O filósofo Sergio Paulo Rouanet, de 82 anos, abriu ontem uma cátedra de cultura na Universidade de São Paulo, a convite do Instituto de Estudos Avançados da USP e do Itaú Cultural, num prédio da Faculdade de Medicina. Antes de sua fala, durante um café, eu pedi para falar com ele e depois fotografá-lo, e ele consentiu. Depois, pareceu ter se dado conta de algo e voltou até onde eu estava. Disse então que queria que eu o fotografasse com a mulher, Barbara Freitag. Achei aquilo muito doce.
Na abertura da cátedra, seu anfitrião, o médico Paulo Saldiva, fez divertida abordagem das relações entre a arte e a medicina, incorporando desde o dr. Kildare até o dr. House, da série de TV. “Nesse país que não é exatamente um spa nesse momento, é bom termos uma atividade como essa”, afirmou, acrescentando que a cultura anda carecendo de um espaço mais efetivo de reflexão. Ninguém é capaz de discordar. Saldiva é um sujeito interessantíssimo, preciso me lembrar de marcar uma conversa com ele a qualquer momento.
Ao final da conferência, tive diversos problemas com a visão nitidamente conservadora de Rouanet sobre diversos temas. Ele disse: “Na etapa da internacionalização, não há nada mais perigoso que a adesão obstinada a uma identidade única. Se xiitas e sunitas tivessem identidades múltiplas, além de suas lealdades meramente sectárias e nacionais, talvez tivéssemos evitado o genocídio na antiga Iugoslávia, a guerra civil na Síria ou os atentados terroristas recentes em Paris (2015) e Bruxelas (2016)”. Eu teria perguntado a ele, com sarcasmo, se meu senso profissional não me tivesse detido: “Se os norte-americanos tivessem identidades múltiplas, isso teria evitado que tivessem entrado no Iraque com um falso pretexto, o das armas químicas?”.
Ainda assim, pelo escopo claramente humanista de sua argumentação, é difícil não sentir simpatia por esse intelectual de direita. Sua folha corrida é impressionante: foi cônsul em Zurique e Berlim, embaixador na Dinamarca e na Checoslováquia, escreveu o notável ensaio As Razões do Iluminismo (1987) e O Mal Estar da Modernidade (1993). Foi desse último que ele descolou a aula de ontem, que me foi cedida integralmente para reprodução pelo Institutos de Estudos Avançados da USP. Rouanet, ao final, lembrou de contar que tinha uma relação “edipiana” com a medicina: o pai era médico, um médico de preocupações humanistas. 
A leitura de sua aula é, a meu ver, algo fundamental. Aqui vai:
CÁTEDRA OLAVO SETUBAL

INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS

A MODERNIDADE E SUAS AMBIVALÊNCIAS

 Mas o que, exatamente, significa a modernidade? Segundo um sociólogo contemporâneo, Anthony Giddens, “a modernidade se refere aos modos de vida e de organização social que emergiriam na Europa a partir do século 18 e que se tornaram subsequentemente mundiais em sua influência.”
Mas se quisermos dar um conteúdo concreto a essa moldura cronológica vazia, melhor faríamos se voltássemos às análises clássicas de Max Weber. Para ele, a modernidade é o produto de processos cumulativos de racionalização, que se deram na esfera econômica, política e cultural. Na esfera econômica, a modernidade implica a livre mobilidade dos fatores de produção, o trabalho assalariado, a adoção de técnicas racionais de contabilidade e de gestão, e a incorporação incessante da ciência e da técnica ao processo produtivo. Na esfera política, a modernidade implica a substituição do poder descentralizado, típico do feudalismo, pelo estado central, dotado de um sistema tributário eficaz, de um exército permanente, do monopólio da violência, e de uma administração burocrática racional. Na esfera cultural, a modernidade implica a secularização das visões do mundo tradicionais (Entzauberung) e sua divisão interna em esferas de valor (“Wertsphären”): a ciência, a moral, o direito e a arte, até então embutidas na religião.
Se examinarmos com atenção essas categorias, verificaremos que para Weber, modernização representa, principalmente, aumento de eficácia. Esse conceito de modernidade é o que prevalece na literatura especializada e nas políticas de desenvolvimento econômico e social. Modernizar significa melhorar a eficiência do sistema tributário, educacional, de saúde pública. Trata-se de um conceito funcional de modernidade, no sentido próprio da palavra: numa sociedade moderna, as instituições funcionam melhor que numa sociedade arcaica.
Mas a modernidade não se esgota nesse vetor funcional. Ela tem um segundo vetor, que não tem a ver com a eficácia, e sim com a autonomia. Segundo esse modelo, uma sociedade não será moderna apenas quando seus subsistemas se tornarem mais eficazes, mas quando proporcionarem o máximo de autonomia possível para os indivíduos. Nessa perspectiva, quando se dá na esfera econômica, a modernidade, passa a significar a capacidade de obter, pelo trabalho, os bens e serviços necessários ao próprio bem-estar, num sistema social que exclua a exploração e a injustiça institucionalizadas. Na esfera política, passa a significar a capacidade de exercer a cidadania, num estado de direito que assegure a vigência integral da democracia e dos direitos humanos. Enfim, quando se dá na esfera da cultura, a modernidade significa o livre uso da razão, sem tutelas de qualquer natureza – o sapere aude de Kant – num contexto institucional que garanta a todos o direito à produção cultural e o direito de acesso à cultura.
Ora, ocorre que tanto na dimensão da eficácia quanto na dimensão da autonomia a modernidade tende a internacionalizar-se. Chamemos de globalização o movimento de internacionalização da modernidade funcional e de universalização o movimento de internacionalização da modernidade emancipatória.
A internacionalização da modernidade funcional é o que chamamos tecnicamente de globalização. As barreiras locais e nacionais são percebidas como excessivamente estreitas, bloqueando o pleno desdobramento da lógica da eficácia e do rendimento. Consequentemente, essas barreiras vão sendo derrubadas. A modernidade funcional passa, primeiro, dos particularismos locais, que impunham limites à ação do capital, para um espaço mais amplo, criado pelos estados nacionais. Em seguida, os próprios estados nacionais tornam-se demasiadamente acanhados. A modernidade ultrapassa esses limites e se globaliza na esfera econômica, dando caráter crescentemente planetário aos fluxos de comércio, de capital e de tecnologia, e impondo em todos os países políticas econômicas semelhantes, com base no chamado consenso de Washington. A modernidade funcional se globaliza também na esfera política, relativizando as soberanias nacionais graças a pactos militares (OTAN) e “califados” terroristas (Estado Islâmico) que ignoram as fronteiras tradicionais entre os países, formando verdadeiras societates scelerum. Finalmente, internacionalização da cultura: se toda classe segrega uma ideologia, não poderíamos dizer que o neoliberalismo é a expressão ideológica da modernidade funcional?
Os agentes da modernidade funcional se movimentam numa área regida pela razão instrumental, no sentido de Habermas. São corporações transnacionais, na esfera econômica; na esfera política, são os intelectuais orgânicos do Príncipe global. Poderíamos falar numa nova classe, numa nova burguesia, encarregada de gerir a nova modernidade e seus subsistemas? Sim, a dar crédito ao filósofo neopragmatista americano, Richard Rorty, para quem existe hoje uma classe dominante global (global overclass). Pensemos também em Leslie Sklair, que fala numa classe capitalista transnacional.
Os agentes da universalização operam numa área regida por uma racionalidade não weberiana – a razão comunicativa. Seus atores, nas diferentes esferas, são organizações não governamentais, movimentos sociais, igrejas, governos democráticos. Seria algo como um novo proletariado, cuja base seria constituída pelos excluídos e inassimiláveis da economia global – uma espécie de neossocialismo, como réplica de baixo ao neoliberalismo de cima.
Gostaria agora de fazer algumas reflexões sobre o tema da modernidade internacionalizada. A cultura pode ser vista, por um lado, num sentido antropológico, como conjunto de crenças, valores, modos de sentir e fazer, memórias e experiências partilhadas. Ela também pode ser vista, num sentido mais restrito, como conjunto de bens simbólicos – literatura, pintura, música, cinema, dança e seus respectivos suportes materiais – livros, quadros, discos, peças musicais e teatrais, filmes. Estou usando a palavra nos dois sentidos, porque obviamente os dois fluxos estão interligados.
 Temos agora as categorias de que precisávamos para compreender a modernidade cultural na era do capitalismo internacionalizado. A cultura se internacionaliza seja sob a forma da globalização (a partir da modernidade funcional) seja sob a forma da universalização (a partir da modernidade iluminista).
A globalização cultural pode ser entendida tanto num sentido antropológico amplo quanto como num sentido restrito. Em outras palavras, ela pode envolver a difusão mundial tanto de culturas, no sentido antropológico, quanto dos bens materiais em que estão investidos esses valores. Mas isso é trivial. A questão interessante é outra: a cultura  global se difunde sempre a partir de um centro, ou podemos dizer que a cultura global é descentrada, que ela é a cultura da sociedade global, do mesmo modo que a cultura nacional é a cultura da sociedade nacional? A primeira hipótese supõe que o sistema mundial continue se compondo de estados-nações. Os estados nacionais periféricos seriam culturalmente “colonizados” pelos estados nacionais hegemônicos. É a tese do imperialismo cultural. Os americanos reagiram com choque à noticia de que os japoneses estavam comprando estúdios cinematográficos O capitalismo global é fundamentalmente supranacional. Mas desde muito se sabe que o capitalismo é fundamentalmente supranacional. Já Marx se referia ao “cosmopolitismo das mercadorias.” Um documento da Brown Bovery mostra que essa característica só fez acentuar-se. “Não somos uma companhia sem teto; somos uma companhia com vários lares.” Esse cosmopolitismo é especialmente evidente na esfera da cultura. Num momento dado, a indústria dos bens culturais pode ser indiferentemente monopolizada por conglomerados suíços, alemães ou japoneses e o panorama pode mudar da noite para o dia, ao sabor das fusões e aquisições, que variam com estonteante velocidade. A indústria fonográfica, por exemplo, é dominada por empresas de várias nacionalidades, como a Berthelsman, a Polygram, a Sony, a Virgin. Se a Sony absorvesse uma de suas concorrentes, isso não bastaria para caracterizar um imperialismo cultural japonês, porque no momento seguinte a Berthelsman poderia captar o mercado, e assim por diante. Nessa ótica, a globalização significa a disseminação mundial da cultura do Ocidente, seja no sentido antropológico – atitudes como o individualismo, a competitividade,  o materialismo, o utilitarismo, o espírito aquisitivo , seja no sentido concreto – o monopólio do filme ou do livro americano. Globalização seria sinônimo de ocidentalização ou americanização. Essa tese não perdeu sua validade. Como o imperialismo econômico que em parte continua existindo mesmo depois que o capitalismo se transnacionalizou o imperialismo cultural ainda não está moribundo. Os governos continuam protegendo sua indústria cultural. Basta ver a beligerância com que os Estados Unidos defendem seu cinema, na OMC, e a feroz determinação com que combatem a “exception culturelle” francesa.
Mas se é verdade, como sustentam alguns autores, que já entramos na fase da sociedade mundial, global, ou seja, uma sociedade existente em si mesma, irredutível à soma das sociedades nacionais, nesse caso ela teria uma cultura própria, que não é nem um agregado das culturas nacionais, nem a mundialização de uma cultura nacional hegemônica. Nessa perspectiva, a disneylandia, o jeans e o McDonald´s não correspondem a um projeto imperialista norte-americano, e sim a uma nova forma, transnacional e não simplesmente internacional, de organização capitalista da produção e do consumo. A nova realidade é o fast food e não a Brioche Dorée, Quick ou Free Time, todas três empresas francesas. O Western não é mais um monopólio americano. Num certo momento até a Austrália e a Itália passaram a produzir filmes de cowboys (Silverado e Western Spaghetis, respectivamente).
Que dizer, agora, da outra modernidade, a emancipatória? Também ela se internacionaliza. Deriva diretamente do vetor emancipatório do projeto da Ilustração. Por isso podemos chamar de universalização esse movimento, em contraste com a globalização, que deriva da modernidade funcional. A modernidade emancipatória levou às últimas consequências o projeto estoico e cristão da fraternidade universal. A Ilustração incorporou essa universalidade. Para ela,  a ideia de que todos os homens e mulheres eram iguais, independentemente de fronteiras e culturas, estava longe de ser uma abstração retórica. O mundo para a Ilustração era realmente uma civitas maxima. Era o ideal kantiano do Weltburgertum, partilhado por Gibbon, Voltaire, Wieland, Diderot, Condorcet, que se vangloriavam de ser cidadãos do mundo. Até o mais particularista desses filósofos, Rousseau, que nunca abriu mão do seu patriotismo helvético, “louvou as grandes almas cosmopolitas que atravessam as barreiras imaginárias que separam os povos e que, seguindo o exemplo do Ser soberano que os criou, abraçam o mundo com sua benevolência.” A consequência dessa concepção é que em caso de conflito entre normas universais e particulares, deveriam prevalecer as que incorporassem os interesses gerais do gênero humano. Foi essa a posição de Montesquieu: “Se eu soubesse de algo que fosse útil à minha pátria, mas prejudicial à Europa, ou útil à Europa, mas prejudicial ao gênero humano, eu o consideraria um crime.” Diderot se pronunciou no mesmo sentido, ao afirmar que, entre duas vontades antagônicas, a do individuo e a da espécie, deveria predominar “a vontade geral da espécie.” Rousseau não ficou atrás. Para ele, “a vontade particular de cada cidadão está subordinada à grande cidade do mundo e os deveres do homem vêm antes dos deveres do cidadão”.
A universalização da cultura não é fato inédito na história da humanidade. O fenômeno se deu no império bizantino, quando a cultura grega se impôs; no império romano, em que o latim e o grego se generalizaram em toda a Idade Média; e no período das grandes navegações ibéricas, em que o uso do português e do castelhano interligou os três continentes. Ela conheceu novos impulsos, desde o século XVII, com a entrada em cena de outros atores, como a Holanda, a França e a Inglaterra. Mas foi a partir do século XIX que a expansão mundial do capitalismo gerou a consciência de que uma cultura mundial estava verdadeiramente em gestação.
Talvez a primeira referência a essa cultura esteja em Goethe. Numa de suas conversas com Eckermann, ele disse que “se nós alemães não olharmos além do circulo estreito de nosso horizonte, cairemos facilmente num obscurantismo pedante. Por isso gosto de olhar do que se faz nos países estrangeiros e aconselho a todos que façam o mesmo. A literatura nacional não quer dizer grande coisa hoje em dia. Chegou a hora da literatura mundial (Weltliteratur) e cada um de nós deve contribuir para acelerar o advento dessa época.” Marx usa quase as mesmas palavras que Goethe. No trecho célebre do Manifesto em que descreve nos mínimos detalhes o que hoje chamamos globalização, Marx afirma que “os produtos intelectuais das diferentes nações se transformam em patrimônio comum. A unilateralidade e a estreiteza nacionais se tornam crescentemente impossíveis, e uma literatura mundial se constitui a partir de várias literaturas nacionais e locais.”
Como vimos, a cultura mundial está na confluência desses dois grandes fluxos: o que provém da modernidade funcional e o que provém da modernidade emancipatória. A cultura mundial contém elementos de ambas. Por isso ela é ambivalente. É a unidade contraditória das duas faces da modernidade, a voltada para o mercado e a voltada para a esfera dos valores, atitudes e representações simbólicas. No primeiro sentido, cultura é o que queremos dizer quando afirmamos que uma pessoa é culta. Ela gosta de Shakespeare, Guimarães Rosa e Machado de Assis. No segundo sentido, é aquilo em que pensamos quando comparamos a profundidade filosófica da cultura alemã ao pragmatismo da mentalidade norte-americana. As duas modernidades, ao internacionalizar-se, incorporam aspectos uma da outra, interpenetram-se. A cultura funcional, internacionalizada, civiliza-se, adquirindo uma roupagem universalista. Até os Presidentes dos Estados Unidos aprendem a dizer “muchas gracias”, e mesmo a citar Marti quando fazem discursos em Cuba. Inversamente, a cultura universal não hesita em democratizar-se. Proust é publicado em álbuns de histórias em quadrinho e Obelix conversa com Julio César num latim puríssimo.  
Com efeito, o âmbito da cultura universal tem-se ampliado desde o tempo de Goethe e de Marx. No sentido antropológico, a cultura mundial é hoje impregnada por valores humanistas, não utilitários, traduzindo a consciência de pertencermos à mesma espécie, de estarmos expostos aos mesmos riscos, de que todos os seres humanos, homens e mulheres, independentemente de nação ou etnia, constituem uma unidade. A ciência, cada vez mais cosmopolita, torna-se crescentemente sensível à dimensão ética e política do saber. Há uma rápida universalização da filosofia, da moral, do direito e das artes.
Mas a mercantilização crescente da cultura não significaria uma crise da cultura? Não estaria essa crise sendo solidária de outra crise, a do livro? E por que essa ideia nos apavora? É preciso confessar: em parte por tradicionalismo. Todos nós, intelectuais, vivemos dos livros para os livros. Somos um pouco como aquele personagem de Eça de Queirós, Zé Fernandes, que adormece no meio de milhares de livros, no palacete parisiense em que vivia, e sonha que tudo tinha se transformado em livros: as casas eram construídas com livros, dos ramos dos castanheiros pendiam livros, e as mulheres usavam vestidos de papel impresso. Ele chega ao obelisco da Concorde, evidentemente uma montanha de livros e chega ao céu. Encontra Deus, sentado em vetustíssimos fólios, lendo. O Eterno lia Voltaire, e sorria! Em nossa imaginação, somos todos diretores da Biblioteca de Alexandria, quando não da Biblioteca de Babel, de uma biblioteca virtual, indestrutível, que hoje em dia já existe como “Nuvem internética”! Real ou virtual, hoje ainda continuamos sendo incorrigíveis fetichistas, fascinados pelos livros enquanto objetos, e não somente enquanto depositários de ideias ou informações. Para mim, confesso, não há prazer sensual comparável ao de acariciar as páginas de um livro da Plêiade, virando as páginas de papier couché como se fossem as etapas de um jogo amoroso. Folhear, no caso, equivale a desfolhar. É nisso que consiste, literalmente, le plaisir du texte. Essa atitude, meio perversa e meio religiosa, é quase um convite à atitude oposta, antifetichista e antidessacralizadora.
 Um amigo, durante os acontecimentos de maio de 1968, na França, encomendou as obras completas de Flaubert, numa edição de luxo. Meu amigo passou o dia no escritório, antegozando o momento de saborear, em casa, suas novas aquisições. Mas verificou, consternado, que os livros tinham sido profanados pelo filho de 10  anos, que escrevera “merde” em cada exemplar. Justamente indignado, meu amigo perguntou: o que é isso, Jacques? O pequeno vândalo respondeu: C’ est la révolution culturelle!
Sim, somos filhos da Galáxia de Gutenberg, e não podemos aceitar facilmente a passagem para outra galáxia. Nisso, não somos muito diferentes do arquidiácono Claude Frollo, da catedral de Notre Dame, no romance de Victor Hugo. Frollo opunha o livro à catedral, dizendo que o livro acabaria por matar o templo: isto matará aquilo, ceci tuera cela. Que seria de nós, se a Internet matasse o livro?
Levada às últimas consequências, uma recusa tão extrema da modernidade funcional é certamente inaceitável. Só um cego deixaria de apoiar as extraordinárias contribuições trazidas pelas novas tecnologias para a preservação, difusão e até formulação do pensamento. Só por uma distorção ideológica muito profunda seria possível negar os serviços que elas prestaram ao próprio livro, e que vão desde a possibilidade de consultar a distância os catálogos das principais bibliotecas do mundo até ler incunábulos medievais com um simples clicar de mouse. Mas mesmo que as novas tecnologias estivessem de fato deslocando o livro, isso não seria necessariamente uma catástrofe. O livro é essencialmente um instrumento, um instrumento valiosíssimo, mas um instrumento. Outros instrumentos podem surgir, capazes de coexistir com o livro, sem expulsá-lo. Em si, a crise do livro não precisa indicar uma crise de cultura. Não nos preocuparíamos tudo isso se houvesse algum indício de que as novas tecnologias estariam de fato cumprindo o papel que lhes atribuem seus propagandistas, e se captássemos algum sinal de que atrás dos conteúdos transmitidos por esses veículos houvesse uma cultura vigorosa e intacta, como ela existiu na Europa, no século XVIII e XIX, isto é, no auge da cultura do livro. Nesse caso haveria crise do livro, mas não crise da cultura. Com a invenção da imprensa, por exemplo, houve crise na tecnologia tradicional, pela qual os livros eram copiados nos mosteiros, mas não houve crise de cultura, que pelo contrário floresceu como nunca, pois a imprensa tornou acessíveis autores modernos e pôs à disposição de um público muito maior todos os tesouros da sabedoria antiga.
Mas se nossa análise é verdadeira, existe, sim, uma crise de cultura, e é ela que produz em grande parte a crise do livro. As pessoas não leem, não por serem analfabetas, mas por serem vítimas do fenômeno que a UNESCO chama de iletrismo, a recusa de ler, a incapacidade de ler, mesmo quando dominam a técnica da leitura. É nisso, fundamentalmente, que a globalização é fatídica, não por dissolver identidades, muitas das quais deveriam mesmo ser dissolvidas, mas por planetarizar a massificação, levando – pela via das redes eletrônicas – o lixo cultural aos confins do universo, e demolindo com isso a curiosidade intelectual, sem a qual não existe o prazer da leitura. É da cultura global, e dos canais utilizados para sua difusão, como a televisão por satélites e a cabo, que vêm as contratendências que inibem a leitura. O adulto não lê, porque foi condicionado para não ler desde os bancos escolares, passando por uma verdadeira pedagogia da não-leitura, como os livros para colorir e as fotobiografias. Não lê, porque a leitura implica uma historicidade, um mergulho temporal na cronologia dos personagens e da trama, enquanto a mídia o habituou a um presente eterno. Não lê, enfim, porque passa por um aprendizado regressivo, que faz com que ele regrida do estágio do pensamento conceitual, sem o qual nenhum pensamento é possível, para o estágio do pensamento por imagens, efêmeras por natureza, sem ligações entre si, e que não podem fazer outra coisa senão refletir um mundo também desconexo, por isso ininteligível, por isso intransformável.  O contrário é também verdadeiro porque não lê, o homem não aprende a pensar causalmente, historicamente e politicamente. Cabe aqui indagar se o FACEBOOK, que leva o termo book (livro) em seu enunciado e cuja essência consiste em trocar e divulgar imagens, fotos, “selfies”, não corresponde exatamente a essa nova episteme.
Mas se a crise do livro é solidária da crise da cultura, um otimista diria que a modificação da cultura segundo as exigências do processo de universalização levará à superação da crise do livro. Uma vez retificados os descaminhos da crise global, principal responsável pela resistência à leitura que hoje caracteriza todos os países, o livro poderia reassumir seu papel de guia, de companheiro, magister vitae, que sempre desempenhou no passado, sem que isso signifique o abandono das novas tecnologias, que continuariam cumprindo as tarefas que lhes são próprias, sem tornar o livro redundante.
Mas o livro não pode dar-se ao luxo de ser apenas um beneficiário passivo e automático da universalização da cultura. Ele pode contribuir para a consolidação desse processo.
Durante boa parte da história, o livro foi constitutivo para a formação das identidades coletivas. A Ilíada e a Odisseia foram os fundamentos da identidade grega. O mesmo papel foi desempenhado pela Divina Comedia para a identidade italiana, pelo Quijote para a identidade espanhola, ou pelo Lusíadas para a Identidade portuguesa, ou ainda o Fausto, seja na versão de Goethe ou de Thomas Mann para a identidade dos alemães.
Mas na fase da universalização, não se trata tanto de construir identidades, mas de desconstruí-las e reconstruí-las, substituindo o conceito de identidade única pelo de identidades múltiplas. No mundo contemporâneo, as identidades pessoais se estruturam cada vez mais pelo cruzamento de várias identidades particulares.
Podemos encontrar um prenúncio disso em nosso próprio passado. Joaquim Nabuco descreveu a figura do brasileiro dividido entre o Brasil e a França, divisão ridicularizada por Mario de Andrade, que a chamou, por analogia com a doença de Chagas, o mal de Nabuco. Mas esse mal não afligiu somente o brasileiro alienado do século XIX . Ele percorre toda a nossa história. Foi a nostalgia de Portugal que Capistrano de Abreu chamou de transoceanismo; a nostalgia da África, o terrível banzo, que levava ao definhamento da morte do escravo; e a nostalgia das “pedras-brancas” de Jerusalém que atormentava o cristão-novo, o marranismo, que faria dos judeus personalidade partidas, habitantes de dois mundos
Na era da modernidade internalizada, em que cada indivíduo é membro de, pelo menos, duas comunidades, sociedade de origem e sociedade mundial, a doença talvez esteja na identidade única, e a saúde na identidade plural.
Para a aquisição dessa personalidade multi-identitária, as novas tecnologias de informação podem, sem dúvida, desempenhar papel importante. Mas só o livro permitiria que a aquisição fosse profunda e duradoura. O livro sempre nos permitiu sair de nós mesmos para melhor nos reencontrarmos. Ele deveria permitir-nos, agora, sair de nossa cultura, para vê-la de fora. Esse sair-de-si-cultural (extase) foi prenunciado por Goethe , quando descobriu afinidades entre um romance chinês e as novelas de Fielding e Richardson.
Um jovem grego aprendia a ser grego ao ler Homero. Era um instrumento de socialização para a cultura grega, uma paidea, um manual didático para aprendizado da arete grega. Hoje, pelo contrário, devemos ler Homero para nos reculturalizarmos, para nos descentrarmos de nossa cultura de origem, do século em que nascemos. Com isso passamos a ser contemporâneos de Ulisses, e nos identificamos com várias culturas, a europeia e a asiática, que se digladiavam junto às muralhas de Tróia, e também com todas as figuras da alteridade que povoam a epopeia, os semideuses, os semi-homens, as sereias e os ciclopes, Polifemo e Circe.
No início da modernidade, surgiu um gênero novo, o do Bildungsroman, o romance que narrava as vicissitudes de um herói que buscava formar-se, atingir a Bildung dos iluministas do século XVIII, como Kant, Lessing e Herder e também do século XIX como Wilhelm e Alexander von Humboldt. Ao mesmo tempo, esse processo de autoformação do personagem central envolvia o leitor, que deveria pela identificação com o herói, chegar também à sua Bildung, à sua autoformação.
O protótipo do Bildungsromané o Wilhelm Meister (de Goethe), dividido em duas partes, os anos de peregrinação e os anos de aprendizado do personagem central. São os dois momentos da Bildung contemporânea. Por um lado, o homem pluri-identitário que peregrina pelo planeta, numa viagem real (como foi o caso do irmão mais novo dos irmãos Humboldt, Alexandre), que aprende, em suas viagens, a reconhecer-se como habitante da cosmópole; e por outro, a peregrinação virtual pela filologia e pelo estudo conceitual das línguas que apreende as diversas culturas (como foi o caso do irmão mais velho, Wilhelm von Humboldt, diplomata e idealizador do moderno conceito de universidade). Nesse sentido, qualquer grande romance, hoje em dia, transforma-se em Bildungsroman porque em todos podemos chegar ao Outro, a vários outros, e no limite o que George Herbert Mead chamava o “outro generalizado” (generalized other) que é o gênero humano.
Enquanto não chegarmos à utopia ou ao pesadelo da língua única, o livro só poderá prestar-se a esse objetivo através da tradução. Se Walter Benjamin tivesse razão, a principal tarefa do tradutor é a de liberar os ecos da língua pura, da língua de Deus, aprisionado no original. Mesmo sem esses motivos messiânicos, não há dúvida de que a tradução permite à nossa língua transcender-se em direção às outras, e obriga as outras a transcender-se em direção à nossa. Pela tradução, nossa cultura se abre para o mundo e nossa própria língua pode ser alterada. A tradução é assim, nas condições atuais em que a maldição de Babel não foi ainda anulada pela transformação do inglês em idioma único do mundo, o principal veículo de comunicação intercultural.
Original ou traduzido, todo grande livro pressupõe uma transcendência, porque sua leitura permite sempre escapar ao nosso contexto espácio-temporal imediato. Em nossos dias, a leitura pressupõe uma transcendência sui generis, a que se dirige a todo o gênero humano, em sua infinita variedade. O homem pluri-identitário aprende a ser judeu com Proust, católico com Greene, irlandês com Joyce, latino-americano com Garcia Marquez, mulher com Clarice Lispector, e em cada um desses autores, pode fazer o aprendizado da alteridade, identificando-se, sucessiva ou simultaneamente com cada personagem.
Estaríamos com isso propondo a esquizofrenia como ideal cognitivo do homem pós-moderno, um homem com tantas personalidades que acaba não tendo nenhuma, transformando-se, por excesso de atributos, num “homem sem qualidades” (Musil?). O risco é óbvio, mas talvez só a esse preço possamos constituir uma cultura universal. A escolha oposta é mais arriscada ainda. Na etapa da internacionalização, não há nada mais perigoso que a adesão obstinada a uma identidade única. Se xiitas e sunitas tivessem identidades múltiplas, além de suas lealdades meramente sectárias e nacionais, talvez tivéssemos evitado o genocídio na antiga Iugoslávia, a guerra civil na Síria ou os atentados terroristas recentes em Paris (2015) e Bruxelas (2016).
Fim da cultura? Fim do livro? Talvez, mas não necessariamente. Não se trata de fim, e sim de Aufhebung, no sentido hegeliano. A cultura pode sobreviver, transformando-se em cultura universal. E o livro, digital ou impresso, tem futuro, se renunciar a seu papel de instância formadora de identidades coletivas e homogêneas, convertendo-se em instrumento para a constituição de identidades plurais e contraditórias, segundo a lógica do processo de universalização.
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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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