E, como que arrematando a entrevista da “Trip”, segue um texto sobre a recém-lançada caixa de CDs de Jorge Ben. Saiu na edição de 5 de dezembro de 2009, no caderno “Outlook” do “Brasil Econômico” (jornal interessantíssimo, além de lindo graficamente, você já espiou?). Salve Jorge, viva Jorge.

Salve Jorge e seu Movimento Solo

Caixa com 14 CDs confere a Ben Jor o trono nunca reconhecido de artista mais influente da música brasileira dos anos 70 em diante

TEXTO PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Em 1967, aconteceu um congestionamento de movimentos musicais no Brasil. A tropicália foi o rótulo vencedor do acirrado campeonato, mas até que essa definição se consumasse o futuro da música pop brasileira hesitou entre apelidos como pilantragem, som universal, samba jovem, jovem samba, samba brasinha, toada moderna. Se tantas vertentes (tropicália incluída) pudessem ser somadas, resumidas e transfiguradas em gente, o movimento teria um só nome: Jorge Ben.

Figura referencial de todos aqueles balões de ensaio, esse músico carioca ímpar saltaria dos bastidores, onde se encontrava em 1967, para o trono nunca largamente reconhecido de artista mais influente da música brasileira dos anos 1970 adiante. Com 14 CDs recheados de música pop brasileira de primeiríssima qualidade, a caixa Salve, Jorge! (R$ 250, em média) reconstitui a travessia do tímido cantor de samba-jazz do início dos anos 1960 ao desenvolto alquimista musical da década de 1970.

Ironicamente, fica de fora justamente o ano de 1967, quando Jorge testava a tal “jovem samba” como evolução abrasileirada da roqueira jovem guarda. O disco O Bidu não entra no pacote porque foi editado pela hoje extinta gravadora pernambucana Rozenblit, num intervalo de ruptura com a multinacional Philips (hoje Universal), detentora de sua obra no intervalo 1963-1976.

Ben (hoje Ben Jor) surgira em 1963 como um originalíssimo, mas ainda retraído misturador de bossa nova, samba tradicional e jazz, uma amálgama que já ensaiava virar nome de movimento (e virava nome de disco), em Samba Esquema Novo. Não virou porque a bossa nova ainda era dona do pedaço e porque o movimento era um homem só. Mas fincou na misturança sua primeira e definitiva marca, oriunda dos genes recombinados de africanos e europeus [e americanos-ameríndios, arriscaria eu a complementar a redação original do texto, se pudesse].

Embora seguisse para sempre como solitário homem-movimento, tudo seria diferente em 1967. Ali despertou a ira e a hostilidade da MPB “militante”, por assimilar e respeitar os roqueiros “alienados” do iê-iê-iê e, possivelmente, por pretender miscigenar samba e rock. Ensaiou lançar a jovem samba com Erasmo Carlos, sob influência e artimanhas do produtor, agitador e marqueteiro Carlos Imperial. E, mais que nada, configurou-se em fornecedor musical e eminência parda do músico brasileiro mais popular daqueles dias (ao lado de Roberto Carlos), Wilson Simonal, que converteria seu País Tropical em hino extraoficial do Brasil.

Simonal era quem tinha então o toque de Midas, e em sua garganta a jovem samba amadureceu até a forma comercial batizada de pilantragem, uma entidade impura por excelência, híbrida de samba, bossa, jazz, rock, MPB, iê-iê-iê etc., e constituída por um elenco extenso de talentos musicais, Jorge Ben entre eles. A disputa foi ferrenha. Caetano Veloso e Gilberto Gil quiseram chamar a pilantragem de som universal e gravaram com Jorge a emblemática Queremos Guerra (1968). Infelizmente, o precioso encontro de três futuros gigantes não consta entre as 28 faixas do CD duplo de raridades adicionado à caixa.

A tropicália incorporaria ao menos metade do know-how da pilantragem, e Imperial até tentou inventar a “pilantrália” em contra-ataque. Mas a pilantragem seria atirada ao ostracismo como movimento e como turma, primeiro pela antipatia despertada por Simonal no status de “negro poderoso”, e a seguir pela derrocada polítco-policial do cantor. Há quem pense que a pilantragem morreu com o ocaso de Simonal, mas não. O cenário político fechou o tempo para novos levantes raciais e movimentos batizados, mas a pilantragem seguiu em frente sob o nome de… Jorge Ben.

Se Simonal havia consolidado e hipertrofiado a hibridez de Ben, coube a este agora passar às cegas por cima dos traumas e depurar, aperfeiçoar e aprofundar o avanço musical trazido pelo parceiro. Jorge encolheu-se de novo, eliminou qualquer traço “pilantra”, suavizou o black power e… pôs-se a misturar e experimentar mais que nunca.

Com o Trio Mocotó, plantou as sementes do que viria a ser conhecido nos bailes de periferia como samba-rock e criou três álbuns essenciais, Jorge Ben (1969), o tristíssimo Força Bruta (1970) e Negro É Lindo (1971), sua versão aveludada e amedrontada para o lema “black is beautiful”). Com Os Originais do Samba, abriu alas para a repopularização do samba em ambientes livres dos dogmas e amarras da MPB, rumo às invenções setentistas do “samba joia” (Benito di Paula) e da música dita “cafona”.

Sua própria obra se embebeu desse espírito simultaneamente pop, popular, culto, anárquico e desbravador, numa sequência matadora de discos de cabeceira para todo mundo que fez e faz música no Brasil desde então: Ben (1972), A Tábua de Esmeralda (1974), Ogum Xangô (uma tábua de esmeralda de improvisos musicais ao lado de Gil), Solta o Pavão (1975) e o heavy-samba-funk África Brasil (1976).

Jorge produziu pirações nesse período, como os textos de exaltação aos alquimistas medievais e a crença na transmutação de metais em ouro. Acontece que os metais que transformava em ouro eram um panelão de gêneros musicais aparentemente incompatíveis, mas amalgamados por seu condão em algo mais valioso que ouro: a pedra filosofal-musical que ensina com sutileza ao Brasil a fusão de raças, origens e identidades que o país é.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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