no início dos anos 1970, a mineira maria alcina era um furacão cantando “fio maravilha”. nos 1980, era “a cantora do duplo sentido” sacudindo o calor na “bacurinha”. nos 1990, andou na frente do espelho, sem que ninguém a visse, miss, linda, feia, lindonéia desaparecida. em 2003, revirou-se do avesso e, neo-independente, reapresentou-se mpb-carnavalesca-eletrônica, no disco “agora”, em parceria com o grupo paulista bojo.

seis anos depois de “agora”, mas no mesmo diapasão, vem destrinchar “maria alcina confete e serpentina”, um disco de raras elegância e altivez. abaixo, notas soltas para um faixa-a-faixa do novo álbum (amostras de todas as faixas são audíveis no site da tratore, que distribui o cd):


1. “roendo as unhas“, de paulinho da viola. o samba lançado pelo autor em 1973, no álbum “nervos de aço”, é desconstruído pelos teclados, loops e brinquedos de mauricio bussab (integrante do bojo e dono do selo outros discos, que tem acompanhado alcina nestes já quase concluídos anos 00). não pense naquela eletrônica populista para pista de dança da década passada, a coisa aqui é para lá de sutil. e alcina canta, em não-samba: “meu samba não se importa se desapareço”…

2. “cachorro vira-lata“, de alberto ribeiro. ainda que aparecesse quase black power com o “fio maravilha” de jorge ben, alcina foi desde o início compreendida como uma tributária direta de mãe carmen miranda, e sempre aceitou de bom grado o rótulo. e continua a aceitar: o cavaquinho de sergio arara fala alto nesta versão despida de uma entre dezenas de emblemas carnavalescos de mãe carmen, original de 1937. não que a letra fosse feita da leveza e da ingenuidade que a figura risonha de mãe miranda poderia fazer supor: “eu gosto muito de cachorro vagabundo que anda sozinho no mundo sem coleira e sem patrão”…

3. “não pára“, de wado. nestas duas primeiras semanas de audição de “m.a. confete e serpentina”, esta é até agora minha predileta, disparado. o clima noir do tratamento musical dado por três dos caras do bojo ajuda, mas incríveis mesmo são a letra do alagoano-catarinense wado e a maneira como alcina se incumbe da interpretação. a letra começa nua e contundente, “o hospício não vai me dobrar (…) eu cuspo os comprimidos (…) escondo embaixo da língua (…)”, e vai além: no ápice, rouba o refrão de um dos melhores funks cariocas (sampleador que “rouba” sampleador…) e o transforma em grave e deslizante melodia, “não pára…, não pára…, não pára, não…/ até o chão…/ elas estão descontroladas…”.

4. “espaço sideral“, de moisés santana. se a letra do compositor baiano-paulista é retrô-futurista, o arranjo é marchinha carnavalesca (quase) pura, com acompanhamento da banda do fumaça, uma daquelas trupes de senhorinhos tocadores de sopro que dão de zanzar pelo bairro onde maria mora. ah, mas há os ruídos de brinquedos lançados no “espaço sideral” pelo aloprado tatá “jumbo elektro” aeroplano, o compenetrado tatá “cérebro eletrônico” aeroplano.


5. “açúcar sugar“, de tom zé e lô borges. o mineiro lô lançou em “um dia e meio”, de 2003, essa transversal parceria com o baiano-paulista-tropicalista tom zé. a melodia é sinuosa, difícil, e a romântica letra segue as curvas da mesma estrada, “eu vivo como pétala/ tá lá/ no íntimo caderno/ ou como margarida/ que ri da/ cara do inverno, um riso terno”. um dos vários sonhos musicais acalentados por alcina, segundo ela, é dedicar um disco todo à obra do conterrâneo e caçula do clube da esquina.

6. “colapso“, de alzira e e arruda. vanguarda paulisteira com ribombos nítidos de reggae e ecos remotos do interior paulista-paranaense de itamar assumpção e do pantanal matogrossense da família espíndola. maria alcina, mulher, interpreta alzia e(spíndola), mulher.


7. “eu quero é botar meu bloco na rua“, de sérgio sampaio. em 1972, no mesmo festival papado por maria alcina e “fio maravilha”, apareciam também um capixaba franzino, conterrâneo-patinho-feio do “rei”, e este seu enredo-desbunde, outra das maiores canções pop brasileiras de qualquer tempo (alô, eliete…). segundo zuza homem de mello, em “a era dos festivais”, o neo-rockcarnaval de sampaio foi à final do festival por insistência da presidente do júri, nara leão. e foi parar no álbum homônimo de sérgio sampaio, em 1973. o “bloco” botou seu bloco na rua, mas não o autor, um para-sempre-maldito desde então até a morte, em 1994. o bojo acompanha a versão de alcina, e ela soa menos convincente e mais hesitante aqui que em outras versões do disco.


8. “o drama“, de ronei jorge. o roqueiro baiano ronei jorge, num samba curto reprocessado pela garganta áspera de maria. o autor, que lançou “o drama” em “ronei jorge e os ladrões de bicicleta” (2006) e toca violão na versão de mãe alcina, é um dos caras mais interessantes da, digamos, nova geração musical brasileira. já ouviu?

9. “regador“, de roseli martins. alcina conta que roseli surgiu num show seu, afirmando que gostaria de lhe dar uma música. regou, floresceu, está aí a música gravada (outra de arranjo climático, mais para o soturno). maria alcina, mulher, interpreta roseli martins, mulher.

10. “das tripas coração“, de adalberto rabelo filho e piero damiani. adalberto é um dos cérebros do grupo paulista numismata, cujo álbum de estréia, o “indie-samba” “brazilians on the moon”, fez bonito em 2003. “das tripas coração” é frevo de trio elétrico de bandeja para maria, pronto.


11. “maria alcina confete e serpentina“, de adalberto rabelo filho. como na faixa anterior, maria alcina, “confete e serprentina, vison, lamê, brilho, pluma e paetê” (não, não é o papa), é acompanhada pelo numismata em carne e osso, mas agora de modo mais explícito: os rapazes estilizam para mãe maria um coro masculino de fundo como aqueles que vó carmen usava em “eu dei…” (1937). entre os objetivos expressos pela intérprete-personagem da marchinha, “acabar com toda falta de alegria”, “balançar o esqueleto e a apatia” – mas por quê? “porque alguém tem que fazer o que é preciso e invadir o consciente coletivo”, exatamente o que em 1972 fazia, sob chuva de paus e pedras, uma tal de maria alcina.

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lembra quando, poucos anos atrás, gal costa reclamava da falta de novos bons compositores e canções neste brasil? pois é.

(p.s.: mais sobre marialcina amanhã, na “carta capital”.)

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