um elegantíssimo cd oferece flores em vida a uma das glórias do samba, nelson sargento, hoje com 84 anos. em “versátil”, ele interpreta alguns temas inéditos, convida dona ivone lara e zeca pagodinho para cantar e recupera algumas jóias antigas (menos aquele histórico, mas puído samba que “agoniza, mas não morre”).

a elegância está por toda parte de “versátil”, menos num pequeno detalhe tão estranho que me motivou a trazê-lo aqui, para tecer alguns comentários (demarcados abaixo por intermédio de n1ú2m3e4r5o6s) e pedir opiniões e avaliações aos excelentíssimos leitores & leitoras sobre toda essa esquisitice.

trata-se de um texto de dois parágrafos, impresso no encarte do disco e assinado por ninguém mais, ninguém menos que nelson sargento. vai aqui copiado o recado de n.s., que já começa estranho pelo título, “Bem estar bem” (1):

“É muito importante – e ao mesmo tempo gratificante para todos nós – quando uma empresa (2) do porte e da envergadura da Natura tem a preocupação em investir, com dignidade, respeito e amor, na cultura do país onde atua e foi criada (3), exaltando e presigiando músicos, cantores, compositores (4) e todas as outras formas de arte, de um modo geral.

O Projeto Natura Musical tem um papel deveras espetacular (5) na música e uma nobre missão; (6) tirar do ostracismo ou do esquecimento (7) artistas de real valor (8) que, sem esse magnífico projeto (9), seriam eternamente ilustres desconhecidos (10). Parabéns e que dure para todo o sempre (11)”.

(1) este é o slogan comercial de determinada fábrica, ou eu estou redondamente enganado?

(2) qual seria sua expectativa ao saber que nelson sargento escreveu um texto para o cd de nelson sargento? não seria de ouvi-lo discorrer sobre arte, música, samba? a minha era. mas olha ele aí falando de… “empresa”!

(3) até aqui, empresa, empresa, empresa. empresa impecável, diga-se, tipo assim a oitava maravilha do mundo, nos dizeres surpreendentes de nelson sargento. mas empresa.

(4) a música! ela chegou, até que enfim!, depois de 43 palavras, entre elas “empresa”, “porte”, “envergadura”, “natura”.

(5) “deveras espetacular”??? bem, isso até leva pinta de letra de samba de n.s., mas… “deveras espetacular”???

(6) sic para o ponto-e-vírgula; será que não houve revisão do texto por parte do “espetacular” projeto n(…) musical?

(7) alguma vez na vida você já viu algum sambista, algum cantor, algum artista referir-se assim tão direta e abertamente a seu próprio (suposto) “ostracismo”, a seu próprio (suposto) “esquecimento”? eu nunca vi, nunca, nunca, nunca – e olha que já entrevistei às dezenas, talvez às centenas, artistas que talvez pudessem se enquadrar nesse rótulo carcomido e despistador de auto-responsabilidades. de gretchen a guilherme de brito, nunca ouvi ninguém autodeclarar-se “no ostracismo”. estranho, muito estranho. deselegante até, eu diria.

(8) “artistas de real valor”? isso até já ouvi de diversas bocas próprias. mas na boca de um sambista? um sambista referir-se a si próprio como “artista de real valor”? juro, isso eu nunca vi – o que é até meio lastimável, uma demonstração triste da síndrome de autovitimização que no passado acometeu muitos sambistas e sambas, inclusive nelson sargento e “agoniza, mas não morre” (que, se você não lembra, assim se auto-apieda: “samba/ agoniza, mas não morre/ alguém sempre te socorre/ antes do suspiro derradeiro”).

(9) tá, “magnífico”, já sei. eu até concordo, nada de errado em a natur”ez”a integrar o samba, retirá-lo da penúria, fazer marketing de sua própria bonomia. mas, ah, é demais pedir um mínimo de elegância, nem que seja para fazer jus à tal nobreza do homenageado? ou seria até aquela tal nobreza uma modalidade mercadológica?

(10) “ilustre desconhecido”, o nelson sargento? mesmo com “agoniza, mas não morre”, “falso moralista”, uma série de filmes em que atuou como ator e vários etceteras? e, de novo, n.s. em pessoa se autoclassificaria “ilustre desconhecido”, você acredita mesmo? não há algo aqui ofendendo a inteligência do, er, consumidor?

(11) por favor, por favor, você que está lendo isto aqui. me explica, me ensina, me diz o que você está pensando sobre esse texto aí? me ajuda a entender o que é que há, o que está se passando?

em tempo, quem tiver visitado recentemente o blog-irmão pedroalexandresanches.wordpress.com notará imediatamente que este tópico foi instigado por um comentário do leitor guto, a propósito do show “labiata”, de lenine. não emendarei a fala do guto aqui, para não encompridar demais, mas a copio na janela vermelha, imediatamente após publicar este tópico, e você entenderá facilmente o que está em jogo.

antes de terminar, só repito uma vez mais: nada contra as tramas do patrocínio, de modo algum, nem quero aqui desempenhar eu o “falso moralista”. mas, ai, essa deselegância nada discreta, quem ainda agüenta, hein?

quanto a mim, só me traz irritação, e torna mais especial a faixa 12 de “versátil”, quando n.s. canta de novo o genial samba antigo “falso amor sincero”, aquele que diz assim: “o nosso amor é tão sincero/ ela finge que me ama/ e eu finjo que acredito”. toda vez que seu nelson pronuncia “ela”, eu não consigo mais parar de pensar na natura.

tudo bem que, embora “ele” não o diga, a recíproca deve ser 100% verdadeira. né, seu sargento?

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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