o carneiro do sacrifício da meia-geração, como seriam também muitos dos seus, como Fagner, Zé Ramalho, Ednardo e Geraldo Azevedo. A história seria inclemente para com todos eles.

Em seu caso, a perdição à espreita era a guinada tão forte a que era forçado, de pular de uma poética bravia e muito planejada ao vazio conceitual da discothèque. A impossibilidade desse salto chamava-se Todos os Sentidos, que então escondia envergonhadamente os valores bem belchiorianos que possuía. Tal era a canção “Divina Comédia Humana”, uma reflexão intimista (e espanholada no arranjo, e presenteada com citação a poema do parnasiano Olavo Bilac) sobre a incapacidade de amar de narrador que choramingava, algo incrédulo, entre confissões de lençol: “Aí um analista amigo meu/ disse que desse jeito não vou ser feliz direito/ porque o amor é uma coisa mais profunda/ que um encontro casual”. Tal era, principalmente, a perigosa “Brincando com a Vida”, em que se entregava o narrador: “Vida, eu não aceito, não, a tua paz/ porque meu coração é delinquente juvenil/ suicida, sensível demais/ vida, minha adolescente companheira,/ a vertigem, o abismo me atrai:/ é esta a minha brincadeira/ eu estou sempre em perigo/ o dia D, a hora H, o bang, o click do gatilho”. Da ponta do ser de sombra que se refestela pelos encontros sexuais causais à do suicida que precisa da sensação do perigo para viver, era o anti-romântico em desespero quem estava em ação. Ou talvez fosse o romântico propriamente dito, mas em estágio de dizimada auto-estima. Era, de todo modo contra-exemplo do romantismo de Roberto Carlos, embora talvez fossem muito parecidos afinal.

A crítica detestou Todos os Sentidos.

Era uma Vez um Homem e Seu Tempo, 1979, BelchiorMas o que importava era que o próprio Belchior não se sentia bem dentro da nova-velha roupa colorida da discothèque, e se esforçou por despi-la momentos depois. A alternativa, após tal decisão, era mesmo ficar nu, e de sua nudez nascia mais um disco, ‘Era uma Vez um Homem e o Seu Tempo’ (1979), o derradeiro trabalho da única fase de franco sucesso de sua história. Expulsando para longe qualquer resquício de disco music, aqui Belchior enquadrou mais o arranjador Robson Jorge (parceiro constante de Lincoln Olivetti) do que foi enquadrado por ele. Saiu de banda a ideia artificial de fazer de Belchior um hedonista homem de danças, e voltou à toda a velha e opressiva melancolia. Não se perdeu o sucesso por causa disso, pois havia o romantismo agalopado de “Medo de Avião” (“foi por medo de avião/ que eu segurei pela primeira vez a tua mão”). E não, não estava à vista um novo romântico à moda de Roberto Carlos: a própria “Medo de Avião” tinha uma segunda versão no disco, mostrando o outro lado da moeda. Se a primeira iniciava o álbum em ambiente idílico, a segunda exibia a face sexual da moeda romântica – e eis a política do corpo de volta – com referências a uma relação sexual a bordo e aos “grandes lábios” da musa. Nessa segunda versão, aparecia inesperado crédito de parceria a Gilberto Gil, amado inimigo tropicalista que se utilizava de habitual generosidade para se unir ao discípulo iracundo por breves instantes (e, não custa lembrar, Gil era o maior nome MPB da fase de implantação da Warner de André Midani).

Também havia em “Medo de Avião” a habitual citação aos Beatles, na ligação da mão segurada nos altos ares com “I wanna hold your hand”, e também em trecho musical de “She Loves You” (1963). Nesse disco, a obsessão de Belchior pelos Beatles era levada ao ponto máximo: “Brasileiramente linda” [12] citava “Here Comes the Sun” (1969) e “Comentário a Respeito de John” não só se remetia diretamente a Lennon (e a Yoko Ono, transformada em “oh, no”) como girava em torno do mote da canção beatle “Happiness Is a Warm Gun” (1968). Belchior se desprendera de vez da frivolidade das Frenéticas, mas em compensação cedia amplamente ao puro saudosismo de quem parecia não aceitar o desmembramento dos Beatles, nove anos antes.

A metralhadora citatória de glórias passadas também vinha encorpada, fosse nas menções a poetas brasileiros de “Retórica Sentimental” (em que sobrava também para os “tristes trópicos” do antropólogo Claude Lévi-Strauss), fosse nas referências à linhagem de utopia latino-americana de Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Gonzaguinha e ele próprio, em “Voz da América”. O melhor desses momentos no álbum se dava nas duas parcerias de Belchior com o sessentista Toquinho, “Pequeno Perfil de um Cidadão Comum” e “Meu Cordial Brasileiro”. A primeira era uma bela e tristíssima canção banal sobre um rapaz que “era feito aquela gente honesta, boa e comovida/ que caminha para a morte pensando em vencer na vida”. Evidentemente o rapaz acabava carregado para a morte precoce, “feito um pacote”, consumando a referência cruzada à crônica tropicalista “Ele Falava Nisso Todo Dia” (Gilberto Gil, 1968) e à crônica antitropicalista “Construção” (Chico Buarque, 1971). A segunda citava e invertia citações cruzadas de MPB, do Roberto Carlos de “É Proibido Fumar” (“menina, ainda tenho um cigarro, mas eu posso lhe dar”), de 1964, e de “O Show Já Terminou” (“menina, o show já começou, é bom não se atrasar”), do Jorge Ben de “Porque é proibido pisar na grama” (“a grama está sempre verde, mas eu quero pisar”), de 1974, do Luiz Gonzaga de sempre (“asa branca, assum preto, sertão não virou mar”). De novo ao Roberto de “É Proibido Fumar” e agora também ao Caetano Veloso de “É Proibido Proibir”, concluía: “Menina, é proibida a entrada, mas eu quero falar/ com/contra quem me dá duro/ com o dedo na cara/ me mandando calar/ que o pecado nativo é simplesmente estar vivo/ é querer respirar/ ar”. Antes revoltado com seus antecessores por sua mera existência, o narrador agora somava à revolta a convicção de que aquela nata de heróis endinheirados proibia a passagem de quem vinha atrás, patrulhava, reprimia, sabotava, sufocava [13]. Em parte, estava transferindo ao próximo suas próprias responsabilidades; em parte, isso acontecia realmente, e era ele quem não conseguia se defender a contento. Sua defesa era o ataque, e o ataque era o mais feio dos pecados no Brasil censorial na beirada da anistia.

Atacava frontalmente por intermédio de “Conheço o Meu Lugar”, canção em que começava a denunciar com mais vigor e objetividade a humilhação e a ofensa de que se julgava vítima como nordestino e que, sabia, eram moeda corrente de qualquer nordestino ou outro marginalizado qualquer na vida animal das megalópoles do sul. A pancada: “O que é que eu posso fazer, um simples cantor das coisas do porão?/ Deus fez os cães da rua pra morder vocês/ que sob a luz da lua os tratam como gente – é claro –, aos pontapés”. A vingança: “Ninguém é gente!/ Nordeste é uma ficção!/ Nordeste nunca houve!/ Não, eu não sou do lugar dos esquecidos!/ Não sou da nação dos condenados!/ Não sou do sertão dos ofendidos!/ Você sabe bem:/ conheço o meu lugar”. Obviamente não se tratava de negar seu Nordeste natal, mas sim o inverso, reivindicar a integridade e a igualdade aos oprimidos, de que ele se julgava representante plantado no solo árido da música popular. Poucos ouviriam seu grito, que no Brasil era preciso gritar baixinho (como fazia Roberto Carlos).

De meio termo entre o ressentimento trazido de fora para dentro e a mágoa criada de dentro para fora, havia “Tudo Outra Vez”, uma reflexão cruenta sobre os anos passados pelo retirante nordestino na metrópole sulista. Clamando ainda por “viver coisas novas”, o narrador mais uma vez fazia o inverso do que pedia e apelava ao passado, considerando-se “sentado à beira do caminho pra pedir carona”. Havia alguma novidade ali, de fato: a imagem que mais lhe convinha naquele momento era a daquele Erasmo Carlos de 1969, perdido entre a perplexidade pelo advento da tropicália e a incredulidade pelo abandono do guia Roberto Carlos à jovem guarda. Após discos de receptividade popular e intenso bombardeio crítico, o narrador de Belchior sentia-se sozinho, em pleno abandono, à beira do caminho. Atirara bombas e críticas a esmo, sob a forte crença no bem que elas produziriam; paralisava-se agora diante das baterias antiaéreas que vira se voltarem contra sua própria artilharia. Sentia-se impotente na guerra que ele mesmo quisera (e devera) provocar. Sucumbia pela falta de apoio interno, ao mesmo tempo em que afirmava só contar consigo próprio (“saia do meu caminho/ eu prefiro andar sozinho”, chorava no lindamente desesperado blues-country-folk “Comentário a Respeito de John”). Dizia o que pensava, pensava o que dizia e sentia o contrário do que dizia sentir. Era um descompasso em forma de bigodão e sorriso plácido. De novo contumaz, estava assinando nova sentença de exílio e testamento, desta vez talvez duradoura como a própria vida.

 

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Objeto Direto, 1980, BelchiorA incompreensão interna e, especialmente, externa decretou uma sina descendente daí por diante. O “cantor das coisas do porão” seria cada vez mais aquilo mesmo que propusera naquele verso de “Conheço o Meu Lugar”. O primeiro passo para isso foi o depressivo Objeto Direto (1980), seu quarto disco para a Warner (ou melhor, o primeiro para o selo Elektra, do mesmo conglomerado WEA). Na capa, Belchior acendia um cachimbo (qual o romântico Roberto Carlos de 1975), em foto redonda em preto-e-branco sobre capa de branco profundo (qual o Caetano de Muito – Dentro da Estrela Azulada, de 1978). Nos sons, nada que pudesse se transformar em sucesso de rádio, nem sua extemporânea versão de co-autor para a antiga “Mucuripe” (histórica parceria fundadora Fagner-Belchior que Elis apresentou em 1972 e Roberto regravou em 1975), cantada com premeditada má-vontade. Secundado por uma equipe neutra de músicos, Objeto Direto era totalmente anticomercial, era Belchior feito objeto indireto. Mas, combalido pela relação instável com o sucesso, com sua classe e com a mídia, Belchior não soube naquele momento conciliar anticomercialismo e consistência poética e musical. Parecia girar em torno de temas vagos, sem saber ao certo o que queria dizer naquela difícil aurora dos anos yuppies da década de 80.

Viajava entre a política de corpo de objeto sexual e um forte conflito de identidade na canção-título, o libelo antinuclear em “Peças e Sinais” e “Cuidar do Homem” (influenciadas pelo pacifismo de Roberto Carlos, mas por vias que passavam antes por Zé Ramalho), os malabarismos concretistas inficazes, “sem metas” (como dizia a própria canção), na bela “Ypê”, a trip longuíssima e muito arrastada em companhia dos conterrâneos Fagner e Fausto Nilo da fúnebre “Aguapé” [14], o antigo inconformismo pela sensação de opressão em “Seixo Rolado” (que afirmava, grave, que “ser tão humilhado é sinal de que o diabo é que amassa o meu pão”) e, em várias canções, nova saraivada de citação aos poetas prediletos, Carlos Drummond de Andrade, Castro Alves e Oswald de Andrade à frente. À liquidificação da linhagem musical brasileira era reservada a “Depois das Seis”, com menções cruzadas a Noel Rosa, Lamartine Babo, Caetano Veloso, Chico Buarque. A questão nuclear do autor era posta em quatro palavras, “a culpa é tua”, maneira atormentada e enviesada de dizer “a culpa (não) é minha”. Belchior estava nessa forquilha. Ele e toda a geração “Nordeste agreste” que florescera devagarinho ao decorrer dos anos 70 estavam numa encruzilhada. Ele, Ednardo, Fagner e Zé Ramalho haviam chegado agressivamente, cônscios de sua estatura e de sua missão. Ao contrário da geração dourada de 1968, no entanto, encontraram a porta totalmente trancada, e não prestes a se trancar como daquela vez. Não é que não havia lugar à mesa do almoço da grande família. Não havia mais almoço, não havia sequer família. E Belchior recrudescia à condição de órfão, de filho abandonado por pais inexistentes. E perdia o prumo.

Paraíso, 1982, BelchiorEm busca de redenção, batizou o disco seguinte, dois anos depois, de Paraíso, com subtítulo frontalmente dedicado a contradizer Roberto Carlos: …E Que Tudo o Mais Vá para o Céu. Iniciava-o com “…E Que Tudo o Mais Vá para o Céu” tentando transmitir alegria, entusiasmo, vibração – tentando, pois, espantar a depressão de Objeto Direto. Para isso, utilizava-se de músicos do grupo baiano A Cor do Som (que era então um dos quindins da gravadora WEA), como acontecia de resto em todo o disco. Tal opção conferia a Paraíso uma feição de pop, reggae e new wave abrasileirado, com namoros ao trio elétrico, ao new age e ao kitsch em vários momentos. O moto de exorcismo aparecia também textualmente em “…E Que Tudo o Mais Vá para o Céu”, composta em parceria com o ex-inimigo tropicalista Jorge Mautner: “Vai embora, poeta maldito!/ o teu tempo maldito também já terminou!”. Para exorcizar a maldição é que chamava ao avesso por Roberto Carlos, sacralizando o antigo clamor ao demônio do artista mais popular do Brasil: “E à noite eu entro num cinemascope/ technicolor/panavision/ daqueles de caubói/ de que vale a minha boa vida de playboy?/ e eu compro esse ópio barato/ por duas gâmbias, pouco mais, mas como dói/ se eu entro num estádio e a solidão me rói/ e eu quero é mandar para o alto/ o que eles pensam em mandar para o beleléu/ …e que tudo o mais vá para o céu”. O desejo de redenção era, como de hábito em Belchior, forrado de contradição. Se para aquele narrador cinema era ópio barato, ele queria dizer também que o pop romântico de Roberto era barato, e a agressão ao ídolo era mais explícita na citação alterada ao verso “se entro no meu carro e a solidão me dói” – o “dói” era trocado por “rói”, bem mais cruel, e o “carro” virava “estádio”, em relação ao estrelato de arena de Roberto Carlos, que alguém magoado como Belchior considerava algo de extrema solidão. Talvez fosse mesmo, mas acusar isso não encolhia a imensa solidão do próprio narrador sequioso por redenção.

O discurso era confuso, e ficava ainda mais após aderidas referências à “asa da graúna” do condoreiro Castro Alves e ao plantão underground versão anos 80, que florescera na cidade de São Paulo a partir da virada da década. Belchior já citara o não-canto áspero de Arrigo Barnabé no disco anterior (na faixa “Cuidar do Homem”), e agora o “o que eles pensam em mandar para o beleléu” remetia a Itamar Assumpção, que eclodira para a música experimental e intricada em 1980 com o personagem-alter ego Beleléu. Ainda pesquisando esse universo emergente, Belchior gravava duas músicas do repertório da Banda Performática, do artista plástico Aguilar. Uma delas, “Estranheleza”, era composição de Arnaldo Antunes, então pertencente à trupe Aguilar e Banda Performática (cujo único LP, de 1982, foi produzido por Belchior), futuro vocalista dos Titãs e futuro músico “popcreto” . A outra, o reggae mântrico “Ma”, era de Arnaldo com Aguilar e Nuno Ramos, também artista plástico. De resto, a pena poética de Belchior parecia intimidada em Paraíso, pois ele se dedicava a interpretar vários outros compositores, como Guilherme Arantes (num desastrado reggae tropical, “A Cor do Cacau”, lançado pelo autor em 1979), Sérgio Kaffa e Cézar de Mercês (ex-membros d’O Terço) e Ednardo Nunes (que era cearense, mas não era o Ednardo de “Pavão Mysteriozo”).

Quando falava de voz própria, só na sarcástica “Monólogo das Grandezas do Brasil” manteve intactas suas características melancólicas de sempre, colocando-se explicitamente na carne de um migrante nordestino pobre e oprimido para falar, de novo, de gente “humilhada e ofendida pelas grandezas do Brasil”. A conclusão continha puros sangue, suor, lágrimas e exaustão: “Como uma metrópole, o meu coração não pode parar/ mas também não pode sangrar eternamente”. De resto, Belchior tentava com constrangimento exalar um novo humor, escaldado que estava provavelmente das acusações de “chato”, “reclamão” etc. Disso surgiam choques culturais como o de “Do Mar, do Céu, do Campo”, em que referências às vanguardas de Marcel Duchamp e Alfred Jarry se diluíam em expressionistas sonoridades latinas. E surgia também “Paraíso”, que se pretendia um chamado à dança: “Dá-lhe, fale que só vale ser, dance comigo/ guarde o seu corpo na alegria e no (bom) HUMOR/ palavra tão amiga minha e, de si mesma, tão vizinha da palavra AMOR” [15]. De novo Belchior se fazia cavalo da WEA e daquela noção disseminada de que dançar era o que restava, fosse pelos passos passados da discothèque ou pela festança de reggaes, lambadas e carnavais d’A Cor do Som. Belchior não parecera vestido em sua própria roupa na depressão de Objeto Direto, mas menos ainda parecia agora, na alegria fantasiosa de Paraíso, que não era de sua natureza exteriorizar. Nada deu muito certo, e lá se foi ele embora da WEA de André Midani.

 

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Cenas do Próximo Capítulo, 1984, BelchiorPouco depois de amaldiçoar os poetas malditos e de pedir bênção sarcástica a Roberto Carlos, Belchior foi seguir a sina dos malditos: ficou sem gravadora e fundou seu próprio selo, Paraíso Discos, pelo qual lançou em 1984 o álbum Cenas do Próximo Capítulo, auxiliado de pouco pela distribuição da multinacional EMI-Odeon. No ano do Big Brother de George Orwell, era de se esperar que o título e a capa expondo um Belchior descabelado visto por uma tela de TV remetessem a uma iminente crítica ao másculo poder e aos abusos da grande mídia brasileira, mas não era isso que se ouvia em Cenas do Próximo Capítulo, um disco todo impregnado de sintetizadores bem oitentistas – Belchior tentava, como de resto a maioria dos artistas da era dos festivais, se adaptar à nova sonoridade do pop brsileiro, roqueira diluída e indecisa entre a new wave e a new age. Mas o chiste com telenovela se reduzia à graça de “Rock-Romance de um Robô Goliardo” encerrar o lado A do vinil como num programa de auditório, com longas narrações de um animador eletrônico entremeando a canção propriamente dita, para, em seguida, “Canção de Gesta de um Trovador Eletrônico” abrir o lado B voltando à mesma melodia e à mesma letra, agora em formato de rock convencional.

No mais, o que o disco significava, ainda que com canções predominantemente inéditas, era o primeiro grande inventário saudosista da carreira de Belchior. Veja só. A faixa de início encetava rápido caráter de manifesto: era uma regravação de “Ouro de Tolo” (1973), que selava a quebra final da desavença antiga com Raul Seixas. Tal desavença tinha muito menos relevância que a semelhança de discurso entre o que dizia a balada cafona do roqueiro baiano e o que sempre andou dizendo o poeta marginal cearense. O mau humor era o mesmo, o desencanto era o mesmo, até a experiência de fome nas ruas antes da fama fora a mesma. E Belchior afinal admitia de modo mais explícito mais esse seu mestre. Daí em diante, começava a citação desenfreada. “Ploft” retomava a utopia latino-americana, mencionando literalmente o livro As Veias Abertas da América Latina (1971), do historiador uruguaio Eduardo Galeano. Essa e as posteriores “Brotinho de Bambu” e “Rock-Romance de um Robô Goliardo” rabiscavam insistentes exercícios de poesia visual e concretista já esterilizada pelo excesso de uso e por certo vazio conceitual que ela agora ocultava. O tal “Rock-Romance”, junto com “Canção de Gesta de um Trovador Eletrônico”, fazia uso extensivo de recursos kitsch da eletrônica dos 80 para tecer declaração apaixonada e plenamente saudosista aos rock’n’roll dos 50 e 60. Apesar de citações cruzadas de tom contemporâneo (como “vamos dar um balanço cibernético nas horas”, que falava ao mesmo tempo do pioneiro “Rock Around the Clock” (1956) de Bill Haley e do novinho “Tudo Pode Mudar”, do grupo Metrô), o lance era memorabilia pura, com menções nominais a Chuck Berry, Bill Haley and His Comets e aos mártires Jim Morrison, Jimi Hendrix, John Lennon e Janis Joplin. O discurso roqueiro servia, principalmente, para Belchior voltar a suas obsessões cativas, vomitadas na enumeração de uma longa lista de marginalizados sociais e na interessantíssima narrativa do choque entre um jovem futuro roqueiro e sua mãe nordestina: “Ia pondo meu pé na rua quando a minha velha saltou de lá, muito cheia de si, me chamando playboy, rebelde, transviado, como se fosse dona do mundo. E foi logo dizendo: ‘Pra você ver a vida como é! A gente cria um bicho desses, educa, dá do bom e do melhor, casa e comida, roupa lavada, amor, carinho, mesada, e esse aventureiro termina deixando a escola, fugindo de casa, maldizendo a família, querendo ser cantor de roque!’”. Retomando frase-ícone do velho ídolo popular Waldick Soriano (“eu não sou cachorro, não/ pra viver tão humilhado”), reatava sua obra ao imaginário de Raul Seixas, querendo levar discurso explosivo às mais populares das plateias.

Lado B, continuava a saga revisionista. “O Negócio É o Seguinte” combinava menções a forró, sertão e o verso “não sou nenhum pai joão”, de “Sem Compromisso” (a canção de 1944 é de Nelson Trigueiro e Geraldo Pereira, mas sua constância no repertório do bossa-novista João Gilberto dava sentido duplo à citação de Belchior). “Beijo Molhado”, subtitulada “Tele-Canção de Novela Brasileira”, rememorava atabalhoadamente o “beijo molhado, escandalizado” de “Da Cor do Pecado” (1939, de Bororó, mas também frequente na voz de João Gilberto), as divas hollywoodianas de Belchior, “Only You” (1955), iê-iê-iê, discothèque, termos de canções antigas do próprio Belchior (“suja de batom”, “tomar um sorvete”), tudo junto e confuso. A canção mais triste do LP, “Onde Jaz Meu Coração”, usava banjo country e paródia do “Mr. Tambourine Man” (1965) de Bob Dylan para se remeter ao adorado Nordeste, na retórica bem conhecida de reivindicação da grandeza da região que ele chamava de “reino do abandono”, “um país de esquecidos, humilhados, ofendidos e sem direito ao porvir”. Essa canção continha, sem talvez nem ter o propósito, o momento de maior bom humor de toda a obra de Belchior, nos autocríticos, lúcidos e até comoventes versos “ah, minha voz, rara taquara rachada,/ vem, soul-blues, do pé da estrada/ e canta o que à vida convém/ vem, direitinha, da garganta desbocada/ mastigando in-nham, in-nham/ cheinha de nhenhenhém”. Estrofe cândida, lembrava, além do textual, que Belchior já não era mais assim tão desbocado. O cansaço criativo começava a assomar à fronte. E, para finalizar, Belchior voltava ao passado nordestino ainda mais que em Raul Seixas, dando versão tecnopop ao “Forró no Escuro” (1958) do patriarca Luiz Gonzaga. Estava aberta a temporada de saudosismo.

Um Show - 10 Anos de Sucesso, 1986, BelchiorEra ela, por exemplo, que permitia a contratação de Belchior pela gravadora Continental, para lançamento do periclitante Um Show – 10 Anos de Sucesso (1986), com versões supostamente ao vivo (mas sem aplausos do público e com toda cara de gravação de estúdio) e new wave dos sucessos fundadores e nenhuma faixa inédita. Esse em breve se tornaria um eterno retorno para Belchior, mas ainda não. Em 1987, voltou à velha Philips (agora rebatizada PolyGram, pela fusão dos selos Polydor e Phonogram) que vira seu sucesso nascer e lançou mais um álbum de inéditas, Melodrama.

Melodrama, 1987, BelchiorParecia a volta do artista a padrões de produção independentes de modismos new wave, como se ouvia na orquestra de dramalhão de “De Primeira Grandeza”, que abria o disco em pique carlista de elogio à paixão (Chiquinho de Moraes, velho colaborador de Roberto Carlos, era o arranjador dessa e de outras faixas), mas em pique anticarlista de discurso confuso de confusão dos sexos (presente também em outras canções do disco, como “Lua Zen”, dele com Gracco). Mas logo a impressão era relativizada, fosse no arranjo sintetizado de elevador para “Todo Sujo de Batom” (que Belchior gravava pela terceira vez), fosse no tratamento América Central, carnavalesco, pré-axé music, de “Bucaneira”.

O momento mais ferino do Melodrama, e também o de melhor resolução musical (inclusive pelo tom certeiro e incomum de delicadeza que Belchior dava à interpretação) era o de “Dandy”, um refluxo de sua velha crítica ao comportamento artístico deslumbrado, ao apego apenas mercadológico de grandes ídolos a discursos revolucionários, esquerdistas. Dizia ele: “Mamãe, quando eu crescer eu quero ser artista/ sucesso, grana e fama são o meu tesão/ entre os bárbaros da feira ser um mero conformista/ nem um supermercado satisfaz meu coração/ mamãe, quando eu crescer eu quero ser rebelde/ se conseguir licença do meu broto e do patrão/ um Gandhi dândi, um grande milionário socialista/ de carrão chego mais rápido à revolução”. Parecia uma crítica feita à distância, por quem se julgava fora daquela redoma, e a canção “Tocando por Música” (parceria com Jorge Mello) o confirmava fazendo o contraponto: “A minha alma esteve à venda/ como as outras do lugar/ só que ninguém me comprou/ pois só eu quis me pagar”. A confusão aumentava em “Dandy” pelos versos seguintes: “Ah, quanto rock dando toque, tanto blues/ e eu, de óculos escuros, vendo a vida e o mundo azul”. Era um emaranhado de referências cruzadas, ao “Rock do Diabo” (1975) de Raul Seixas e aos blues de Zé Ramalho e do próprio Belchior de um lado, e do outro ao “eu” narrativo e aos óculos escuros hedonistas do “Vampiro” do “inimigo” “maldito” Jorge Mautner, transformado em pop bissexual por Caetano Veloso [16]. O narrador dessa e daquela canção parecia estar num impasse, equidistante entre os dois extremos que se configuravam também dentro dos corpos das próprias canções: ressentia-se dos outros que não haviam permitido sua ascensão ao olimpo (o que tinha lá seu senso, mas apenas parcial), e se ressentia de si, por não se sentir comprado por ninguém (o que era um evidente exagero).

Tal estágio de confusão se reproduzia no blues “Jornal Blues (Canção Leve de Escárnio e Maldizer)” (de Belchior com Gracco), em que o narrador se debatia para contornar os sensos comuns que via desabar sobre ele, de que fosse um cara “durão” – e machão –, “kitsch”, “sempre adolescente”, representante eterno do não (“não toques este disco! não me beijes, por favor!”, implorava já ao final da letra quilométrica). “Eu talvez seja o cara que você ama odiar, inimigo do peito”, sintetizava, transtornando qualquer escárnio ou maldizer em autodefesa, em efeito rebote. Mais ou menos parecido com isso acontecia em “Os Derradeiros Moicanos”, sobre “uns pobres diabos sul-americanos” que se pretendem cultos (e citam abundantemente Duchamp, Picasso, “Rimbaudelaire”, Henri Salvador, Jacques Brel etc.) e forjam um exílio voluntário na França (e disparam a cantar versos em francês). Tal pobre-diabo era (ou julgava ser) o próprio narrador, que metaforizava assim o alto grau de confusão em que seu discurso se encontrava preso e o antigo sentimento de auto-exílio do migrante nordestino. A temática seria motivo dois anos depois amplificado com maior perspicácia e normatizado com maior nitidez por Caetano Veloso em “Estrangeiro”, uma corruptela a “Os Derradeiros Moicanos” gritada no alto-falante de que Belchior não podia ou não conseguia dispor. Pois, afinal, o disco Melodrama era sua volta a um sistema sofisticado de gravação, à companhia de uma equipe forte de músicos, à possibilidade de trânsito de seu trabalho. E Belchior parecia desconfortável diante dos instrumentos à mão, lidando com eles de modo às vezes desconexo, às vezes frouxo, às vezes morbidamente desanimado. Era o narrador de “Dandy”, que não queria pertencer ao meio ao qual queria pertencer – equação complicada, mas diametralmente diferente da de Roberto Carlos e Caetano Veloso, que sempre quiseram fervorosamente pertencer ao meio ao qual pertenciam. “Eu é que sou um cara difícil de domesticar”, resumia, desconsolado, em “Em Resposta a Carta de Fã” – sim, esse narrador dândi até carta de fã respondia, mesmo que sua resposta tivesse mais cara de bronca (essa, sim, bastante amplificada) que de resposta.

Elogio da Loucura, 1988, BelchiorNa sequência, aconteceria a amplificação da própria confusão, no radical Elogio da Loucura (1988, ainda PolyGram). Os termos se elevavam no trio de (fracas) canções lotadas de sintetizadores que abriam o lado B do LP e também na canção de encerramento, “Arte-Final”. Após um lado A ameno (que rendia no máximo os trocadilhos tristonhos de “Balada de Madame Frigidaire” e a citação recombinada e desesperada de versos de sua própria obra em “Recitanda”), começava o bombardeio por “Lira dos Vinte Anos” (título roubado de poema do romântico Álvares de Azevedo), uma intensificação do conflito identitário anterior: “Meu pai não aprova o que eu faço/ tampouco eu aprovo o filho que ele fez/ sem sangue nas veias, com nervos de aço/ rejeito o abraço que me dá por mês”. O narrador não estava falando apenas do ressentimento masculino habitual entre pai e filho biológicos, mas também de música popular brasileira, como denunciavam novos versos de crítica à acomodação dos totens de sua geração: “Os filhos de Bob Dylan/ clientes da Coca-Cola/ os que fugimos da escola/ voltamos todos pra casa/ um queria mandar brasa/ outro, ser pedra que rola/ daí o money entra em cena e arrasa/ e adeus, caras bons de bola!”. Refluxo evidente de “Como Nossos Pais”, a canção tinha um narrador que já se sentia pai, que se autocriticava como tal (pois não estava excluído do rol de robertos, erasmos e caetanos contadores de vil metal que denunciava), mas não perdia o hábito arraigado de reclamar dos pais – se o narrador amargurava seu próprio fracasso, ao menos a culpa não era dele, mas antes do pai artístico que o concebera – Bob Dylan, Mick Jagger, Caetano Veloso, Roberto Carlos e quem mais chegasse. Caía na própria armadilha – a crença ilusória de que o inferno são sempre os outros –, que era expressa na inadequação desanimada de arranjos e programações eletrônicas de sopro kitsch, vaporosos.

Em seguida vinha “Os Profissionais”, crítica contumaz à geração yuppie que deitara e rolara e se esbaldara nos anos 80. “Onde anda o tipo afoito/ que em 1-9-6-8/ queria tomar o poder?/ hoje, rei da vaselina,/ correu de carrão pra China/ só toma mesmo aspirina/ e já não quer nem saber”, metralhava, tentando compor uma chanson francesa de acordeom alvejada por mais versos em francês. O tiro saía pela culatra: a estruturação musical da canção fazia lembrar da proto-sertaneja e ultra-kitsch “Caminhoneiro” (1984), de Roberto Carlos (o que talvez até fosse uma outra crítica mais ou menos sutil, mas remetia de novo a profundo conflito de identidade). O próprio narrador entregava os pontos, afirmando que “dancei no pó dessa estrada”, descuplando-se/confessando-se que “perdão, que perdi o pique” e concebendo a mais grandiosa constatação de um artista brasileiro de sua faixa etária, que outros de sua geração (ou de quaisquer outras) sempre deram uma fortuna para ocultar diligentemente: “Muito jovem pra morrer/ e velho pro rock’n’roll”. Estava ali exposto e sangrando o conflito de qualquer artista maduro de música pop, e mais particular e significativamente o do próprio Belchior: envelhecer, naquela profissão, seria algo doloroso à beça. Se enroscados pela mitologia assassina de juventude eterna da música pop, ídolos do rock se arriscavam a consumar sua maturidade num longo buraco negro entre a “aposentadoria” e a morte. A maturidade era idade de acesso vetado a eles – e era contra essa ideia que Belchior se debatia freneticamente, expondo com valentia incomum as chagas descarnadas.

O terceiro momento era “Kitsch Metropolitanus” (parceria com Jorge Mello), daquelas canções de encontrar falso alívio na culpabilização retroativa do próximo. “Que gente fina, gentinha,/ rainha em puxar tapete/ não posso entrar numa sala/ que eles vêm de cassetete/ kitsch metropolitanus/ essa moçada promete/ garotos, clones, mutantes/ com que gastar meu confete?”, cantava em reggae barato, dirigindo-se à nata ascendente da geração yuppie, que tachava de “comedor de hambúrguer”, “mascador de chiclete” e ”beberrão de keep cooler”. Ele, que sempre clamara pelo novo, enxergava os novos roqueiros dos 80 como meros clones arrivistas. Confuso, deixava o cuspe cair na testa, ele próprio um trovador eletrônico perdido entre os clichês do reggae, da new wave e da new age.

“Arte-Final”, procurando concluir a turbulência de Elogio da Loucura, voltava à crítica enfezada aos jovens yuppies (mas, aos mesmo tempo, aos senhores acomodados de sua geração): “Donde están los estudiantes?/ os rapazes latino-americanos?/ os aventureiros, os anarquistas, os artistas,/ os sem-destino, os rebeldes experimentadores,/ os benditos malditos, os renegados, os sonhadores?/ esperávamos os alquimistas, e lá vêm os arrivistas, consumistas, mercadores”. Totalmente na contracorrente dos despolitizados anos 80-90, Belchior se colocava uma vez mais em posição de isolamento, de nobre que atira pérolas aos porcos sem que os porcos percebam sequer sua presença. Sem medo de palavras inteiras, reconhecia, bravateiro e ineficaz: “Dancei, sei que dancei, dancei, meu bem/ mas vem que ainda tem!”. Apelava ao eterno retorno, de palavras tais como as primeiras que o artista Belchior proferira muitos anos antes: “Sessão de nostalgia, isso é lá com minha tia/ alô, presente, estou chegando! alô, futuro, já vou!”. Em breve o artista teria que morder as próprias sílabas. Estava em curso uma ampla, geral e quase irrestrita sessão nostalgia.

 

* * *

 

Pessoal do Ceara, 2002, Ednardo, Amelinha e BelchiorÉ que já em 1990 Belchior iniciaria um profundo e vicioso processo de auto-revisão e de repetição e regravação contínua das glórias passadas, quase sempre assentadas naquele esqueleto “A Palo Seco”/“Como Nossos Pais”/“Apenas um Rapaz Latino-Americano”/“Paralelas”/“Medo de Avião”/outras poucas. Desse modo foram concebidos, passo por passo, os discos de reminiscências Trilhas Sonoras (ao vivo, Continental, 1990), Contradança – Acústico (Paraíso Discos, 1991) [17], Eldorado (Movieplay, 1993) [18], Acústico – Um Concerto Bárbaro (PolyGram, 1995), 25 Anos de Sonho, de Sangue e de América do Sul (Camerati – gravadora independente de que Belchior foi um dos donos –, 1996), Antologia Lírica (Camerati, 1999), Auto-Retrato (BMG, 1999) e Pessoal do Ceará (Continental, 2002), este último gravado em companhia de os Ednardo e Amelinha, com apenas duas músicas inéditas entre sucessos antigos dos três artistas cearenses [19].

Auto-Retrato, 1999, BelchiorTambém retrospectivo, mas de tez diferente, foi o álbum Vício Elegante (GPA, 1996), dedicado a releituras de não-sucessos de Chico Buarque, Caetano Veloso [20], Roberto e Erasmo [21], Zé Ramalho, Adriana Calcanhotto, Marina Lima e do ídolo cafona-romântico Márcio Greyck (em “Aparências”, chororô pessimista de 1981 composto por Cury e Ed Wilson), entre outros vários. Entre nove discos de autofagocitose concebidos em 12 anos, uns poucos se auto-autorizavam, fosse pela extrema delicadeza de arranjos e releituras (25 Anos de Sonho, de Sangue e de América do Sul) ou pela relevância do projeto (o álbum de reencontro conterrâneo melancólico – e primeiro encontro discográfico – com Ednardo e Amelinha). Audaz mesmo, embora malsucedido, foi Auto-Retrato. A multinacional BMG (ex-RCA Victor) se interessara por lançar uma antologia acústica em álbum duplo de Belchior, a exemplo do que fizera dois anos antes, com pleno sucesso, com Zé Ramalho, e repetira na sequência com Geraldo Azevedo e Fagner. Belchior aceitou, mas apenas em parte – seu espírito de ovelha negra não aceitaria assim tão facilmente a fórmula do sucesso que a gravadora pensava haver encontrado. Produzido por Ruriá Duprat (sobrinho do maestro tropicalista Rogério Duprat) e secundado por fortíssimo time de músicos de São Paulo, Belchior preferiu avançar corajosamente pelo novo, elegendo pitadas de sonoridades noventistas de drum’n’bass, trip hop, canto-fala de rap (“Na Hora do Almoço”), scratches de hip hop e novas fusões nordestinas para salpicar a desconstrução de mais uma bateria de regravações de sua fortuna artística. Entre faixas mais “modernas”, bem pontudas (“Alucinação” era o mais potente exemplo), outras apelavam para o jazz ou para elaboradíssimos arranjos de piano ou de violinos. O novo e o velho convivendo como nunca no mesmo sujeito, foi só mais um lampejo do aparentemente indestrutível conflito belchioriano, consumado no arranjo pós-moderno da canção final, a brava “500 Anos de Quê?” (recolhida de Bahiuno, disco de que se vai falar adiante). Algo mais revalidava tal conflito: projetos revisionistas como acústicos, discos ao vivo, encontros musicais e projetos de releituras de outros compositores se tornaram verdadeira coqueluche comercial no Brasil da segunda metade dos anos 90 em diante, forrando os bolsos de dezenas de artistas que antes vinham em processo de derrocada particular (que por sua vez acompanhava a derrocada mais geral da MPB como um todo); os de Belchior, precursores, devem ter engordado também seus bolsos, mas nunca chegaram a se tornar fenômenos de massa ou recordistas de vendagem. Esses méritos ficaram para os volumes da série Acústico MTV de Roberto Carlos, Gilberto Gil, Rita Lee, os oitentistas Titãs e Paralamas do Sucesso etc. Belchior, não – preferiu o experimentalismo. Talvez pela primeira vez teve uma ideologia musical firme por trás de si (cortesia da família Duprat), mas o belo disco passou desapercebido. Alguma coisa muito nova não estava por acontecer.

Baihuno, 1993, BelchiorComo nota e adendo: em Belchior, o hábito revisionista só foi em parte quebrado, de 1988 em diante, pelo CD independente Bahiuno (Movieplay, 1993). Delicado exercício de análise sobre o que tem sido a história do Brasil, constituía-se de vários “movimentos”, por que iam passando em flashes a América e o Brasil pré-descobrimento, a vida interiorana, a migração e o desejo de volta, os párias sociais todos, desilusões amorosas e artísticas… Também havia espaço para regravações, mas dessa vez Belchior escolhia temas seus que não haviam sido assimilados, de discos obscuros como Cenas do Próximo Capítulo (“Onde Jaz Meu Coração”, aquela do “reino do abandono” nordestino, ou “S.A.”, na verdade um trecho do “Rock-Romance de um Robô Goliardo”) e Elogio da Loucura (a frígida “Elegia Obscena”, a crepuscular “Arte-Final”).

A reanálise de si aparecia em canções novas, como a eloquente faixa-título (seu dono não era baiano, como Dorival, João, Caetano e Gil, mas antes “bahiuno”), de um eu-lírico que se indispunha ainda uma vez com sua família sanguínea e com sua família musical: “Fora-da-lei, procurado, me convém família unida contra quem me rebelar”. Adiante, emitia avaliação sobre si que pretendia fazer definitiva a vida errática do moço e do cantor: “Ao pastor da minha igreja reza que esta ovelha negra jamais vai ficar branquinha/ não vendi a alma ao diabo, o diabo viu mau negócio nisso de comprar a minha/ se meu pai, se minha mãe se perguntarem, sem jeito, ‘onde foi que a gente errou?’/ elogiando a loucura, e pondo-me entre os sonhadores, diz que o show já começou”. Lá na frente, em “Ondas Tropicais”, o bardo desiludido voltava à toda, tomando para si e sua natureza a exclusão de que se via vitimado no tecido MPB: “Na província Hollywood/ eu era um brando farsante”. Bahiuno era um narrador que já não cria em si, a elaboração madura do pária que se autodenunciara desde o primeiro instante.

Mas eram “Amor e Crime”, “Balada do Amor Perverso” e “Se Você Tivesse Aparecido” (e também, de volta, “Elegia Obscena”) que retomavam a verdadeira e quase sempre esquecida epopeia belchioriana. Baladas de suspeição sobre o amor, traziam à tona morna a desdita e a descrença em tal sentimento. “Amor e Crime” disparava: “Amor, não há amor,/ existem só provas de amor/ mas, no amor,/ provas não bastam/ tudo mentira/ tudo cinema/ apenas cenas”. “Balada do Amor Perverso” reforçava: “Não quero amar, não, nunca mais/ que esse negócio de amor/ já não se faz sem punhais”. E “Se Você Tivesse Aparecido”, afinal: “Se você tivesse aparecido/ esta droga de existência/ se mudaria em viver”. Os últimos versos dessa mesma canção (“pegar carona nesta decadência é o fim/ como pôde acontecer?”) poderiam denotar um narrador maduro que olha sua vida para trás e só encontra desencanto. Mas esse era, afinal, o mesmo narrador assaltado que dizia desde “Como Nossos Pais”, ainda bem jovem, a frase-símbolo “não quero lhe falar, meu grande amor…”. Não importava que palavras completariam aquela frase – elas desvelavam não um vácuo na capacidade de amar, mas antes a incapacidade de lidar com a palavra, com o tema, com o sentimento. Porta-voz do “não”, Belchior andara a vida toda dizendo “não” também ao amor, mesmo quando dizia que não estava dizendo. Andara estrada afora apontando dedos e versando sobre a política, sobre a cultura, tantas vezes por pudor de falar simplesmente de amor. Seu narrador predileto vivia acometido desse pudor contínuo, como aquele da velha “Divina Comédia Humana”, aquela em que reclamara de um analista amigo que criticara sua pouca propensão ao amor – ali, o encarte do disco de 1978 transcrevera os versos “eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia/ fazendo amor e de novo dizendo/ sim à paixão/ morando na filosofia”, mas não era o que o cantor cantava. Em suas várias versões, “Divina Comédia Humana” sempre teve esse trecho proferido com desconforto, com rapidez e, mais, trocando “fazendo amor” por “fazendo tudo”. Belchior era então, e para sempre seria, o cantor profundamente romântico que não sabia falar de amor. Estava no lado oposto do ringue com Roberto Carlos, o cantor profundamente romântico que só sabia falar de amor. Linhas paralelas, seguiram retas sem retoques, à espera de se encontrarem, quem sabe, no infinito.

 

[1] Em Milton, Odeon, 1970.

[2] “Pavão mysteriozo” virou sucesso nacional, mas só dois anos depois, quando o dramaturgo Dias Gomes a colocou na posição de tema de abertura da telenovela global Saramandaia, realismo fantástico protagonizado por Juca de Oliveira como um homem que de repente descobria asas nascendo em suas costas.

[3] Sua gravação saiu em 1975, mas só se tornou sucesso de massa mais tarde, com a inclusão da faixa na trilha da novela global Duas vidas (1976-77), de Janete Clair. Vanusa ainda gravaria, de Belchior, “Brincando com a Vida” (1977) e “Espacial” (1979). Seu então marido, o ídolo romântico pós-iê-iê-iê Antonio Marcos, gravou “Todo Sujo de Batom” e a utópica “Voz da América”, ambas em 1976. “Voz da América” receberia versões em pique popular de Maria Alcina (1979) e Jessé (1981).

[4] Em regravação de 1986 dessa canção, Belchior apôs aos “seus metais” (ele não cantava “vis”, como Elis) o cantarolar “iê iê iê iê…”.

[5] Note, de novo, a obsessão geracional.

[6] Jornal do Brasil, 8 de agosto de 1976. Na mesma entrevista afirmava, em tom igualmente provocativo: “Eu não sou do tempo da bossa nova, sou do tempo do rock”.

[7] Folha de São Paulo, 30 de agosto de 1977.

[8] O parêntesis e a interrogação dúbios não eram evidentes no canto, mas constavam do encarte.

[9] Em “Apenas um Rapaz-Latino Americano”, Belchior pedia: “Por favor, não saque a arma/ no saloon eu sou apenas o cantor”.

[10] Jornal do Brasil, 30 de agosto de 1978.

[11] Folha de São Paulo, 27 de agosto de 1978.

[12] No encarte do disco, a letra dessa canção era disposta em forma de poema gráfico, retomando tática concretista abandonada desde o primeiro disco.

[13] Àquela altura, até o colega paraibano de geração Zé Ramalho se fartara de ouvir Belchior reclamando o advento do novo, e desferia sutilmente em “Falas do Povo” (em A Peleja do Diabo com o Dono do Céu, Epic/CBS, 1979): “Falo da vida do povo/ nada de velho ou de novo”. Por trás de tais versos soava o violino de Jorge Mautner, que fora a público defender os tropicalistas contra as “barbaridades” que Belchior vinha lhes desferindo.

[14] Um canto gregoriano era ouvido ao fundo dessa canção, reminiscência dos tempos de seminarista de Belchior.

[15] Os parênteses e as maísculas eram usados na transcrição da letra no encarte.

[16] Em gravação de Cinema Transcendental, Philips, 1979.

[17] Contradança foi lançado em CD pela Movieplay, sob o nome A Divina Comédia Humana. Há apenas uma música de diferença entre os dois discos, nos quais Belchior refaz seus sucessos acompanhado apenas pela dupla de violonistas Duofel (Fernando Melo e Luiz Bueno).

[18] Dividido com o duo tradicional uruguaio Larbanois-Carrero, esse disco merece o registro de materializar a sonhada união utópica da América Latina – nele, Eduardo Larbanois e Mario Carrero se dedicam exclusivamente a verter canções de Belchior para o castelhano.

[19] Fagner foi excluído por desacordos pessoais entre o grupo. Rodger e Tetty, do “Pessoal do Ceará” originário, estavam distantes da música popular em 2002.

[20] A obscura e anódina “O Nome da Cidade”, lançada por Maria Bethânia em A Beira e o Mar (PolyGram, 1984).

[21] A obscura “O Tolo”, extraída do disco de 1989 de Roberto Carlos.

 

(*) Faço esta chorosa publicação pensando em Antonio Rogério Toscano. Em Eduardo Nunomura. Em Jotabê Medeiros (muito trabalho pela frente, meu irmão!). Em Dilma Rousseff Luiz Inácio Lula da Silva (que em 29 de abril de 2017 foram conterrâneos gaúchos da morte de Belchior). Em Getulio VargasJoão Goulart Leonel Brizola (que também). Em Haroldo Ceravolo Sereza. Em Ivana Jinkings. Em Jorge Mello. Em Manuela Carta Mino Carta. Em minhas irmãs briguentas Lilian Myriam.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Belchior é um ícone da MPB. Artista completo já que dominava como poucos letra, canção, harmonia. Gostaria de lembrar que o LP “Era uma vez um homem e seu tempo” conta com arranjos espetáculares, os violões e guitarra de Rick são inigualáveis! Jane Duboc no back vocal é demais!
    É importante registrar que “Melodrama” ganhou o Prêmio Sharp, maior reconhecimento da crítica à sua música. Belchior, eterno!

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