Ao longo da última década, muito se falou sobre supostas crises da indústria fonográfica e dos modelos de negócios vigentes, sobre o crescimento da internet e a apropriação de novas tecnologias, direitos autorais e pirataria. Não se sabe ao certo ainda o impacto de cada uma dessas variáveis nos novos caminhos da produção cultural brasileira e o peso que elas podem ter para a desconcentração do mercado e a promoção da diversidade cultural. O fato é que este período foi favorável à emergência de experimentos alternativos para a produção e difusão cultural, caracterizadas por escassez e concentração ao longo do século XX. E foi nesse contexto que surgiu o Circuito Fora do Eixo (FdE), articulação nacional de diversas cenas locais que buscam criar mercados para a cultura produzida nos mais diversos cantos do país.

Este artigo busca abordar a experiência do Fora do Eixo como uma das iniciativas que têm criado novos modelos de circulação da cultura nos últimos anos, em um momento em que antigos e novos modelos coexistem. O circuito, originado a partir de experiências de cidades distantes do mapa da indústria cultural tradicional, ganhou força e capilaridade, foi parar em São Paulo e no Rio de Janeiro e começa a atravessar as fronteiras do Brasil.

De Cuiabá às cinco regiões do Brasil

Lenissa Lenza

No início da década de 2000, um grupo de jovens estudantes cuiabanos se reuniu para articular agentes da cultura na cidade, trocar serviços e promover eventos e produtos artísticos e de comunicação. Era o começo do Espaço Cubo, iniciativa que desde então cresceu e se consolidou como uma importante formuladora, articuladora e promotora de políticas voltadas ao campo da cultura.
Foi do encontro do Espaço Cubo com produtores de outros três coletivos, das cidades Rio Branco (AC), Uberlândia (MG) e Londrina (PR), que nasceu o Circuito Fora do Eixo, no final de 2005. Seu objetivo era estimular a circulação de bandas, o intercâmbio de tecnologia de produção e a difusão dos produtos nessa “rota”. A tecnologia é também a metodologia e as formas de produzir e difundir cultura. Foi justamente discutindo essas tecnologias que esses coletivos – e muitos outros que se formaram e se juntaram a eles – fizeram do Fora do Eixo uma das iniciativas relevantes no campo da produção musical brasileira.

De 2005 para cá, a rede cresceu e hoje envolve cerca de 80 pontos fora do eixo (produtores) em 25 estados no Brasil, realizando mais de 40 festivais por ano e mais de 50 eventos todo mês em todo o país. A rede mantém uma plataforma que está em sua segunda versão (lançada em março de 2010) e reúne 2.632 usuários, 71 empreendimentos e 167 comunidades1. Os pontos têm uma média de cinco integrantes trabalhando em regime de dedicação exclusiva e conta com 42 pontos parceiros, de acordo com Lenissa Lenza, coordenadora do Banco Fora do Eixo e uma das fundadoras não só do Circuito como do coletivo Cubo Mágico, que deu origem a ele.
O Circuito está organizado em diversas esferas: pontos e parceiros locais, seis pontos de referência regional, agentes do escritório nacional e dos eixos temáticos, além de pontos de linguagem – produtoras, selos e outras empresas que fazem parte da rede. Os temas que orientam cada eixo:

– circulação: trata da circulação e distribuição de bandas, artistas, agentes e produtos culturais;
– sustentabilidade: cuida da pesquisa, implementação, gestão e geração de informação sobre os mecanismos de sustentabilidade da rede;
– tecnoarte: reúne os técnicos de som, de sonorização, palco e estúdio, criação e difusão de ferramentas e softwares;
– comunicação: reúne agentes de comunicação multimídia, que se conectam em iniciativas colaborativas, redes sociais, promoção, formação de opinião entre atores da cultura independente e distribuição (selos e outros pólos de produção e distribuição).

Em 2010, o Circuito Fora do Eixo se espalhou, por meio do Grito Rock América do Sul, alcançando países vizinhos como Bolívia, Argentina e Uruguai, e em 2011 os planos foram de expansão das ações e articulações.
Trata-se de uma rede complexa, com diversas organizações que desempenham diferentes papéis. Dentre as principais iniciativas relacionadas ao Circuito estão as Casas Associadas, a Toque no Brasil, os festivais locais, o Grito Rock, a Casa Fora do Eixo e a Abrafin (Associação Brasileira dos Festivais Independentes).
Em 2000, em Vitória, num dos encontros do movimento estudantil de comunicação, Pablo Capilé e Lenissa Lenza, ambos fundadores do Espaço Cubo e do Circuito Fora do Eixo, já anunciavam a que vinham. Na ocasião comentavam que não viam, ali, um ambiente fértil para a promoção das transformações que achavam fundamentais, e que estavam optando por focar a energia na organização de outro movimento. Pouco depois, o Espaço Cubo era a materialização das intenções expressas no encontro de Vitória, constituindo um instrumento para movimentar a cena cultural cuiabana.
O passo seguinte foi identificar a área em que iriam atuar: “quando entramos na música, tínhamos dois objetivos principais: construir um mercado e, concomitantemente a essa construção, debater a política pública com as pessoas que estavam envolvidas com esse mercado”2. Desde então, dedicam-se dia e noite à organização de coletivos e redes que têm por objetivo agitar as cenas culturais, defendendo princípios e métodos que servem de base para todo o circuito. Valéria Cordeiro, produtora da Feira de Música de Fortaleza, afirmou em entrevista à coletânea Produção Cultural no Brasil que “você falava com o Brasil inteiro rapidamente através do Fora do Eixo. Ali ninguém dorme no ponto. É impressionante como, a qualquer hora, tem alguém do Fora do Eixo online”3.
Dentre os princípios que regem a organização do Circuito Fora do Eixo estão o da colaboração, o da sustentabilidade, da economia solidária, da diversidade. Sua carta de princípios é clara: “O Circuito Fora do Eixo é uma rede colaborativa e descentralizada de trabalho constituída por coletivos de cultura espalhados pelo Brasil, pautados nos princípios da economia solidária, do associativismo e do cooperativismo, da divulgação, da formação e intercâmbio entre redes sociais, do respeito à diversidade, à pluralidade e às identidades culturais, do empoderamento dos
sujeitos e alcance da autonomia quanto às formas de gestão e participação em processos sócio-culturais, do estímulo à autoralidade, criatividade, inovação e renovação, da democratização quanto ao desenvolvimento, uso e compartilhamento de tecnologias livres aplicadas às expressões culturais e da sustentabilidade pautada no uso de tecnologias sociais”.

Circulação das bandas

Na prática, a enorme capacidade de organização e mobilização desses coletivos traduz-se na realização de mais de cinco mil eventos anuais, dezenas de festivais, com bandas se revelando a cada ano, cativando públicos cada vez maiores, figurando mais frequentemente nas mídias e com mais oportunidades de apresentações que muitos músicos e bandas de mercados mais tradicionais.
Macaco Bong, Mini Box Lunar, Caldo de Piaba, Burro Morto (que fazem parte da Agência Fora do Eixo) e Mombojó, Cabruera, Graveola e o Lixo Polifônico e Cidadão Instigado são apenas algumas das bandas que já circularam “fora do eixo”. Atualmente, o Circuito tem um catálogo de centenas de bandas e artistas que participam dos eventos e do movimento, uns mais organicamente, outros menos. As negociações em torno das apresentações variam de acordo com evento e banda, explica Lenissa Lenza, responsável pelo banco do Fora do Eixo Card4: “a ideia é justamente colocá-los no nosso programa de eventos (noite Fora do Eixo, Grito Rock etc.), gerando turnês e, assim, baratear custos, ampliando as receitas e a circulação”.
E é exatamente aí – no ponto de negociação e ampliação das receitas – que o bicho pega quando se fala no Circuito Fora do Eixo. Na lógica do mercado formal e tradicional, o que eles fazem pode não soar como negócios. Criar moeda complementar, trocar serviços, viver em comunidade, tudo isso pode parecer alternativo para alguns profissionais do ramo. Já outros, alguns da cena independente mesmo, como veremos abaixo, apesar de acharem a proposta interessante, criticam o Circuito por fortalecer produtores e oferecer apenas visibilidade a músicos, Fora do Eixo Cards, e um negócio que, na opinião deles, fortalece o nome do circuito, mas deixa o músico à deriva. Outra prática do Fora do Eixo alvo de críticas é a frequente captação de recursos públicos para a realização de festivais e outras ações de produção cultural.
A grande polêmica acerca do Fora do Eixo veio à tona em provocação do músico João Parahyba, percussionista brasileiro, na “Carta aberta aos músicos e artistas” no site Scream & Yell 2.0. O texto recebeu quase 500 comentários e dizia:“Apesar de respeitar todos que estão participando deste debate, as entidades, os jovens produtores da nova geração, que hoje tem uma organização e discurso forte em prol de uma política cultural mais justa neste país, não vejo os interesses do artista e do músico com equilíbrio nesta balança entre os produtores de festivais, empresários da música, entre outros. Nosso problema é imediato: vivemos do nosso trabalho! Ao ler o relatório da Rede Música Brasil (…) percebi que os projetos de maior valor contemplam os produtores de shows e festivais, empresários artísticos, pontos de rede e pontos de cultura, mas não diretamente a sobrevivência do artista.5
Outro que reverbera a crítica de Parahyba é China, músico e compositor de Pernambuco. Ele aponta dois problemas principais em relação ao Fora do Eixo: a suposta exclusão a que músicos críticos da prática seriam submetidos e a ausência de cachês para a maior parte dos artistas nos festivais do circuito. Ele menciona duas bandas, a Ecos Falsos e a Cidadão Instigado6, do Ceará, que teriam falado mal do circuito e sido cortadas das programações seguintes.
Rogerio Skylab, músico e compositor carioca, respondeu João Parahyba por meio de outro site, com o texto “João Parahyba e o Fora do Eixo”. Para ele, o debate do Scream & Yell expunha “toda a idiossincrasia da música independente”. “Nessa cadeia da música independente (…) tem alguém que é mais importante? Parahyba, no seu texto, diz que é o artista; houve quem priorizasse o público; mas teve também quem fizesse da cadeia produtiva, do todo, a grande prioridade7“.
Makely Ka, músico, compositor e membro da Cooperativa de Música (Comum) de Belo Horizonte e da executiva do Fórum Nacional de Música, compreende os dois lados. Ele defende a legitimidade do modelo FdE e acredita que o Circuito tem contribuído para a circulação da música independente brasileira. No entanto, compreende a perspectiva dos autores. Sendo o Fórum Nacional de Música composto majoritariamente por profissionais com estrada musical, mais velhos e que dependem dos recursos de seus trabalhos com música para sobreviver, esses artistas enfrentam há anos uma constante luta com proprietários, gerentes e produtores de shows e de casas de espetáculo para serem remunerados nas apresentações.

Segundo Makely, é muito comum a cooperativa receber propostas de empresas grandes e de instituições realizadoras de eventos com grandes patrocinadores para tocarem de graça, enquanto a casa lucra com a entrada de centenas de pessoas ou enquanto as rubricas do patrocinador servem para pagar os outros agentes da cadeia e eventualmente meia dúzia de músicos da cena mainstream. “E nós não concordamos com isso”, conta Makely.
É nesse contexto que muitos músicos do Fórum Nacional de Música estranham e criticam a proposta do Fora do Eixo. Apesar das diferenças que podemos apontar aqui entre a dinâmica do Circuito e a do mercado tradicional, para quem está há anos tentando se proteger de práticas como essa, consideradas nefastas, aparecer um grupo da música independente sugerindo que artistas
toquem pela visibilidade é visto como uma afronta, pois isso representaria legitimidade à prática do mercado que eles condenam há anos.

Pablo Capilé

Pablo Capilé explica a lógica por trás da dinâmica do circuito. Questionado se eles vêm mudando a política relativa aos cachês, foi categórico: “Não estamos mudando nada. Apenas estamos tendo mais recursos e podendo pagar mais aos músicos. Nunca foi uma questão de princípio não pagar”. Lenissa completa “Sempre remuneramos artistas. Mas defendemos que o artista, assim como o produtor ou qualquer agente empreendedor, deve saber investir pro seu negócio dar certo sem achar que todo retorno é imediato”. Um ponto de divergência nevrálgico nesse debate, então, seria o papel dos festivais. Enquanto o Fora do Eixo os entende como – a exemplo das feiras de música – um circuito criado para dar visibilidade, formar público e ser visto por jornalistas, produtores e gerentes ou donos de casas de shows, que resultarão em boas e remuneradas oportunidades, muitos artistas entendem que estes grandes eventos são para apresentação para o grande público, sem grandes perspectivas de negócios, e que devem remunerar o artista, que seria a razão deles existirem.
A polêmica não é nova. Nos idos de 2003, antes de criarem o Cubo Card, ainda em Cuiabá, o pessoal que deu origem ao Fora do Eixo já tinha sofrido críticas semelhantes: “(as pessoas) não conseguiam enxergar que aquilo ali era realmente um mercado, porque não eram remuneradas. Começou um buxixo na cidade que o Cubo Mágico estava crescendo muito e explorando os artistas que se apresentavam junto a eles, porque a gente já tinha estúdio de ensaio, estúdio de gravação, e os artistas não estavam recebendo pelos shows que faziam. Naquela época, ainda estávamos trabalhando com a troca solidária”8. Da busca por uma alternativa para remunerar as bandas, nasceu o Cubo Card, moeda complementar que trouxe de volta à cena diversos artistas e que, mais tarde, inspirou a do Fora do Eixo. Hoje, de volta à polêmica, Capilé acredita que é uma parcela muito pequena dos artistas que “falam mal” do Circuito – o que ele diferencia das críticas que considera construtivas. “Quando você se abre pra debater muito intensamente o seu ‘DNA’, vai ter gente que concorda, e gente que discorda. O Circuito Fora do Eixo e a Abrafin radicalizaram nesse sentido. Quando põem pra download a planilha do Festival Calango, pra todo mundo ver, fica fácil falar que tal linha podia não ser gasta em tal coisa, mas em cachê; mas aquilo só acontece porque a gente democratiza de forma radical as informações. E se a gente fosse se levar por uma reação a essas críticas, uma boa parcela da música brasileira não estaria se apresentando – porque é da verve do artista criticar. Nós não orientamos ninguém a excluir o cara do processo porque ele critica. Mas não dá pra impor ao produtor local do festival que ele chame (pra tocar) aquele que o chamou de mafioso numa entrevista, por exemplo. Mesmo assim, o próprio Cidadão Instigado, que fez isso, tocou em outros festivais”9.
A prática pouco usual de abertura das informações não tem apenas o intuito da transparência. Faz parte do que eles chamam de “transferência de tecnologia social”, “nivelamento do debate” e “compartilhamento de ideias e conhecimentos”. Estão públicos na web documentos e planilhas com anotações detalhadas dos custos do FdE.

Da coxinha e o cigarro aos gastos com sonorização de palcos, cada linha de custo está detalhada em balanços publicados no Diário Oficial do FdE (com direito a uma logo que remete ao da República do Brasil). O banco de projetos, por exemplo, tem mais de 200 projetos disponíveis e contribui para que cada coletivo, parceiro e ponto Fora do Eixo tenha em mente como desenvolver uma proposta. Assim, a rede vai conseguindo cada vez mais apoiadores nos mais diversos estados e com uma grande variedade de interlocutores e financiadores.

O Circuito e Casas Associadas

A criação e entrada da associação Casas Associadas no Circuito, nesse sentido, desempenha um papel central. Impulsionada pelo próprio Fora do Eixo para organizar os agentes de casas de shows independentes no Brasil, são elas que garantiriam condições de circulação para esses artistas o ano todo – ainda que sem exclusividade. Nenhuma casa se compromete com criar espaço apenas para o Fora do Eixo, mas seriam essenciais para dar vazão à visibilidade e formação de público conquistadas nos festivais, fazendo parte, portanto, do modelo concebido para a abertura de mercados para a música independente. Fundada formalmente em maio de 2010, a associação começou a ser articulada em 2007, mas só em 2009, na Feira de Música de Fortaleza, anunciou sua existência e Léo Feijó, dono do Grupo Matriz, no Rio de Janeiro, foi eleito presidente. O atual presidente, Alê Youssef, é dono do Studio SP, casa localizada na rua Augusta, região central de São Paulo.
A relação com o circuito se deu por meio da Associação Brasileira dos Festivais Independentes (Abrafin). Segundo Feijó, atual vice-presidente das Casas Associadas, a associação havia percebido a importância das casas noturnas na promoção de shows. Os festivais eram fundamentais, mas isolados e sazonais. As casas é que permitiam a realização de shows ao longo do ano. Segundo Lenissa, “nem todos os associados das Casas fazem parte organicamente do Circuito. É uma relação híbrida, assim como a Abrafin”. Dentre as vantagens de participar da rede, encontram-se a organização de demandas comuns aos empreendedores com vínculo cultural, o compartilhamento de custos de turnês entre as casas – ou entre os produtores e artistas – e a articulação para incidência sobre as políticas públicas voltadas ao lazer e à cultura.

No site antigo, constavam 22 casas associadas10. Atualmente, são 15 as casas que figuram no novo site11, mas o vice-presidente afirma que pretendem ampliar esse número em 2011. Na opinião de Leo Feijó, a principal dificuldade no cenário carioca vem em razão de um ambiente altamente competitivo: “a visão da concorrência no Rio Janeiro prevalece sobre a visão do associativismo”, explicando por que até hoje apenas as casas do Grupo Matriz e o Teatro Rival estão associados. “Acho que seria importante e interessante envolver iniciativas de outras regiões do estado, como Teresópolis, Petrópolis, Macaé. No Rio Grande do Sul, por exemplo, tem uma de Santa Maria. Acho que é justamente essa galera que fica mais isolada que encontra mais benefícios. No Rio, há mais oportunidade, mas também há muito mais bandas, demanda e concorrência”.

Feijó toca em um ponto fundamental e que não é exclusivo do Rio de Janeiro: a existência de um número maior de bandas do que de casas para shows. Se o cachê em shows e a venda de produtos – CDs, DVDs, camisetas – nessas apresentações ao vivo são as principais formas de remuneração para os artistas nos modelos de negócio como os do Fora do Eixo e o número de casas é aquém da demanda, observamos que continua havendo um gargalo que dificulta a inserção de um número maior de bandas no mercado. Nesse cenário, saem fortalecidas aquelas bandas que fazem parte de grupos com maior capacidade de articulação, como é o caso do FdE.

Fora do Eixo no eixo Rio-SP

Não é de hoje que o Fora do Eixo está com representação em São Paulo e no Rio. Mas eis que em 2011, dezoito integrantes do Circuito fazem suas malas e mudam-se pra São Paulo, no bairro do Cambuci, e para o Rio de Janeiro, ocupando uma casa em Santa Teresa. Afinal, o que é “fora do eixo”?
Este debate acompanha o desenvolvimento da rede desde sua formação, mas está claro que, apesar de terem começado em cidades onde havia poucos investimentos na circulação e promoção de cultura, o “eixo” se refere cada vez mais ao modo de fazer, promover e difundir cultura do que a uma referência puramente regional.
É de certa forma ambíguo e pode soar contraditório que o circuito tenha buscado estabelecer parcerias e alianças em São Paulo e no Rio, mas essas cidades, por suas densidades demográficas, por serem pólos de referência que recebem pessoas do país todo, por concentrarem renda e casas de shows e pelo público diverso, ainda se constituem importantes centros de movimentação e circulação da cultura.
Ainda que não sejam o berço de muitas alternativas que vêm sendo criadas, identificamos, em nossos estudos de casos, que o “eixo ponte-aérea” é visto por muitos artistas como vitrine fundamental para a expansão de mercados e consolidação de suas carreiras. Muitas vezes, as iniciativas mais ousadas tendem a nascer em espaços esquecidos – ou pelo mercado formal ou pelo Estado. Mas o processo do Fora do Eixo também ilustra a necessidade que os mercados emergentes ainda têm de passar pelo sudeste para se consolidarem e fortalecerem.
A ida pra São Paulo, segundo Capilé, inicialmente teve mais a ver com a necessidade de criarem um ‘hub’ que facilitasse a circulação de pessoas de todo o Brasil e a ida de coletivos para passarem uma ou duas semanas em oficinas com integrantes mais experientes do Fora do Eixo, para se formarem naquilo que deram o nome de Universidade Fora do Eixo (UniFdE). Mas diz que as consequências são as mais diversas, como movimentar de maneira mais orgânica esses mercados, dialogar mais com atores centrais, abrindo caminhos para parcerias com a MTV, por exemplo. Eles já anunciaram a criação de um programa com a emissora, ainda em fase de formulação.
Segundo Capilé, isso foi possível graças à consolidação dos coletivos nos estados e à formação dos produtores e gestores locais, que estão dando continuidade aos projetos no cotidiano depois da ida de alguns dos principais integrantes do Circuito para a Casa Fora do Eixo em São Paulo. A Casa virou também um centro de referência e formação12, com a UniFdE, que realiza cursos de uma ou duas semanas para compartilhar o saber em torno da produção, administração, comunicação e sustentabilidade dos coletivos. O blog Fora do Eixo TEC13 possui um rico banco de dados de projetos, mapeamentos, formulários, contatos etc., que podem ser apropriados e utilizados por todo e qualquer coletivo, contribuindo para a qualificação dos integrantes do Circuito por meio do compartilhamento permanente de informações e instrumentos de gestão.

As dimensões econômicas

A sustentabilidade do Circuito Fora do Eixo é uma das questões chave para o grupo e para o debate sobre as alternativas propostas para o mercado da música. Grosso modo, podemos distinguir os dois principais pilares de sustentabilidade importantes para o FdE: o institucional e o econômico. No que tange à sustentabilidade econômica, o Fora do Eixo trabalha fundamentalmente com duas perspectivas: o banco de moedas complementares ou valoração de trabalho e serviços e o Real brasileiro. Tal ênfase pode levar muitos a não crerem que os modelos de negócios do circuito sejam, de fato, eficientes geradores de renda. O reconhecimento de que os resultados desse trabalho vão além de benefícios financeiros não torna os valores movimentados pela rede menos importantes.
A introdução da lógica da Economia Solidária, a partir da perspectiva de trocas de serviços, é um ponto central na organização do Circuito.
Um mapeamento realizado em 2010, ainda parcial e não concluído, identificou a geração de R$ 1.548.370,00 (em dinheiro) e FDE$ 1.736.913,00 (em moedas complementares dos coletivos), somando o total de R$ 3.285.283,00 em ações institucionais.
A moeda social do Circuito é uma forma de contabilizar a força de trabalho dos membros, ou seja, é o que mede a troca de serviços entre os membros dos coletivos ou de seus parceiros. De acordo com a definição da Wikipedia14, utilizada na Cartilha “Monte sua moeda solidária”, disponibilizada no site do Coletivo.
“A moeda social surge na economia solidária como alternativa ao escambo, e possui características próprias. (…) Seu uso é restrito, e a sua circulação beneficia a redistribuição dos recursos na esfera da própria comunidade. O aumento da quantidade de moeda social corresponde ao aumento das transações realizadas pelos participantes da economia local.”

A cartilha ainda explica que

A moeda social não é um sistema alternativo e sim complementar à economia. Ela é produzida, distribuída e controlada por seus usuários. Por isso, o valor dela não está nela própria, mas no trabalho que pode fazer para produzir bens, serviços, saberes. Esta moeda não tem valor até que se comece a trocar o produto pelo produto, o serviço pelo serviço, o produto pelo serviço ou o serviço pelo produto15.
Cinco dos cerca de 50 coletivos integrados possuem moedas complementares em papel, mas mesmo nestes coletivos onde não existe a moeda física a lógica de contabilizar força de trabalho e organizar trocas é o que prevalece. Cada coletivo tem um organograma com as funções dos integrantes e as redes de parcerias, um cardápio de serviços, para visualizar o que se tem a oferecer e facilitar as trocas, e uma tabela de horas trabalhadas. Os reais e as moedas complementares que circulam passam por um caixa coletivo e existe também um fundo nacional, em que os coletivos que já estão estruturados investem para subsidiar ações institucionais da rede ou apoiar – em forma de empréstimo – os coletivos que estão começando16“. Isso explica também o funcionamento da Casa Fora do Eixo (CAFESP), em São Paulo. Com um orçamento avaliado em R$ 50 mil mensais, a casa é bancada pela rede. Cada hora trabalhada para o Circuito Fora do Eixo equivale a FDE$ 20,00. A divisão das tarefas, a dedicação das horas planejadas, o trabalho realizado, tudo é registrado e contabilizado.
Um dos critérios frequentemente utilizados para a avaliação em relação ao potencial de sustentabilidade de uma instituição diz respeito à diversidade de recursos. Consultores da área recomendam que qualquer organização não governamental busque relativa equivalência entre os montantes de receitas advindas de financiamento público, da iniciativa privada, e de outras formas, como prestação de serviços ou campanhas diretas com usuários, arrecadação ampla de pequenas contribuições. Isso garantiria mais estabilidade, evitando grande vulnerabilidade diante de cenários instáveis em governos, ou crises que atinjam as empresas ou ainda uma eventual inflação que faça a sociedade fechar os bolsos pra saída de dinheiro.
No campo da cultura isso é visto como ainda mais importante, quando se pretende perseguir significativa independência em relação ao que os governos ou o mercado procura circunstancialmente no setor cultural.
Nesse sentido, leis de incentivo, fomento direto, contratos com o setor público – todos no campo de captação do circuito – têm o poder de impulsionar a formação de novos mercados culturais, mas o grande desafio é não fazer deles os alicerces permanentes da sustentabilidade.
No último Congresso do Fora do Eixo, realizado em Uberlândia em outubro de 2010, foi muito presente a questão da profissionalização das bandas e o investimento em suas carreiras, para além do circuito. Fábio Pedroza, da banda Móveis Coloniais de Acaju, apresentou uma proposta de parceria entre o FdE e o projeto que a banda acaba de lançar, o CBAC – Comissão de Bandas e Artistas Circulantes, ressaltando que “até agora, primeiro as bandas trabalham como coletivo, nas trocas entre festivais, e menos como banda, fazendo trabalhos fora do circuito17“. Hoje os músicos da Móveis Coloniais de Acaju vivem da banda e são uma empresa formal18.
Que a sustentabilidade do Circuito não está apenas apoiada em questões como patrocínios, cachês e cards está claro. Mas além de formação, força de trabalho e capacidade de gestão, um dos aspectos fundamentais para sustentabilidade do Circuito – e bem menos lembrados em entrevistas, textos, artigos e reportagens sobre ele – é a sua legitimidade. Essa legitimidade passa pela conquista de formadores de opinião, pesquisadores, gestores públicos, atraídos pelo esforço dos integrantes do circuito, articulados em rede e ocupando espaços estratégicos, nos quais apresentam um modelo que tem chave na inovação – como a carta de princípios do FdE ressalta. Na fase atual do capitalismo, a criatividade e a inovação não são valorizados somente na criação artística, mas no modo de produção – processo – como um todo.
Fundado com a proposta de criar novos mercados e inovar na maneira de fazer, produzir e “exportar” tecnologia social, o Fora do Eixo vem ampliando cada vez mais o seu leque de ações, estabelecendo relações complexas, controlando novos ambientes e fluxos e, consequentemente, abrindo novos desafios e conflitos, derivados de ocupação de espaços antes vazios ou ocupados por outrem, bem como do inevitável surgimento de novos filtros e gargalos. O próprio Capilé, em entrevista ao Produção Cultural, já acena isso: “Com certeza essa estrutura que está sendo construída na música vai substituir a indústria da forma como ela era antes e vai criar um ambiente mais democrático, mas, em algum momento, vai ter que ter outro levante, porque você terá cinquenta mil artistas querendo se apresentar e poucas estruturas para receber. Existe um teto para essa democratização também. Quando a gente tiver trezentas, quatrocentas cidades estruturadas, teremos um circuito com um número X de artistas, e aí será preciso um novo levante pra abrir mais flancos. Nesse sentido, vamos sofrer a mesma pressão que as estruturas de hoje estão sofrendo”.
NOTAS:

1 Disponível em: http://toquenobrasil.com.br/sobre/. Consultado em fevereiro de 2011.
2 Produção Cultural no Brasil – volume 2. Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2010, p.100.
3 Op. Cit., p.121.
4 O FdE utiliza moedas complementares ao Real, que serão abordadas mais à frente.
5 Disponível em http://screamyell.com.br/site/2010/04/13/carta-aos-musicos-e-artistas/
6 A crítica de Catatau, integrante do Cidadão Instigado, foi publicada na revista Rolling Stone n° 36, de setembro de 2009. Nela, Catatau dizia que a Abrafin e seus festivais eram uma ‘máfia’: “Acho esses festivais e a entidade que os organiza [Abrafin] uma máfia. São sempre as mesmas bandas e toda vez que nos chamam é pra fazer show quase de graça.” Disponível em http://www.rollingstone.com.br/edicoes/36/textos/3883. Apesar disso, em junho de 2010, a banda foi convidada e aceitou tocar no Festival Casarão, em Porto Velho, Rondônia, do Circuito Fora do Eixo. Em entrevista a Oona Castro, Capilé declarou que os festivais locais são autônomos em relação à curadoria das bandas e que não existe uma diretriz geral que determine a seleção ou a exclusão de uma determinada banda.
7 Disponível em: http://blog.guerrilhagig.com/2010/05/rogerio-skylab-e-fora-do-eixo/
8 Produção Cultural no Brasil – volume 2. Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2010, p.100.
9 Em entrevista a Oona Castro.
10 Disponível em http://casas-associadas.blogspot.com/
11 Disponível em http://casasassociadas.com.br/
12 Um exemplo de iniciativas de formação pode ser conferido no relato de Lenissa Lenza, no ‘Diário Oficial do Fora do Eixo’, disponível em http://diariooficialfde.org/?p=255.
13 Disponível em http://foradoeixotec.blogspot.com/
14 Disponível em:  http://pt.wikipedia.org/wiki/Moeda_social
15 Disponível em: http://www.geranegocio.com.br/html/geral/microcredito/trocaed.html
16 Bandeira, Olívia. III Congresso Fora do Eixo debate sustentabilidade. Site Overmundo, 2010. http://www.overmundo.com.br/overblog/iii-congresso-fora-do-eixo-debate-sustentabilidade
17 Idem.
18 Mais informações no texto Móveis Planejados de Acaju, de Pedro Biondi, publicado no site Overmundo – http://www.overmundo.com.br/overblog/moveis-planejados-de-acaju

Pesquisas feitas com colaboração de Rafael Lage.


Oona Castro é diretora executiva do Instituto Sociocultural Overmundo e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Foi gestora do projeto Open Business Models – América Latina no Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV do Rio de Janeiro e co-autora do livro “Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música”.


Olívia Bandeira de Melo é coordenadora de Economia da Cultura do Instituto Overmundo, onde pesquisa a cadeia produtiva da música no Estado do Rio de Janeiro (Projeto Estrombo). É pesquisadora do Labcult e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF.Foi coordenadora de projetos da ONG Bem TV.

* Texto originalmente escrito para a Revista do Auditório Ibirapuera, publicado aqui, e, portanto, antes da polêmica que envolveu China e FdE.

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome