OS FANTASMAS DA CASA DE MEU PAI

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foto: jatobá madeira/AÊÊ

Tem uma mulher de olhar severo, que nunca fala, só encara.
Tem duas crianças que fazem o velho sorrir como uma delas.
Eles todos parecem vir de um dos três quartos da casa que o velho não permite que seja usado, fica de mau humor.

No começo, só o velho os via, mas aí num feriado minha irmã dormia num colchão no chão da sala e passou a testemunhar abertamente: sim, a mulher estava lá, de pé na cozinha, parada, olhando para ela com o olhar severo.
Pouco a pouco, a história foi assustando todos os filhos do meu pai, que começaram a se recusar às visitas de dormir.

No início, não dei muita bola. Não porque seja particularmente corajoso, sou um dos mais cagões. Mas é que eu ainda não tinha voltado lá. Até este Carnaval.

O derrame de 2006 deixou meu pai sem memória e com a língua enrolada. Não se sabe o que ele diz e o que deixa de dizer menos ainda. Mas, de madrugada, contam os que ouviram, ele agora diz frases inteligíveis normalmente – mas só no papo com seus fantasmas de estimação.

Os fatos:

1. Que o velho chorou feito bebê no dia em que (ele descreveu isso) a mulher entrou no seu quarto, pegou as duas crianças com as quais ele brincava e sumiu com elas;

2. Que eu dormi na sala durante três noites com um olho aberto e os pés bem cobertos, e que nesse período eu não vi fantasma algum nem escutei nada que não fossem os cachorros hiperativos da vizinhança engalfinhando-se por algum osso roído;

3. Que é mais fácil dormir lá depois de uma caixa inteira de cervejas (a madeira da casa range, depois de um dia ao sol);

4. Que eu fui ao banheiro às 4h da madrugada e meu pai estava sentado na beirada da cama e ele me chamou com um sorriso, me abraçou e quis conversar sobre minha partida, mas eu só entendi o que ele falava quando ele abaixou a cabeça, triste;

5. Que eu, ateu materialista dialético zombeteiro desrespeitoso afilhado de Padim Ciço por determinação de minha mãe, eu dormi todas as noites com a medalhinha de São Bento no pescoço, por precaução (que eu não creio, mas não sou trouxa);

O Pinduca me contou hoje uma história de fantasmas relacionada ao texto A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa. Todos concordamos que, se existem espectros sobrenaturais, Ouro Preto é sua maior metrópole.

Meu pai, que é de 1917, viu quase um século inteiro produzindo seus fantasmas. Entretanto, tal como o conheci, nunca tinha perdido tempo com eles. Até agora.

É consenso entre meus amigos caça-fantasmas amadores que meu pai somente poderia ver esses espectros porque talvez já esteja no limiar da vida, os portões estão se abrindo. Ele desce o rio devagar em sua canoa.

Fico pensando em como serão os meus fantasmas quando eu estiver nessa região fronteiriça. Usarão mullets como alguma pessoa que eu tenha molestado nos anos 80? Usarão camisa xadrez como o grunge que eu esmurrei em 1994? Surgirão em feixes de luz, como no filme do Clint Eastwood? Discutirão comigo se terão prevalecido, como saldo de minha vida, minhas boas intenções esquerdistas ou minhas explosões reacionárias de fúria em peladas de futebol?

Por via das dúvidas, estarei com minha medalhinha de São Bento no bolso…

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter desde 1986 e escritor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019), Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021) e O Último Pau de Arara (Grafatório, 2021)

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