foto: fernando dantas/AE

A lucidez musical de Coleman contrastava com sua figura vulnerável (locomovia-se cuidadosamente, vestindo terno de risca de giz com gravata púrpura). O roteiro do show parecia que ia sendo acertado aos poucos, ao pé do ouvido, entre ele e Tony Falanga, o italiano que tocava contrabaixo acústico. Sempre que parecia que Ornette ia se retirar, Falanga vinha até ele e soprava que havia mais alguma coisa diante. Ele voltava a se sentar. A plateia ficava muda, torcendo.
À frente de um quarteto, o saxofonista e compositor de 80 anos esteve no Sesc Pinheiros este final de semana. Eu o vi na noite de sábado, quando o velho mostrou que o free jazz que protagonizou nos anos 60 não só está vivo, como já está dobrando a esquina lá na frente. Mais de 2 mil pessoas foram vê-lo em duas apresentações (no domingo, contaram, faltou luz em algum momento e ele continuou tocando sem amplificação, no modo acústico).

Coleman mostrou, em quase duas horas de concerto, diversas fases de sua carreira e seu mais recente álbum, “Sound Grammar”, lançado em 2006 (gravado ao vivo na Alemanha). Ele se faz acompanhar pelo filho Denardo Coleman na bateria, e a dupla de baixistas Tony Falanga e Albert MacDowell (no disco, era Gregoary Cohen). Os dois contrabaixos, acústico (Falanga) e elétrico (McDowell), ficam postados um em cada lado do solista, criando as modulações de que Coleman se serve para controlar e disseminar as ondas do sax. É como se ele inventasse o drum’n’bass’n’bass. O baixo elétrico, não raro, solava como guitarra, à moda de Stanley Clarke (ele ainda existe?).

Em “Jordan”, o quarteto parecia correr em quatro vagões de trem lado a lado, mas só que em trilhos diferentes, compondo uma música quadridimensional, cheia de superposições, riquíssima e envolvente. Logo depois, veio “Turnaround”, blues de 1958, que Coleman reinventou com variações de tempo e velocidade. Curioso: o free jazz que causava espanto, hoje faz dançar, sonhar, delirar. É lírico e pacifica espíritos, como se já tivesse sido devidamente incorporado ao repertório médio moderno.

Toda a incompreensão que Coleman enfrentou nos anos 1960 (achavam-no “desafinado”) parecia não fazer mais o menor sentido. A plateia não só entendia, como crescera sob os reflexos daquilo que consideravam uma aparente “dislexia musical”, proposições que dinamitavam a música por dentro e a iam reconstruindo em outra dimensão, com outras estruturas. Como dizia Barthes, censura não é só impedir de dizer, mas também obrigar a dizer. Nos anos 60, as primeiras temporadas de Coleman como bandleader causavam polêmica – Miles Davis achou que ele estava “lixado por dentro” e Roy Eldridge disse que ele estava a ponto de ter um orgasmo em público.

De fato, é justa a comparação com a libido. Algumas canções de pulsação frenética, como “Song X”, de 1985, parceria com Pat Metheny, exigiram de Coleman o auxílio luxuoso de um violino (que ele não usa como um instrumento de cordas, mas um tipo de percussão de atrito). É de fato uma “Architecture in Motion”, uma arquitetura em movimento – é assim a base da música de Coleman: como casas erguidas sobre palafitas ou superfícies movediças, nunca se aquieta. Vê-lo tão lúcido, tão compenetrado em criar um tipo de beleza que não seja a do espelho, foi uma das boas experiências de um ano exemplar – ao menos na música.

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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