começou com uma série de movimentos involuntários pelo corpo: câimbras, ínguas, dormências, reflexos condicionados que disparavam sem nem mesmo sentirem o cheiro do martelinho do clínico geral.
as dormências não davam aviso prévio.
uma perna ia, a outra ficava, e ele se estatelava no ponto de ônibus enquanto esperava o coletivo.

como preferisse o óbito ao médico, acostumou-se a disfarçar o indisfarçável: estava se divorciando da sua vontade física.
e como fosse escritor, notou que também as palavras estavam se tornando independentes.

os textos se escreviam sozinhos, por meio de contrações que sentia nos braços e nos dedos.
neologismos dançavam em páginas virgens.
uma noite, tentava escrever sobre hemingway um artigo que lhe encomendara a new yorker, mas o que saiu foi isso:
“num abrir e fechar de olhos, papá deixou aparecer a sua luger, fez voar a cabeça de uma galinha e disse: ‘deus meu, que talento!’”.
a revista amou.

no jogo de domingo, a câimbra foi no braço e ele tava segurando o radinho de pilha colado no ouvido.
o jogo acabou e ele com o radinho no ouvido, descendo a arquibancada – uma menina pediu as horas e ele não conseguia abaixar o braço, que era onde estava o relógio. a menina chutou-lhe o joelho, ainda dói.

na hora do check-in, nunca pegava a poltrona do meio. ficava sempre com a do corredor – se as duas pernas dormissem, problema era de quem estava na janelinha.

resolveu então, após entrar com o dodge no meio do jardim do vizinho, mudar-se para um lugar ermo, uma colina.
casa sem luz elétrica e sem água corrente.
levou consigo a máquina de escrever, uma rede, dois cadernos, seis mudas de roupa (quatro levi’s 501 pretas e duas camisetas brancas), o radinho, um cortador de unhas e um isqueiro – nos últimos dois anos, passara a simular que fumava, para demonstrar que ao menos mantinha controle sobre os próprios vícios.

a cidadezinha tinha dois armazéns, uma agência dos correios, uma igreja branca e quilômetros de bosques de pinheiros, carvalhos, campos cultivados e colinas a perder de vista. e ele só ia até lá para buscar mantimentos na cornish general store e emprestar livros na philip read memorial library.

nevava, e as pernas, agora completamente independentes, o levavam para comer cereais entre os alces selvagens, que não incomodavam os que não tinham premeditação.
passou a apreciar a autodeterminação do seu corpo.
para ele, agora, não havia lado bom na cama, não tinha receio de dormir em pé, não se acanhava de passar cantada naquela garota que realmente o tinha feito sonhar.
“bode velho que sou, de vez em quando ainda proponho casamento a quem passa pela minha janela!”, declarou, em uma de suas últimas cartas.

um livro inteiro agora tinha se escrito sozinho.
o livro continha tudo que jamais frequentara seus escritos anteriormente: “as caras desgraçadas dos entediados, a feição pálida dos cadáveres, os rostos lívidos dos bêbados, a face doente-cinza dos masturbadores, os corpos retalhados nos campos de batalha, o louco em seu quarto de portas maciças, os idiotas sagrados, os recém-nascidos emergindo dos portões e os mortos emergindo dos portões.”
estava feliz e desembaraçado. ainda sentia que a sua arte era sua porque ela o satisfazia plenamente.

“nesse momento em que a literatura tende novamente a se afastar da vida”, pensou, “talvez essa seja mais uma bênção do que uma maldição”.
nunca mais morreu.

(tributo-bobagem a j.d.salinger, com uma pequena ajuda de whitman)

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

6 COMENTÁRIOS

  1. oi jotabe muito bom oteu depoimento sobre esse autor parabens e dai vai vir ai no aniversario do velho joâo centenari? espero tive hoje com ele esta um touro to emrolado no cobertor e uma touca na careca e tirei a tou ca ele nâo reclamoe abraços

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