Notas esparsas sobre a segunda edição do festival “Terruá Pará” no Auditório Ibirapuera de São Paulo, iniciada nesta sexta-feira 24 de junho de 2011:
* Após uma abertura na clave mais tradicional do carimbó, com o grupo Uirapuru, do município de Marapanim, o palco se abriu para a música milimétrica, erudita, do violonista Sebastião Tapajós. O tom total do espetáculo foi dado por um arranjo sobrenatural para sua “Igapó”, com a banda-base coordenada pelo maestro e arranjador Luiz Pardal e a intervenção pós-indígena, explosão de vivacidade, da Orquestra Juvenil de Violoncelos da Amazônia.
* Os violoncelistas da Amazônia são de fato juvenis, na idade e no melhor sentido que o termo possa carregar. Adotam postura de rock’n’roll para atacar reverentemente os rombudos violoncelos. O regente da turma, Áureo de Freitas, não é jovem como seus alunos, mas age como se fosse. A alegria dos seis ao final, pulando os carimbós de Pinduca e portando a bandeira dupla Pará-Brasil trazida por Gaby Amarantos, era de verter lágrimas.
* Fafá de Belém não veio desta vez, mas esteve representada em cada uma das mulheres descalças de vestidos esvoaçantes que pisaram no palco, a começar pelo sexteto Charme do Choro: mulheres paraenses na pilotagem dos instrumentos típicos do estilo (violões, bandolim, cavaco, flauta, pandeiro), e a acolhida carinhosa e calorosa de Sebastião Tapajós.
* A banda-base era um acontecimento em si, independente dos pardais, canários e sabiás que eles secundassem, com o maravilhoso Trio Manari nas percussões, o amado MG Calibre no baixo, Edras Souza no sax, Félix Robatto na guitarra e o pós-tudo Pio Lobato na guitarra e no banjo.
* Pio Lobato jogou luz e experimento entre a tradição concentrada de Dona Onete, as guitarradas dos mestres amazônicos e a MPB paraense de Paulo André Barata. Sua “Psicocumbia” bordada solitariamente na guitarra parecia a própria floresta amazônica, com acordes aquáticos e multidões de fiéis ao carimbó, ao Círio de Nazaré, aos ritos indígenas, todos concentrados num homem só.
* Dona Onete, imóvel e pirilampa (mais pirilampa que imóvel), explicou em forma de canção-chamego um dos pilares da gastronomia do Pará, com “Jamburana”. Trata-se de uma loa ao jambu, célebre planta que formiga o céu da boca das receitas do tucupi ao tacacá: “O tremor do jambu é gostoso demais/ treme, treme, treme/ chega ao céu da boca e a boca fica muito louca”.
* O “treme” de Dona Onete explica aos amantes do tecnobrega o “treme” encenado em roupagem eletrônica pela Gang do Eletro e por Gaby. O jambu do Pará faz a boca tremer, o “treme” do jambu de Dona Onete faz a terra do tecnobrega tremer. Infelizmente, os dínamos do tecnomelody não trouxeram sua versão do grito indígena de “treme!!!”, para que se pudesse fazer o mais direto contraste entre a “tradição” da primeira parte do espetáculo e a “inovação” da segunda.
* Fafá de Belém não veio desta vez, mas esteve representada pela MPB aquática e suculenta de Paulo André Barata e das composições em parceria com seu falecido pai, Ruy Barata. “Pauapixuna” e “Foi Assim”, impregnadas até a medula de Fafá, se espalharam pelo ar (im)puro da floresta ibirapuérica, e deram de barato: a poesia das canções dos Barata é fabulosa, “quando o mundo era quase meu”; estaria nos panteões da MPB, não fosse o isolamento “amazônida” (como definiu Paulo André) das décadas que passaram.
* A participação de Paulo André se completou com “Nasci para Bailar”, parceria sua com o acreano (“amazônida como nós”, disse ele) João Donato, lançada em 1982 pela capixaba-carioca Nara Leão, e toda tomada por ventos cubanos-caribenhos: música popular brasileira não litorânea, não sambeira, não universitário-emepebista. Você já veio a Belém, nega?, não?, então venha…
* Após mais uma exibição sublime da Orquestra de Violoncelos, abriu-se a segunda parte do show. Ainda embebido de MPB, o palco recebeu a beleza simples de “Ai, Menina”, pela cantora, compositora e instrumentista Lia Sophia, mulher descalça de saia rodada de carimbó, alguma síntese entre o Pará de Fafá e as Minas Gerais de Clara Nunes.
* Lia trouxe ao palco o mestre de guitarrada Solano, que enlouqueceu ao ritmo e à melodia de “Americana”. Ex-banjista do grupo Jazz Tupi, ex-baterista do Jazz Abaeté, ex-músico da Banda do Corpo de Bombeiros de Belém, cofundador do conjunto de Pinduca, líder do Solano e Seu Conjunto, ele é, apessoado, o jazz nortista do Brasil. O Pará, de Tapajós e Pinduca às guitarradas e ao brega, é o jazz brasileiro, e isto o Brasil ainda precisa aprender.
* Pós-machismo, Lia & Solano protagonizaram um duelo de guitarras & guitarradas. Se o empresário de Roberto Carlos ali estivéssemos, perigávamos ganhar uma nova Paula Fernandes, tais os dons de guitarrista, compositora, cantora, segura e bela que Lia Sophia possui.
* A delicadeza é a pedra de toque da música paraense, seu melhor patrimônio e matrimônio, se o “Terruá Pará” for a mais completa tradição da real música popular paraense.
* Lia e uma segunda e jovem cantora-rabequista, Luê Soares, fizeram vez de vocalistas de fundo para Solano e, em seguida, para a dinastia guitarreira dos Cordeiro, Manoel Cordeiro, pai, e Felipe Cordeiro, filho. Manoel é pioneiro da lambada paraense, responsável pelo lançamento de Beto Barbosa (onde estaria Beto Barbosa nesta noite?). Felipe é músico da linha pós-tudo, da tribo indígena dos brasileiros que aceitam, ao mesmo tempo, sem traumas nem chiliques, lambada, carimbó, brega, MPB e tecnobrega.
* Em “Legal e Ilegal”, Felipe Cordeiro elaborou a maior crítica que alguém poderia fazer às políticas classistas-protecionistas-paulistocariocas defendidas por Ana de Hollanda – sem ter de mencionar em momento algum o nome da atual ministra da Cultura.
* O gaúcho Carlos Eduardo Miranda, roqueiro produtor do segundo “Terruá Pará” com Cyz Zamorano, é frente avançada da linha pós-tudo. Parecia ter um dedo dele a intervenção do gênio brega Edilson Moreno, um Agnaldo Timóteo paraense (inclusive pela voz) e debochado, que se apresentou também secundado pelos backing vocals de Lia e Luê. Cantoras de MPB fazem voz de fundo para clássicos do brega dos anos 80, e isto é a música popular brasileira do século XXI, a música realmente popular brasileira.
* Em “Fim de Festa”, Felipe chamou ao palco o DJ eletromelody Waldo Squash, e o arranjo resultante foi mais uma vez de arromba, som que simplesmente não se produz em qualquer outra parte do Brasil ou do mundo. Em seguida, entra a trupe punk-pop de Waldo, a Gang do Eletro, para meus nervos o momento mais emocionante e eletrizante do segundo “Terruá Pará”.
* Nem sei descrever, mas a atuação punk-índia de Waldo, Maderito, Keila Gentil e William Love acondicionou tudo que aconteceu antes no palco do Audibira e tudo que acontece de bacana na música brasileira e mundial em 2011. A Gang do Eletro é demais.
* Faltava, por fim, a entrada de Gaby Amarantos, a mesma artista que, vestida feito drag queen, causou choque e estranheza (preconceito?) ao público paulistano de cinco anos atrás, no primeiro “Terruá” no Audibira. Gaby não é artista inofensiva, e causa lá seus atritos no palco (pra lá de descalça, usa botas imensas, de plataforma, que deixam apenas – apenas? – seus dedos descalços). Mas Gaby e São Paulo cresceram e aprenderam nestes cinco anos. Ela está assimilada, a ponto de assumir o papel real e mercadológico de embaixadora musical do Pará e do “Terruá”.
* De cabelo louro moicano e miçangas caindo feito egípcias ou árabes sobre os olhos, a índia jurunense Gaby fez prece ao brega cantando “Vem Me Amar”, de Alípio Martins: o Pará e o Brasil somos bregas, sim, senhor & senhora, é o que a embaixadora vem nos esfregar nos narizes, especialmente os mais empinados, sob mais um arranjo descomunal.
* “A saia é imaginária, ela tá dentro do coração”, avisou Gaby, antes de puxar no bis o coro do carimbó “Sinhá Pureza”, de Pinduca. “Viemos de nossa terra fazer barulho em terra alheia”, terminou todo mundo junto, exalando profissão de fé que, tomara, se repita cada vez mais frequentemente daqui por diante.
Ei Pedro.
Eu estava lá, e curti. Adoro os ritmos populares do Pará. E adorei ver o público meio nariz empinado do Auditório Ibirapuera deixar a marra de lado e se jogar na “aparelhagem”. Abs.
Sinceramente, não gostei da Gang do Eletro…penso que nesse momento temos bandas de Melody melhores.
Texto paid’égua como dizemos aqui no Pará. Só gostaria de fazer uma correção quanto ao nome de uma das cantoras mencionadas, a rabequeira em questão chama-se Luê e não ~Laê. Abraços.
Yorranna, obrigado pela correção, já devidamente ajustada – cacilda, como consegui errar, com o programa nas mãos e tudo?
Delicioso, né, Marcos?! – ei, a gente precisa se conhecer qualquer hora dessas!
Marli (minha parente?!), traz cá pra gente as bandas melhores de melody, por favor!!!