No dia 30 de março passado, o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) publicou “esclarecimentos” voltados àqueles que assistiram à reportagem da TV Record do dia 25, que abordou a vida de Renato Silva Rocha, ex-integrante da banda Legião Urbana, que é hoje morador de rua no Rio de Janeiro.

Apesar dos inegáveis problemas pessoais do músico, a reportagem apontava o órgão como um dos responsáveis por sua difícil situação. Visando ampliar o debate, busco aqui “complementar” os dados oferecidos pelo Ecad com detalhes que julgo importantes para uma visão mais ampla da questão. Foco no que o Ecad, “quase sem querer”, deixa de dizer em cada parágrafo ao se defender.

No primeiro parágrafo, o Ecad compara os direitos que administra com os demais direitos de que é titular o referido músico, como se dissesse: “Não é só com a gente!”. Mas não diz que os direitos de sincronização sobre as obras do músico, que não estão a seu encargo, são controlados pela Edições Musicais Tapajós, editora administrada pela EMI Publishing, que ocupa o cargo de maior poder na UBC (União Brasileira de Compositores), maior sociedade autoral brasileira, que, por sua vez, é a controladora do Ecad, onde manteve entre 1998 e 2011 a média de 43,63% dos votos em sua Assembleia Geral, contra 22,04% da Abramus (Associação Brasileira de Música e Artes), segunda colocada.

Não diz que os direitos de reprodução fonomecânicos, que também não administram, se relacionam não apenas à venda de CDs e DVDs, mas também às vendas por download, como no iTunes, que negociou através do advogado da UBC o contrato (sigiloso) de sua loja brasileira com a Ubem (União Brasileira de Editores de Música), que reúne quase todas as editoras musicais do Brasil, inclusive EMI e Tapajós. Que mandam na UBC, que manda no ECAD.

Renato tem seis obras cadastradas, não sete como diz o segundo parágrafo. Suas obras são: “Daniel na Cova dos Leões”, em que tem 50%, “Angra dos Reis” e “Quase Sem Querer” (33%), “Mais do Mesmo”, “Plantas Embaixo do Aquário” e “Acrilic on Canvas” (25% em cada). Quando sugere haver mais de uma editora administrando-as com diferentes acordos, o Ecad confunde o leitor, pois vem de seu próprio cadastro a informação de que são todas administradas pela Tapajós, provavelmente sob um só contrato padrão.

No terceiro parágrafo o Ecad não diz várias coisas. Primeiro, que constam em seu banco de dados 71 fonogramas dos quais participou Renato. Curioso é que não esqueceram de dizer que ele só tinha sete composições.

Depois, não localiza que é no Brasil que os direitos conexos representam um terço do valor da obra musical e que essa proporção é decidida e mantida por eles. Em outros países, podem ser iguais ou maiores que a parte autoral. Também não diz que exatamente numa das rubricas que mais lhe geram renda os conexos têm de fato pouco mais de um quinto (O segundo parágrafo do artigo 25 do Regulamento de Distribuição diz que da parte referente às obras audiovisuais exibidas em TV aberta ou fechada, os conexos serão somente de 22,22%).

Em seguida, não diz que 41,7% disso ficam com o produtor fonográfico, 41,7% vão para o “intérprete principal” e somente 16,6% podem ser divididos entre os músicos executantes. Porque se o fonograma em que o Renato atuou não entrou na lista dos 650 mais executados em rádio ou 300 em TV, seu dinheiro foi para outrem.

Dos 108 mil brasileiros que se declararam músicos ao IBGE no último censo, raros são os que receberam direitos nessa categoria. Mas Renato integrava o Legião, não era um músico convidado, portanto era intérprete principal nesses fonogramas. Mesmo ruim da cabeça, é curioso que lhe falte o dinheiro da terapia.

Ainda, o Ecad não diz que, pela lei, só cuida de fonogramas, não de direitos conexos. É que conexos existem para todos os intérpretes, mas só os da música lhes dizem respeito. Então, simplesmente não lhes interessa bradar que fonogramas não são as únicas interpretações fixadas. Como cuidam só de fonogramas, elaboram sua própria interpretação do conceito, e assim decidem quando há conexos.

Também nascem daí conjecturas que facilitam que certas arrecadações se direcionem só para os autores, únicos que geram direitos para os editores. Esses que habitam a Ubem, mandam na UBC, que manda no Ecad. Por exemplo, quando Renato realizou com a Legião alguma “interpretação ao vivo em TV”, não tida como fonograma, só os autores – e seus editores, naturalmente – receberam o que dali se arrecadou.

No quarto parágrafo, o Ecad não diz que, quando um usuário inadimplente quita seus débitos, nem sempre se consegue distribuir o dinheiro entre os responsáveis pelo crédito. A distribuição do acordo com a Net/Sky em 2003 foi notório exemplo. Assim, direitos devidos ao Renato foram parar em outras mãos pela incapacidade do Ecad de bem administrar um banco de dados onde abundam Silvas e Coitinhos. Também ali não diz que o fato de os usuários estarem adimplentes não é suficiente para que o artista receba a retribuição pela execução pública de sua criação; há outros critérios a serem atendidos.

Por fim, no último parágrafo, não diz que se a associação à qual o artista é filiado estiver na condição de administrada, seus representantes não terão direito a voz ou voto na assembleia geral do órgão.

O Ecad parece menos atuar negociando com usuários e distribuindo com competência do que quando pressente iniciativas do poder público de compreender e interferir nos estranhos caminhos entre os direitos arrecadados e o bolso dos titulares. Ulula o caráter privado do direito do autor até que ecoe nas entranhas liberais dos mais longínquos ministérios, de Brasília a Washington.

No entanto, mesmo os países mais à direita e mais bem posicionados nos rankings de corrupção entendem – e aplicam – que o que é privado é o direito de cada titular, mantendo-se público o interesse de que cada um seja capaz de exercê-lo. Entendem que cabe ao Estado centralizar as associações por titular e em cada segmento de criação, cuidando para que nasçam meios – como os guichês únicos – para que seu exercício de dê com efetividade, o que pressupõe preços mediados e distribuição fiscalizada que a torne abrangente, caminho único para torná-los respeitáveis. E para que gente como Renato possa ter dignidade.

Este exemplo neste momento é emblemático, e torcemos que a partir dele a ministra da Cultura Ana de Hollanda consiga compreender o que anda defendendo, e a presidenta Dilma Rousseff perceba que, na cultura, não é ela que tem dado as cartas.

 

Alexandre Negreiros é sociólogo, mestre em musicologia, diretor do SindMusi (Sindicato dos Músicos do Estado do Rio de Janeiro) e assessor do senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP, presidente da CPI do Ecad.

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