Foto Tadeu Amaral
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Na terceira e última parte da entrevista, Daniela Mercury desenvolve a tese potencialmente controversa: a alegria da axé music não é tão alegre assim como se pensa. “Meu Deus, o que celebram tanto, se o axé começa falando que os negros estão lascados, que a gente tá excluído, cheio de problema? Os problemas sumiram de repente?”, ela pergunta a certa altura, a si, a mim, a você.

Um assunto leva ao outro e da alegria que pulou para tristeza estamos de repente falando de política. A mulher de aço que resiste a sete horas em cima do trio elétrico sem nada comer e quase nada beber revela que o processo de impeachment golpista de Dilma Rousseff a deixou doente. “Adoeci pelo menos umas três vezes. Era um sofrimento que parecia que tava me cortando a carne, tudo isso, todos os discursos, enxergar aquilo tudo”, diz, depois e proferir outro não que faz um sim: “Eu sou contra o impeachment”.

Sem muito proclamar o nome de Dilma ou menos ainda defendê-la incondicionalmente, a “Rainha Má” do axé parece falar de si ao falar da primeira mulher que conquistou (e depois perdeu) o poder presidencial no Brasil.

“Eu acho o Brasil muito matriarcal. Eu não vejo pouco poder das mulheres, não. Acho até que as mulheres apanham porque elas têm muito poder”, ensaia um rumor de resistência e resiliência. Na política, na tristeza ou na alegria, a consciência alta da condição feminina não abandona seu discurso um só minuto. E ela demonstra saber que fala de si quando fala de sua mãe, na hora de encerrar a conversa: “Eu não sou assim à toa”.

Pedro Alexandre Sanches: Ô, Daniela, nesse capítulo alegria alheia incomoda, você tava esfregando isso na gente aqui nesta cidade horrorosa em que a gente mora…

Daniela Mercury: Mas deixa eu te falar uma coisa, a alegria do axé às vezes também me incomoda muito, a alegria exagerada.

PAS: Era isso que eu queria perguntar, você tem dito muito…

DM: …Mas eu preciso muito dela, porque eu sou melancólica…

PAS: Você diz em “Alegria e Lamento” (2015) que a alegria de lá é triste, em tom menor.

DM: Sempre foi, né?

PAS: Eu também tomei um susto de ouvir isso. Eu ia pro outro lado, tô irritado porque é alegria demais. Mas você tá dizendo que também não é alegria demais.

DM: Cê sabia que esse jeito agressivo rítmico é quase roqueiro? É muito roqueiro. Um galope é muito mais forte que um rock, é um rock progressivo. Eu sempre vi rock, revolta, catarse naquilo. Eu nunca vi algo homogêneo, de felicidade. Eu sempre acho um caos, como tudo. O ser humano é um caos. O inconsciente coletivo nunca vai ser algo homogêneo. Mas eu entendo que se vê assim.

PAS: Você quer dizer que musicalmente é uma alegria lamentosa? Como é isso?

DM: Melodicamente é lamentoso. Harmonicamente, os tons são menores. Se você vir, todos os sambas-reggae quase são em menor. “Swing da Cor” (1991) é menor, vou enumerar dezenas, “Faraó” (1987), “Madagascar Olodum” (1987), se não me engano “Nossa Gente (Avisa Lá)” (1992, do Olodum). As bases do samba-reggae são todas em tom menor, tudo lamentoso. As melodias são melodias mouras, um pouco do São João nosso, dessa influência ibero-europeia, ibérica, porque nós no Nordeste temos essa influência muito forte. “Nobre Vagabundo” (1996), por exemplo, “quanto tempo tem pra matar essa saudade”, tem uma tristeza tamanha melodicamente. E o que importa é a melodia, como a melodia toca você. “Com força e pudor” (de “Protesto do Olodum – E Lá Vou Eu”, gravado em 1988 pelo Olodum e pela Banda Mel e reinterpretado na trilha do filme Ó Paí Ó, em 2007, por Daniela, Margareth MenezesTatau Timbalada), gente, o que essa música me dá vontade de chorar o dia inteiro. Me dava uma tristeza. “Eu sou negão, meu coração é a liberdade”, “sou do Curuzu, Ilê” (de “Eu Sou Negão”, 1986, Gerônimo), e ainda fala de coisas ruins, né? As músicas tavam falando de coisas ruins, eu também estranhava muito que todo mundo dançava tanto com tantas coisas ruins.

PAS: Cê estranhava?

DM: Mas o rock também faz esse fenômeno. O blues também faz isso.

PAS: A galera tá dizendo “quero espantar essa tristeza dançando”?

DM: Cê já viu como as pessoas ficam meio hipnotizadas? Nem tudo que é dança é alegre, não é? Mas a gente acostumou a associar a dança a alguma coisa alegre.

PAS: O carnaval, principalmente.

DM: É, mas é um grande terreiro. Se você entra num terreiro de candomblé, tá todo mundo dançando, os santos todos. Aquilo não tem uma alegria à toa, uma alegria vazia. Aquilo é denso, é cada batida, e Ogum entra, às vezes o ritmo é pra brigar. Eu sempre achei muito masculino (ri), olha aí. O ritmo era “não, pá, pá, pá, pá”, tome. Era uma coisa assim: você não vai me querer?, você vai ter que me querer. Era o tempo inteiro, mas isso era tão nítido pra mim desde o começo. Um ou outro repórter, fazendo as entrevistas, no Feijão com Arroz (1996), eu dizia assim: a gente que deixe por menos pra ver se passa. Cê acha que eu sou mulher de vir de balada?, eu não venho com balada. E quando vem uma balada, vem uma balada pop, contundente, dizendo coisas. Porque eu já dizia tudo no barzinho também, “não quero lhe falar, meu grande amor”, talvez tenha sido dos meus primeiros nãos, “das coisas que aprendi nos discos” (de “Como Nossos Pais”, 1976, de Belchior).

PAS: Elis Regina é o não total, a cantora do não completa.

DM: Ela realmente, ela e Caetano me influenciaram nas atitudes. E Chico, porque Chico dizia não pro sistema. Gil diz não pro sistema, quando canta “Domingo no Parque” (1968), que fala da capoeira, como vai inserindo os temas. Eu não tinha essa consciência, fui olhar depois, eu engolia aquilo, repetia, recebia, dançava. Mas não me apertei, também cantava Milton Nascimento, que é triste. Eu vim de uma MPB totalmente triste, sou melancólica, filha de português, triste. Sou muito mais fadista que qualquer coisa, esse espírito triste. Então meu samba tinha uma tristeza sempre muito grande. Sabe por que eu parei de fazer os carnavais fora de época? Porque não tinha essa alegria toda pra fazer tanto carnaval. Não sei como as pessoas vivem, eu não tinha a intenção de viver de carnaval. Inclusive, eu tive que mudar a cultura do trio elétrico. É isso que eu digo, o carnaval e o trio elétrico são associados a uma alegria vamos dizer leve, que também é muito boa, ave maria, mas não é possível, né? Não é possível. Você passar quatro, cinco dias em estado de êxtase, meio louco, tomando uma cervejinha, quando você é adolescente e tem uns dias que quer esquecer… Mas você não pode ficar de férias o ano inteiro, né? Cantar músicas banais seria ficar de férias a vida toda. Mas não é só o axé que tem músicas simples e banais, eu até fiz pra me defender “tem que ter bar, tem que ter alegria, pode ser banal, tem que ter Bahia, tem que ter carnaval” (de “Alegria Ocidental”, 1994).

Porque até a banalidade, quando ela é musical, orra. Quanto nonsense maravilhoso tem Jorge Ben Jor, Jackson do Pandeiro, tantos… Olha a discussão do Prêmio Nobel agora, de Bob Dylan, o que é fazer letra, suingar, quebrar, ioioiô, ieieiê, lelelê? O mundo todo, James Brown, Chuck Berry, os caras lá, é só suingue, só balanço, só qualquer coisa. Aquilo acaba dizendo, as pessoas falam espontaneamente, compõem, se não pensarem muito acabam dizendo coisas mais profundas. É aquela história, quando menos se pensa talvez mais profundo se seja. E quando você não tem esse crivo racional, essa obrigação de copiar ninguém… Quando os compositores começam a tentar fazer alguma coisa que já foi feita, passa a não me interessar. “Vou fazer uma música pra você”. O que que eu quero?, você já me perguntou? “Não, vou fazer parecida com as suas.” Parecida com as minhas não quero, eu já falei, por que que eu quero outra? Isso eu já fiz. E eu fui aprendendo com eles a fazer o axé. Eu também não era uma compositora desse tipo de música, porque essa música não existia na minha vida. Era uma música que tava sendo feita ali. Guiguio me apresentou o jeito de cantar “O Mais Belo dos Belos” (1992), eu passei anos pra aprender.

Passei anos pra aprender a cantar aquilo daquele jeito, “nenenenem, babababá”, dialogar com o ritmo daquele jeito, ter o domínio que eu tenho de passear por aquela base. E olhe que eu cantava João Bosco, “pra que lembrar dos óio dele, jabuticaba madura” (cita versos de “Calcanhar de Aquiles”, gravada por Elis em 1980, mas composta por Jean Paulo Garfunkel). O que eu cantava em barzinho era “eu tenho uma casinha lá na Marambaia” (“Marambaia”, gravada em 1961 por Elza Soares), brincando de quem fazia mais rápido, porque o barzinho às vezes ficava vazio, ficava chato, então a gente apostava corrida, eu e o violão, pra ver quem conseguia, pra não se embolar. Então eu cantava “teco teco teco na bola de gude era o meu viver/ quando criança no meio da garotada” (“Teco-Teco”, gravada em 1975 por Gal Costa), e também a brincadeira era tentar cantar rápido, por isso que “a massa em lata invadia/ quero ver, quero ver, quero ver, quero ter, quero ter, quero ter” (de sua “Trio Metal”, 1998).

PAS: Já se preparando pro trio elétrico. Isso tudo te preparou pro trio elétrico?

DM: Mas isso é uma articulação difícil. Na verdade o trio elétrico virou a personalidade, a capacidade artística nossa. A gente virou a voz e a identidade disso. Alguns artistas deram identidade inclusive vocal, interpretativa, pra uma música que a gente tava compondo, compunha de acordo com o talento de cada um.

PAS: Como é que um ser humano consegue fazer aquilo? Quantas horas por dia durante todos os dias de carnaval cantando?

DM: Aqui em São Paulo eu fiz sete horas sem dormir,. Vim virada de um show em Recife. Tinha muita convicção.

Malu Verçosa: Quero dizer que ela anda acompanhada. Ela não sobe ali sozinha, não. Já vi de todo jeito, doente, cansada, exausta, sem dormir, sem comer, com problema, sem problema…

PAS: É um ser humano.

MV: Quando ela sobe, acabou tudo. Não lembra de mais nada. Aquele dia em São Paulo cê tava sem dormir, dormiu uma hora no voo porque o comissário era fã dela e pediu pra não fazerem todos os avisos de cabine, pra ela conseguir cochilar durante uma hora. Ele inclusive foi, você lembra que a gente viu ele lá de cima do trio?

DM: Mas ele fez por uma iniciativa dele, viu? Não fui eu que pedi, não.

MV: Não foi a gente que pediu. E cê tava com o pé machucado, tanto que a fisioterapeuta veio. Ela tava com o pé machucadíssimo, não tava conseguindo mal andar. Ela tinha feito show na noite anterior, carnaval em Recife, tinha vindo pra cá e fez sete horas, de salto.

PAS: Quando é legal do jeito que foi aquele dia sara? Ou depois volta tudo, o pé volta a doer?

MV: Acho que sara tudo. Sara a alma.

DM: Sara a alma, mas o corpinho fica acabado (risos).

MV: Mas cê nem ligou no dia seguinte, cê tava tão feliz.

DM: Eu fiz anteontem 2h45min de show.

PAS: Aquilo foi uma vingança da rainha má.

MV: Ela disse que foi o mais feliz da vida dela, naquele dia aqui em São Paulo.

PAS: Ainda mantém isso?

MV: Acho que o meu também.

DM: Eu adoro, adoro.

PAS: Mas aí rola esse reencontro, dessas duas realidades que pareciam não…

DM: No estádio em Lisboa… Sabe o que é chegar em Lisboa, Cascais, Paris e ver as pessoas cantando as coisas do Curuzu? É muito surreal aquilo. Ver aqueles portugueses, minha turnê toca pra 550 mil pessoas, Pedro, e eles cantando as coisas que a gente canta no gueto em Salvador, sabe? É muito afirmativo. É muito massa, cara. É por isso que chego lá e digo que as caravelas voltaram. Eu tenho é que terminar o meu mingau (come algumas colheradas do mingau). Tá um horror isto aqui, o mingau tá horrível já. Eu tô com tanta fome. Eu morro de fome. Cheguei com tanta fome que vim comendo um pedaço de frango dentro do carro, pareço uma louca, porque eu sabia que não ia comer quando chegasse.

PAS: Naquelas sete horas do trio elétrico dá pra comer?

DM: (Sinal de não, enquanto come.)

PAS: Não come um grão de areia?

MV: Mas é um absurdo o que ela faz, porque não é pra ser assim.

PAS: O que os seus médicos falam?

MV: Que ela é uma louca. Sabe o que a gente faz? A gente dá carboidrato líquido pra ela. Ela não come. Ela não bebe.

DM: Eu não como. Mal consigo beber.

MV: Tem horas que fico no pé dela: Daniela, bebe agora, bebe agora. Porque senão ela não bebe o carboidrato, ela não bebe água, ela entra em transe. Não é humano. Ela vai acompanhando.

DM: Pedro, você vai dizer que é poético, que é não sei o quê. Quando eu era pequena, eu sempre tive muita energia, e eu nunca entendia muito de onde vinha isso, que motivação eu tinha. Eu devia ter uns seis anos, eu queria porque queria aprender a sambar. Ninguém da minha geração aprendia. Era criança, criança, não via ninguém sambando, só via os adultos eventualmente sambando. Botei na cabeça aquilo. Eu era a primeira a dançar, festa de 1 ano de minha prima, tocava Banda do Canecão, eu era a primeira a começar a dançar e era a última criança a sair. Minha mãe ficava esperando eu terminar de dançar pra ir embora pra casa, “minha filha, tá na hora de parar”. Enquanto não parasse a música eu não parava de dançar.

PAS: Então tá em você mesmo, não é que teve que ser construído.

DM: Lá em casa somos cinco filhos. Tinha sempre festas que a gente inventava, e dança dos anos 1970, soul music, dance, não sei o quê, Santa Esmeralda, aquelas coisas. Eu já era dançarina. Eu trocava de par pelo menos umas 15 vezes. Até hoje, quando tem festa na nossa casa, quando começa tocar alguma música que eu gosto – porque também só toca o que eu gosto – até terminar eu não consigo, eu sou siderada por aquele lugar. Sabe qual é o meu sonho de consumo? Uma sala de dança. Eu tenho uma sala de dança em casa só pra dançar. Então a relação com a dança é muito forte mesmo, a necessidade de cantar, criar, comp…, improvisar, lidar com o ritmo. Pra mim parece que eu sou abduzida pelo ritmo. Agora, se você me botar pra cantar bossa nova cinco horas eu não aguento. Eu até brinco no show, dizendo que tenho que tomar Lexotan pra cantar bossa nova. Gente, demora muito aquela nota, “um cantinho, um violão”, pra mim é uma eternidade. Cada nota demora uma eternidade. Eu preciso ficar calma, não é que eu não goste, não, eu gosto ritmicamente, acho lindo, gostoso. Mas não é do meu espírito.

PAS: É por isso que no dia que eu fui ao show você fez um ato falho e cantou “revelou-se a minha enorme ingratidão” (em vez de “revelou-se a sua enorme ingratidão, em “Desafinado”, clássico de 1959 na voz de João Gilberto)? Eu ia te perguntar qual foi a sua enorme ingratidão (risos). As notas são muito longas, entendi.

DM: É, eu vi, tentei consertar, mas se eu consertasse ia ficar pior. “Revelou-se a sua enorme ingratidão”, aí ficou minha, né? Eu faço coisas incríveis (risos).

MV: Psicanalítico.

PAS: Freud explica.

DM: Completamente, tanto é que ela disse agora, quando eu fui gravar os sambas-reggae, todos eu tinha alterado as letras, todos.

MV: Todos.

PAS: Deixa eu voltar um minuto. A gente veio de uma gestão petista aqui na prefeitura, que foi enchendo as ruas de volta. Foi enchendo as ruas, foi enchendo as ruas e um dia você coroou isso com a passagem do seu trio elétrico. Esse foi o dia mais feliz da sua vida mesmo? Como vai ser a partir de agora?

DM: Foi. Um presente, né? É o que se consegue realizar. Pra mim foi abrir uma picada nova no meio de uma floresta, no meio de um lugar onde não havia. Como eu sou a grande desbravadora, a grande graça da minha vida é desbravar novos caminhos, é levar aquilo de novo. A música que eu faço é brasileira, trago um monte de coisas, não trago só a minha música, cantei Renato Russo, MPB. Eu trago uma brasilidade, uma música feita por nós, rítmica, importante, afirmativa, que acho que emprega parte do que somos em termos de identidade brasileira. E é importante que a gente ocupe espaços, né? Fiquei doida pra ocupar o MinC (Ministério da Cultura), mas não deu tempo, como ocupante lá das manifestações. Porque eu fui convidada pra ser ministra da Cultura, cê sabe, né?

PAS: Foi também?

DM: Fui, fui convidada pra ser ministra da Cultura.

PAS: Eu sei que várias foram, não lembrava. Respondeu o quê?

DM: Disse que não. Eu na verdade faço política sem trabalhar dentro da política. Acho que política partidária, tomar partido, limita. Eu não tenho interesse mesmo nesse meio, apesar de achar a profissão mais importante da democracia. Não é que não tenho interesse no que fazem. Eu não tenho estômago pra entrar no meio político. Não tenho a habilidade pra lidar com isso, apesar de ter conhecimento do que é necessário. Sou uma empresária da área artística há muitos anos, conheço bastante o contexto sociopolítico brasileiro. Conheço muito de educação, porque como sou uma pessoa militante da área de educação, de artes, tô sempre me apropriando desse conhecimento. Mas de como fazer política, conseguir que aquilo funcione, chegue nas pessoas, verbas, realmente é algo que você precisa ter o domínio técnico de estar ali dentro e saber como se mover dentro do meio político. Fora que eu sou contra o impeachment, né?

PAS: Dentro daquele contexto específico, de todos os nãos que você ouviu estas décadas todas, veio o cara que não tinha nenhuma mulher no ministério te convidar pra ocupar o espaço da mulher num ministério sem mulheres.

DM: Ele veio convidar a mulher depois que já tinha…

PAS: Já tinha tentado acabar com o ministério.

DM: Não, primeiro que ele já tinha ocupado o espaço que não era dele, porque tinha acontecido o impeachment, a primeira coisa. E depois, tudo que ele fizesse não importava muito. Não era a questão. Mas, independentemente da situação ser completamente esdrúxula politicamente, inaceitável pra quem acredita nos caminhos da democracia e entende que não podia ser daquele jeito, fiquei lisonjeada, gostaria de contribuir e contribuo do jeito que posso, mas não tenho pretensões de assumir cargos políticos mesmo, nunca tive. E disse isso também. Agora a gente tá aí com a saída do Marcelo Calero do ministério, com essas questões todas, tudo inviabilizado. E com a sociedade…

PAS: Você  falou e eu interrompi, você é contra o impeachment?

DM: Sou. 

PAS: Foi golpe?

DM: (Silêncio,) É… Acho que foi uma articulação. Acho que eles tentaram encontrar soluções pra eles sobreviverem…

PAS: Por que você é contra, Daniela?

DM: …Ou manutenção de riqueza na mão de alguns, ou interesses. Com certeza não foi algo ideológico, não foi em prol do país. Foi uma questão deles, interna, essa é a minha sensação muito clara. Eles tavam tentando resolver problemas deles. É como se o Congresso, o Senado fossem… Realmente, o fato de Brasilia estar isolada dá a sensação de que aquilo ali é uma cúpula que se fecha neles mesmos. Então as questões são deles, eles não dialogam com a sociedade, não tão olhando, respirando o que a sociedade respira. Vivem uma vida à parte, uma ética à parte. Então é realmente um mundo muito particular, e assustador. Assustador. Há autoritarismo em todos os lados.

PAS: Você fala disso no show, disse “quem gosta de autoritarismo não existe como gente“.

DM: É, porque quando um líder de um país democrático, qualquer ele que seja, de qualquer linha de pensamento, resolve achar que a posição dele é a verdade absoluta que deve ser imposta, tá complicado. Seja um político do PT, do PSDB, de qualquer partido, dos múltiplos partidos que a gente não sabe o que pensam. Se a gente fez a democracia tão interessante, inovadora, cheia de olhares, devíamos ter uma diversidade de olhares ali. O pluripartidarismo preza por isso, a única coisa interessante de um pluripartidarismo são vários olhares pra representarem mais olhares da sociedade, pra se conseguir ali fazer leis e lidar com as necessidades das pessoas daqui percebendo as particularidades, as necessidades de cada grupo de cidadãos. Mas não, a gente não sabe muito bem o que pensam e quando expressam o que pensam a gente se assusta. Eu nunca… Eu tenho uma coisa, Pedro, como cidadã eu nunca esperei que a regulamentação de uma ética da sociedade viesse de governos, de líderes. Nunca esperei isso, nunca tive eles como referências pra mim, ícones.

PAS: Isso vale pros artistas também? Muitas pessoas usam vocês como essa referência.

DM: Acho que também não devem tomar, porque somos indivíduos, somos profissionais.

PAS: Cada um fazendo a sua parte.

DM: Tem profissionais que têm um comprometimento com o coletivo, que pensam no coletivo, discutem a questão do todo, são pessoas atuantes em várias áreas. Jornalistas também, pode-se dizer a mesma coisa também, tem jornalistas que se preocupam como vão atuar na sua atuação. Você leva sua ética pessoal e seus desejos, seus sonhos de país, seus ideais de sociedade, pra tudo que você faz. Um artista é muito poderoso. É um cidadão superpoderoso, pro bem e pro mal. Ele se representa só a si mesmo, e se quiser representar alguma outra instituição ou grupo de pessoas precisa ganhar legitimidade praquilo, como eu tenho uma relação, por exemplo, com a comunidade afrobaiana. Eu sou uma das pessoas que representam o discurso deles, sou respeitada dentro daquele ambiente, posso falar com tranquilidade, falo tête-à-tête com eles todos sobre todos os assuntos, por quê? Porque é legítimo, humano, uma preocupação minha, algo que tomei pra mim. Não preciso ser exatamente daquela comunidade para representá-la, mas compactuar dos ideais parecidos, próximos, e construir pensamentos em conjunto e soluções pra resolver os problemas da cidade. Mas cê precisa compreender aquele universo, gestão pública é algo assim, né? Você tem que compreender as demandas de uma sociedade toda e ver como vai equacionar as coisas. Não há igualdade, é difícil. Não sei por que puxei essa palavra,  é que eu tava refletindo sobre gênero, dizendo que no fundo não há, também, de gêneros. Esse ideal de igualdade é muito difícil, porque há pesos diferentes pra cada coisa. Mas, sim, me perdi um pouco. Eu acho que eu interfiro no que eu quero, no que eu desejo, no que jogo energia pra conseguir. Eu acho que a primeira obrigação dos artistas é fazer uma arte bem feita, como todo profissional. Se for arquiteto precisa fazer uma obra…

PAS: …Uma casa que não caia.

DM: …Obras de arte. Espero muito mais do que uma casa que não caia. Espero uma casa inovadora, que dialogue com o meio ambiente, enfeite a cidade, seja humanizada. Espero muito de arquitetos, já que são artistas também, pessoas sensíveis. Espero muito das pessoas, eu superestimo as pessoas, talvez por isso eu faça tanta força pra ver que as coisas vão acontecer. Sou muito intensa, sofro muito quando o Brasil sofre. Eu vou, vou, mas esses meses de angústia com o impeachment me acabaram a vida. Me acabaram. Eu fiquei doente, adoeci pelo menos umas três vezes. Era um sofrimento que parecia que tava me cortando a carne, tudo isso, todos os discursos, enxergar aquilo tudo. Ao mesmo tempo, eu acho menos hipócrita. Acho que é elucidativo, acho este momento muito bom. Não adianta a gente dizer que é politicamente correto se você não luta efetivamente pra aquilo, não é?, se você não tem coragem de tomar atitudes. Em nenhuma área, é a mesma coisa de você dizer “ah, eu quero fazer uma arte conceitual”, mas eu não tenho a coragem de quebrar fronteiras, tabus, fazer diferente, me atrapalhar, não vender discos. Toda vez que vou fazer um disco, um CD ou faixas virtuais, eu fico pensando: eu tenho que ter a mesma vontade, a mesma coragem que eu tinha no primeiro álbum, e a mesma inconsequência. Eu não tenho que pensar em como vou sobreviver, que dinheiro isso vai me dar. Tenho que pensar como é que eu vou fazer uma coisa importante, ainda que eu não seja completamente suicida e louca. Não acho que também seja por aí, de fazer uma coisa anárquica, somente por fazer. Não se faz uma coisa boa somente por fazer ou ser do contra.

PAS: Você já fez muito na música, olhando, reavaliando tudo hoje. Muito com as letras, com tudo que fez…

DM: Que bom ouvir.

PAS: …Pelo empoderamento.

DM: Não terminou se era bom ou se não era. Muito é quantidade, né? Amor, cê me dá um batom, que ele tá me filmando aí?

MV: Que pedido esquisito, juro que fiquei assim…

DM: Casar com mulher, pedir batom é ótimo, né?

MV: Cê tem 15 minutos.

PAS: Eu vejo hoje, os discos recentes, esse da rainha má, eles são puro empoderamento feminino, e com sua história com Malu também, acrescentando mais, o empoderamento gay, LGBT.

DM: Gay, engraçado isso.

PAS: Eu queria chegar nesta pergunta, alguém que lutou tanto pelo próprio empoderamento, com a questão feminina…

DM: Eu lutei, mas não tive que botar tanto na música explicitamente, né?

PAS: É, mas foi indo. E o Brasil também foi pra essa direção, empoederou todas essas populações nos últimos anos. E aí essa mulher, você, que acabou de dizer que ficou doente e sofreu, viu uma mulher ser eleita presidenta da República e depois ser destituída depois de ser reeleita.

DM: Foi muito constrangedor, muito desagradável.

PAS: O que você sente?

DM: Senti, primeiro, obviamente, que havia machismo. Mas também não posso restringir, não posso dizer que foi só isso, porque inclusive foi eleita duas vezes, então não foi da sociedade. Como você mesmo diz, não é a sociedade, a massa da população, a maioria da população que tem esse tipo de atitude tão racional, tão purista. Pode até estar no consciente coletivo, mas ele não consegue mais verbalizar, isso é um ganho. Isso é uma coisa muito legal, ter visto o país fazer isso. São poucos os países do mundo, o Chile, a Alemanha, Margaret Thatcher, mas de outra forma, primeira-ministra, sem o voto direto. Algumas líderes do mundo, mas que eram… Pra nós era novidade, era a primeira vez. Eu não tinha dúvida, eu acho o Brasil muito matriarcal. Eu não vejo pouco poder das mulheres, não. Acho até que as mulheres apanham porque elas têm muito poder. Por quê? Porque as mulheres confrontam, são corajosas, sabem do seu poder, são mães.

PAS: Está falando de você?

DM: Não, eu acho que muitas mulheres.

PAS: Você é isso.

DM: Você tem a maioria da população brasileira de mulheres líderes de casa sustentando os seus núcleos familiares. As mulheres são muito fortes, cê sabe disso. As mulheres não largam os filhos, fazem três turnos de trabalho, mas não largam. Lógico, não é generalizar, sempre tem gente que não consegue, também tem homens admiráveis. Eu não gosto de separar, aprendi a trabalhar, a falar de gênero, de gente, desde menina, desde quando li Simone de Beauvoir com 15, 16 anos de idade e comecei a mudar meu discurso, a refletir, falar de gênero, de gente, de pessoa, e não ficar restringindo a pessoa a seu sexo corporal, corpo. Inclusive não é a gente, corpo é outra coisa. A gente se apodera dele, existe nele, lida com ele, mas tem muitas questões mais complexas o ser humano. Tudo tem que passar por essa compreensão. Vai falar de machismo, de feminino, sim, mulher, nesta sociedade brasileira, é muito poderosa. Mulher tem muito poder. As mães são poderosas. Os filhos endeusam as mães, né? A gente vive nos trópicos, a natureza é fêmea, é muito forte. Mas por isso acho até que há a agressividade física, porque as mulheres se impõem, se colocam, se posicionam. Porque, se não, que motivo tinham? Se elas fossem submissas talvez a violência fosse até menor, concorda? Porque quando você tá acatando, quando aceita quando o que fazem com você, não confronta, não vai estabelecer uma briga. É provavelmente porque as mulheres querem ocupar, não, vêm ocupando efetivamente outros lugares e quanto mais elas ocupam mais incomodam. Como a ascensão social de boa parte da população incomodou muita gente. Não tenho a menor dúvida de que conviver nos espaços públicos com mais gente, cidades mais cheias, shopping centers e parques com mais gente, as pessoas tendo acesso a tudo, vestindo a roupa parecida, isso não é fácil pra uma parte da população.

PAS: Virando casais e falando isso na frente de todo mundo…

DM: Os casais se beijando no meio da rua, aí nem se fala. Eu beijo Malu o tempo inteiro. Mas isso é uma questão ainda maior. Mas a postura da mulher, a forma como ela se liga. As pessoas ficam dizendo “muito feminista, pra quê?, pra que você fica falando essas coisas?”. Eu digo: eu não falo, não. Eu sou. Eu existo. Você tinha dito lá atrás, só por ser quem a gente é já incomoda muito. Mas acho que a gente tem que lutar contra a violência, isso é um fato. A gente tem que se articular, porque é uma questão de políticas que a sociedade precisa encontrar. São soluções práticas. Aí cê vai entrar no sociológico, pra mim a gente é de um país muito autoritário ainda, oligárquico, que tá se desfazendo muito sutilmente, mas é oligárquico. 

PAS: É curioso que a gente via o axé como autoritário, daqui.

DM: Mas a gente é.

PAS: Eu achava você autoritária também.

DM: Mas dentro do palco, inventando de fazer multidões dançar, eu tenho que ter voz. Eu tenho que conseguir aquilo. Mas a autoridade é conseguida através da relação de afeto, com a arte.

PAS: Autoritário você é se dá chicotada pra conseguir isso, senão não…

DM: Mas pedir pra um milhão de pessoas levantarem as mãos, tranquilamente dizer assim: por favor, levantem as mãos, e uma rua inteira levantar, é amor demais, né, bicho? É amor demais. Jamais uma ordem, e brasileiro aceita ordem assim à toa? Eu adoro Neguinho do Samba no documentário do axé (Axé – Canto do Povo de um Lugar, de Chico Kertész, que estreia em janeiro), ele diz que desenvolveu as baquetas, que mudou o comportamento do samba, o jeito de tocar o samba, porque ele disse: “Eu sou lá escravo de branco pra ficar machucando minha mão, tocando nesse tambor?”. É a mesma coisa. A gente toma essa baqueta em muitas coisas, vai ocupando o espaço de um jeito melhor, com mais qualidade de vida. As mulheres acho já estão até pensando como melhorar sua qualidade de vida, porque já estão com problemas de saúde, trabalham exageradamente e tudo.

PAS: Você acha que a gente vai ter que enfrentar um período de retrocesso disso tudo? Ou é evitável?

DM: Sabe o que eu acho? Eu fico vendo, quando um Donald Trump ou um Michel Temer tá num governo com um respaldo de gente muito careta, muito conservadora, muito machista, de um discurso duro e antigo, já ultrapassado em termos de sociedade, e discursos de ódio… Com Trump é mais grave ainda, porque ele tem discursos claros de ódio, e de uma ignorância sobre o meio ambiente…

PAS: Esse tipo de discurso tá rolando aqui na avenida Paulista toda hora, igualzinho.

DM: …É muito mais grave, porque ele é um agressor das minorias. O Temer é um agressor da democracia. Tá ali, é uma agressão à democracia, à estrutura do voto, ao que a gente conquistou com muito esforço. Isso é uma situação inaceitável, é muito estranho mesmo, completamente inaceitável num país democrático. Mas lá, Trump é mais grave, porque ele faz um ataque verbal e claro às minorias, a todos, tá querendo deportar muitas pessoas, é um absurdo em cima de outro, machista, muito mais que machista, violento, provoca violência contra os gays, as mulheres, os negros, os pobres. Ele não celebra o que ele gosta de ser, ele ataca, e teve gente que deu apoio. O que é que faz? Parece, fica parecendo que isso está ganhando, se for um time o time dele tá ganhando, o time de Temer tá ganhando. E essa sensação é horrível, porque quem é manipulado pelo sistema, quem não percebe que tá sendo usado e que é covarde, não confronta, o cidadão que não tem armas de conhecimento, de percepção do que tão fazendo com ele, cede ao que parece a ele estar como ordem vigente. Isso é que é muito preocupante, porque sem dúvida empodera porcaria, o que é ruim. Quando Trump foi eleito, esses tempos todos desde todo esse movimento em que Temer ocupou a presidência da República, eu tenho feito o quê? Buscado o que a gente como sociedade pode: fortalecer nossas lutas, pelos direitos humanos, pelos empoderamentos certos. As pessoas não sabem que isso vai fazer mal pra elas. O mais louco é isso, quem votou em Trump lá não sabe que vai ser prejudicadíssimo, porque não tem essa percepção. E o poder da grana, né?, Caetano volta, “a força da grana que ergue e destrói coisas belas” (de “Sampa”, 1978). Acho que no fundo tudo isso é pela grana, é manutenção do poder, alguns incômodos…

PAS: Que foram se acumulando…

DM: Tipo assim, tá incomodando demais, agora deixa. Se esse não foi o golpe, a gente achava que o golpe ia acontecer quando Lula assumisse pela primeira vez. Tínhamos essa certeza, de que às oligarquias brasileiras, os poderosos, os ricos – não posso nem dizer, porque parte da sociedade brasileira é rica e é cidadã, construiu com esforço -, a quem se interessava em manter seu poder como era antes, não interessava que aquilo fosse mexido. Então foi mexido, até se está discutindo muito, que nem Lula nem Dilma mexeram muito nessas pessoas. Mesmo assim elas se incomodaram muito. Aí a gente vai descobrir daqui a pouco por quê, tá descobrindo. Algumas por interesses específicos, outras por manutenção de poder e dinheiro. Agora, como é que a população vai lidar com isso a partir de agora? Eu acho que foi mais esclarecedor, é como se a gente saísse de uma época em que tava tudo escondido, em que alguns poucos jornalistas, artistas, cidadãos compreendiam que havia muita coisa errada que precisava vir à tona com a democracia. Eu acho que muitos dos políticos não sabem viver na democracia.

PAS: Não tavam preparados pra isso.

DM: Não tavam, não tão preparados pra uma imprensa livre, se incomodam com uma imprensa livre, e cada um de seu jeito foi autoritário. Não é uma questão nem de um partido só. Todos os partidos, os políticos têm esse hábito de serem autoritários e quererem definir o que é que eles querem. Porque eles tão acostumados com o poder. É muito difícil dividir poder, viver na democracia efetiva. Passamos dez dias agora na Alemanha, fomos à Suécia também. São lugares onde os líderes são funcionários públicos. A vida inteira passei dizendo pro público: olha, os funcionários públicos são nossos funcionários, são pessoas que cuidam da sociedade, de nós todos. Nós somos os patrões e os parceiros e temos que exigir deles. Todo mundo vai acordar amanhã cedo mais feliz e vai trabalhar porque tá trabalhando pro seu país, pros seus colegas, pras suas famílias. A gente tem que mudar o jeito de pensar, por que cê tem a sensação do axé ou de qualquer gênero? Por causa dos tempos mesmo. O Nordeste ainda tem questões mais profundas. A população foi acostumada a receber ordens, aquela coisa patriarcal. Os políticos assumiram o lugar do padrinho, do coronel. O político ainda não saiu desse lugar, as pessoas não saíram desse lugar, as gerações demoram a mudar. E a gente parou de educar a população para compreender isso.

Quando eu era menina – você é mais novo que eu um pouco, eu tenho 51 anos -, eu fui educada dentro da minha casa a contestar tudo, a não ouvir do professor da história dizendo coisas que eu não podia questionar. Eu podia questionar tudo, mesmo tendo nascido em 1965, o ano que não terminou. Mesmo vivendo na angústia, eu era educada na minha casa pra ser politizada e questionar tudo. A aula de OSBP também era indução, manipulação, mas eu não aceitava aquilo, porque em casa eu tinha uma educação crítica. A gente parou de se preocupar, eu tenho um filho de 30 anos, meus filhos são filhos da democracia. Aí todo mundo só faz celebrar, 30 anos de axé celebrativo. Eu digo: meu Deus, o que celebram tanto, se o axé começa falando que os negros estão lascados, que a gente tá excluído, cheio de problema? Os problemas sumiram de repente? Não, mas vamos celebrar. Talvez tivéssemos cansados de tanto sofrimento também. Mas na minha geração, a geração dos meus pais, muito sofrida, havia um “ah”, um suspiro, um desabafo, pera aí, deixa eu tirar umas férias aqui, descansar, acreditar no meu país, sonhar. Mas não dava pra sonhar demais, demorou um pouquinho tomando fôlego. E a sociedade foi, não acho que estejamos fora do contexto natural do Brasil. Estamos melhores, somos melhores do que éramos. Não sou uma otimista louca, não. Sou uma apaixonada por meu país. Acredito ainda na gente, acho que um povo que não acredita em si não prospera. E acho que o que a gente tem que provocar na pessoa são revoluções individuais, e está acontecendo. A gente tem uma juventude maravilhosa, que tá ocupando as escolas pra dizer que está contra a PEC. E tão tentando, os jornalistas têm que tomar cuidado, têm que estar aí vivos, por favor, porque tentam botar na boca das pessoas as coisas que não são. Tão tentando fazer um movimento de tentar colocar a sociedade… Tentar, olha aí a manipulação, eu não sei também de onde que vem, acho que é da própria sociedade, não acho que seja uma articulação, uma conspiração vinda de alguém.

PAS: Tem uma letra que você fala do “povo autoritário” (“Antropofágicos São Paulistanos”, 2015), o povo também é autoritário, né?

DM: É, o que acontece? Sair do lugar estável é muito chato. A gente tava num estado de euforia, e aí cê quer arrumar a casa rápido. Sabe quando a gente arruma a casa rápido? Essa tentativa, essa acomodação que a gente já entrou agora com o Temer no governo é como se tivesse arrumado a casa sem fazer faxina. Cê não limpou a casa, fez de um jeito que parece que tá arrumado pra não complicar muito a vida porque todo mundo tem muito o que fazer e não pode se ocupar das coisas coletivas. Mas olha que coisa seríssima que estamos vivendo. Vivemos numa sociedade que chama os artistas de vagabundos. Não é porque os artistas sejam uma classe de trabalhadores homogênea. É uma classe como qualquer outra, de cidadãos. Mas dentro de uma sociedade democrática, contemporânea, os artistas são a nossa humanidade representada. Eles são ícones do que somos. A profissão dos artistas é fazer do inconsciente coletivo arte. Com as canções a gente enxerga a gente mesmo, a população. Com Daniela cantando uma música de um compositor da cidade as pessoas percebem o que é a minha cidade, um pouco do que as pessoas pensam e sentem naquele lugar. Nós somos um meio de transporte de tudo que é humanidade neste Brasil. A arte é, ela não serve a nada. Ela nos liberta o pensamento, é a única coisa que nos restou de filosófico e provocativo e de reflexão além da informação dos meios de comunicação que vêm pra que a gente tenha críticas sobre eles. Os artistas também agem como espíritos do tempo. O trabalho deles é pescar o que está acontecendo na sociedade e fazer isso se transformar em arte e ser colocado pra todos. É informação em forma de arte, mais libertária, sem dogma, sem religião. Pelo amor de Deus, parece que a nossa Constituição é o livro sagrado de alguma religião. A gente tá tão maluco que… Nenhuma religião pode pretender ser mais importante que a Constituição e sobrepor aos direitos adquiridos ao longos de muitos anos, desde a Revolução Francesa até hoje, em sociedades modernas, pós-modernas. Aí então a gente tem uma sociedade que tá parecendo – também não posso generalizar – que acha que artista não importa, não é importante para se criar iluminação e reflexão sobre nós mesmos, que acha que os jornalistas também não são importantes, que acha que a religião é importante demais. Não é também, não pode ser mais importante do que as leis, que a ordem democrática. Os dogmas não são mais importantes que as construções democráticas. E ainda uma sociedade que tá se demonstrando claramente racista – uma parte da sociedade -, muito desavergonhadamente se expressando e se separando. Então ela tá oprimindo através da intolerância religiosa, do racismo, do machismo, e querendo calar as expressões mais importantes da sociedade. Quem são essas pessoas? Se somos nós, que é uma parte de nós isso, é. E quando os africanos veem que tem alguma coisa errada, sabe como é que eles fazem? Quando tem uma parte do núcleo da sociedade que não tá agindo bem, alguém que tá fazendo o mal, eles chamam essa pessoa e lembram a ela de tudo de bom que ela tem, pra expulsar o mal.

PAS: A gente tá precisando de umas sessões disso, né?

DM: É, a gente tá precisando lembrar pras pessoas que esse não é um bom caminho. A gente precisa lembrar aos jovens que não passaram situações de autoritarismo, que não sabem o que é um país sem democracia, o valor disso. Precisamos educar pra alertar esse espírito crítico, pra eles entenderem por que a gente chegou onde chegou. Se esqueceu. Os alemães, lá perguntei por que eles falam o tempo inteiro do holocausto, por que tem tantos monumentos, tanques de guerra, aquele labirinto, memorial do povo judeu. Eles disseram: “A gente fala todos os dias, em todos os meios de comunicação, pra que as novas gerações não esqueçam o que a gente fez e não corram o risco de repetir”.

PAS: É um erro que a gente tá cometendo, não tá fazendo isso.

DM: É, a gente tá repetindo, parte da população tá sem a noção de por que nós temos os valores que temos, por que defendemos o que defendemos.

PAS: Nós, pobres habitantes de São Paulo, sofridos, golpeados, agora com João Dória Jr. não vai ter mais carnaval com Daniela Mercury? O que a gente vai fazer? A gente acabou de descobrir que pode…

DM: Ao longo desses anos todos, fiz o Masp e não sei nem quem era o prefeito na época.

PAS: Luiza Erundina.

DM: Eu acho que as cidades são dos cidadãos. Existe uma expressão da cidade que tem sido o carnaval. Eu fiz uma coisa maior que precisa da cumplicidade do gestor. E vou fazer tudo que for possível pra ele se sensibilizar. Eu o conheço dos fóruns, é uma pessoa com quem tenho uma amizade, e só quero a rua pra andar e cantar. É meu sonho, eu morei em São Paulo, eu queria humanizar esta cidade. Consegui realizar esse sonho, pra mim gente na rua é canteiro de flor. É como arar a rua de novo. É como trazer terra, natureza, humanidade, amor, tudo de bom. Acho que é isso que ele quer pra cidade também. Ele quer coisas positivas, boas, e meu desfile teve um impacto muito positivo. Sou uma mulher que trago fé em nós, que falo que a gente precisa acreditar na gente. A minha música representa grande parte da população trabalhadora da cidade. Esta cidade, se tirar todos os nordestinos, não existe, não acontece nada aqui. Fico muito orgulhosa de ser nordestina e venho aqui também mais uma vez em cima do meu trio elétrico quebrar preconceitos. Não tô tomando partidos políticos, meu partido é a massa da população, é quem gosta de música, é quem se fortalece com o que a minha arte pode trazer de iluminação e reforço pra nosso povo.

PAS: Então se depender de Daniela vai ter carnaval de rua em São Paulo em 2017?

DM: Vou, vou fazer. Vai depender de mim e de Malu, porque eu e ela juntas somos um exército pela paz, pela música, pela arte, pelos direitos humanos, pela igualdade, pela equidade de direitos, sem dúvidaUma jornalista e uma artista juntas são perigosas. Pro bem. As rainhas más do bem. Nada mais subversivo, anárquico e reflexivo do que o mal. Ficar no lugar do mal é muito bom, porque você desconstrói. Você ter que ficar dizendo o que é bom e o que é ruim, aí já fica no lugar do desconfiado. É muito bom, isso foi libertador. Bem que eu dizia que a minha mãe era muito boazinha e eu achava que a gente não podia ser tão bonzinho assim – apesar de ela ter conseguido transformar muito, e nem sei se era tão boazinha, não. No trabalho ela nunca foi muito boazinha não. Foi o que tinha que ser, forte, confrontou o que tinha que confrontar. Eu não sou assim à toa.

(Parte 1 aqui.)

(Parte 2 aqui.)

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