uma pequena resenha sobre o excelente documentário “fabricando tom zé”, do jovem décio matos jr., foi incluída na edição 453 da “carta capital”, de 18 de julho de 2007, e é ela que eu copio aí mais abaixo, numa tentativa de manter viva a chama.

pelo que eu sei, “fabricando tom zé” ainda está em cartaz em são paulo (e nas outras cidades?…), exposto (ou melhor, escondido) nalgum horário diurno dalgum cinema “da moda” da cansei-city. a trajetória do documentário é fenomenal: ganhou “grandes prêmios” do público (atenção, do público, entendeu?) em alguns festivais de “porte” por onde passou (tipo assim, a egg-city e a cansei-city, mora?), mas não gerou comoção equiparável junto à “grande” imprensa e à mídia “grande” plantadas no coração das (super-)ego-cities.

e eu fico aqui matutando, me perguntando: será que o pessoal não assistiu a “fabricando tom zé”?, será que a turma não percebeu o relicário riquíssimo de informações e depoimentos inéditos e contundentes escondidos (ou melhor, expostos) dentro do filme?

mais ainda, queimo minhas pestanas: o que será que a patota que integra os setores pseudotropicalistas da cultura brasileira está achando de “fabricando tom zé”? o que será que causa esse silêncio tão ensurdecedor em torno daquele filme despretensioso, simpático, mimoso? nenhum pinguinho de curiosidade, por parte da comunidade pseudo-tropicalista, da trupe tropicalista, da patota não-tropicalista, da multidão nada-disso,-muito-pelo-contrário? estraaaaaanho.

respostas a tais indagações serão devidamente recebidas na caixa postal 000, de madame zoraida, na rua dos bobos, número zero, cep 00000-000.

mas, enquanto não chegam as missivinhas a madame zoraida, zeróida – cigana, cartomante, quiromante, funâmbula e leitora charlatã de bolas falso-brilhantes de cristal -, euzinho anexo à resenha da “carta capital” uns “bonus tracks” (a city of tired people e a omelete city costumam apreciar, não?) de tom zé. o que vai aí, mais embaixo do embaixo, são 1) frases do radical-tropicalista baiano-paulista tom zé, extraídas do filme de décio matos jr., e 2) excertos de falas do dito cujo, durante entrevista telefônica que lhe fiz para repercutir “fabricando ‘ele mesmo'”. madame zoraida agradece, condoída, la cumparsita.

A desinvenção de Tom Zé

O documentário foi concebido para louvar a figura do protagonista, mas não deixa muito espaço para meios termos. Astro pop brasileiro, o protagonista aparece furioso, dando empurrão num técnico do festival suíço de Montreux. Surge mergulhado em vaias durante um show na França e depois sorri, conformado com o “dia de bucha”. Aparece iconoclasta, chamando de “patetas” os colegas co-criadores do movimento tropicalista, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Mas, não, não é jamais um retrato negativo o que o cineasta Décio Matos Jr., 28 anos, constrói do protagonista no longa-metragem Fabricando Tom Zé, em cartaz desde a sexta-feira 13. O Tom Zé que povoa a tela é zangado, imperfeito, falho, nervoso, mas também é terno, amoroso, divertido, vitorioso, apegado à esposa (por sinal, a até aqui anônima Neusa se expõe e transborda como uma das revelações do filme).

O retrato final desestabiliza quaisquer clichês de artista sempre feliz, sempre sorridente, sempre bonzinho, um poço de virtudes. Tom Zé não aparece assim no filme. Aparece humano, simplesmente. E assim ajudou Matos Jr. a conquistar os prêmios de melhor documentário pelos júris populares das mostras de cinema do Rio e de São Paulo de 2006.

O processo não foi tranqüilo, como conta o artista. “Fiquei brigado com Décio, passei dois meses sem falar com ele, porque tínhamos combinado de não incomodar Caetano e Gil com entrevistas”, conta. O diretor desobedeceu. E obteve um depoimento inédito de Caetano, sobre Tom Zé ter sido “tirado da foto” da tropicália até a redescoberta, lá fora, nos anos 90. “Há talvez algo de mesquinho, inconscientemente, na nossa atitude”, diz Caetano.

Quando Tom Zé viu o filme pronto, mudou de idéia e aprovou o resultado. E lá estão as imagens da briga com os técnicos de Montreux. “Minha banda é banda de preto, feio, vagabundo, ninguém fala inglês, é preconceito?”, esbraveja no ensaio. Mais tarde, desabafa para a câmera: “Eles têm tudo, escola, educação, beleza, pele boa, cabelo bom. Veja as figuras de nós, que estamos fazendo o espetáculo deles. É todo mundo com a pele ruim, feios, desgraçados, mal penteados, mal vestidos. O Brasil pobre traz a música com que eles conseguem manter este festival em pé”.

Por essas e outras, fica impressa na mente uma das imagens finais do filme, quando um Tom Zé desenhado vai caminhando para longe, cada vez menor, enquanto a sombra que deixa atrás de si cresce e se agiganta mais e mais. Eis a metáfora. – POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

bônus 1: frases de tom zé no filme

“por causa do ritmo eu deixei de apanhar na vida.”

“é à meia-noite que o dia começa.”

“mande a embaixada do brasil para a puta que pariu e deixa o povo sentar.” (a neusa, diante das cadeiras reservadas à embaixada brasileira, nalgum chiquetérrimo palco europeu.)

“como sou absolutamente analfabeto, a pessoa compreende logo e se torna solidária.”

[1a, frase de arnaldo antunes: “é o mais nordestino dos tropicalistas, e o mais paulista.”]

“a pessoa já está encantada em seu próprio espelho. eu, não, nasci patinho feio.” (comparando-se a outros pop stars.)

“uma sombra minha” (referindo-se à esposa, neusa.)

zangado na passagem de som em montreux, prestes a entrar em conflito com os técnicos locais: “esta banda é louca, não tem juízo”; “a gente pára”; “é melhor a gente ir para casa”; “talvez a pessoa não gosta do estilo, chama outra banda que toca no lugar em gente”; “,inha banda é uma banda de preto, de feio, de vagabundo, ninguém fala inglês. é preconceito?”; “vá pra porra, não venha me dizer oh oh, não” (depois que o técnico diz que ele tem que ser “preciso”, tem que explicar que freqüências precisa, em vez de “blah blah”); “estão me desrespeitando, não me diga ‘cala a boca’!”.

para a câmera, após o conflito: “eles são humilhados por aqueles que eles humilham. eles têm tudo, têm escola, educação, beleza, pele boa, cabelo bom, cosmético, veja as figuras de nós, que estamos fazendo o espetáculo deles aqui. você viu essas menininhas aí do maranhão, tudo pequetutu, umas molecas desse tamanho, mal vestidas, pobres, com a pele ruim. é minha banda, é eu, todo mundo com a pele ruim, feios, desgraçados, mal penteados, mal vestidos. e entretanto eles, que têm tudo, têm dinheiro, têm riqueza, têm escola, têm eletrônica, têm puta que pariu, eles não têm música para botar aqui. o brasil pobre tá trazendo a música que eles conseguem manter esse festival em pé. eu estou falando de montreux”.

“eu ainda sou uma ousadia, um desplante mais ofensivo. eu, além de ser pobre, brasileiro, terceiro mundo, filho da puta, miserável, ainda faço uma música sofisticada.”

“ele estava humilhando o brasil, humilhando pobre. todos rapazes guapos, lindos. o próprio explorador, não tenho nada com isso, acho as pessoas bonitas bonitas, desde que não comecem a agir vilmente. enquanto agem com respeito, se foram mais sabidos, roubaram a gente, eu aceito a regra. mas não venha ser vil, filho da puta.”

“não há artista no mundo que tenha um acontecimento desse, porque os outros são humilhados, são fodidos, são postos para fora.”

para a câmera, sorrindo, logo após ser vaiado num show na frança: “para vocês verem que também tem dia de bucha”.

sobre o desterro após a diáspora tropicalista: “1968, caetano veloso e gilberto gil foram presos. começaram a fazer fuxico de mim, e eles acreditaram, veja que patetas. todo mundo no brasil espalhou a notícia: tem uma vaga no tropicalismo. todos foram a londres, porque iam me substituir”.

sobre o desterro na bahia natal, pós-tropicalista, no início dos anos 90: “todo mundo junto, o prefeito da bahia, próximo carnaval ia ser sobre o tropicalismo. quando sou chamado, ‘vem?’, ‘claro que vou!’, ‘não tem foto sua no carnaval’. não tem minha foto no carnaval? quem tirou minha foto do carnaval da bahia?”.

[1b, frases de caetano veloso: “por que ninguém disse nada?, por quê? é uma pergunta pertinente, que a própria pessoa se faz. eu não fiz nada. é evidente que todo mundo tem sua dose de egoísmo, às vezes pode ser mais fácil não ter esse complicador que era o tom zé. há algo de mesquinho talvez, inconscientemente, na atitude nossa”.]

[1c, frase de gilberto gil: “quando voltamos do exílio, ele já estava recolhido. tom zé se recolheu mesmo”.]

“eu fiquei doente, triste, fodido, invejoso, filho da puta, desgraçado. levantava de manhã para enganar a neusa. não ter energia é uma experiência fantástica, não ter energia para suspender uma mão.”

[1d, frase de caetano veloso: “o brasil e nós todos que somos o brasil quase deixamos o tom zé ser esquecido, em muito pouca medida pelas carências, incapacidades ou incompetências dele e muito mais pela singularidade da genialidade dele”.]

[1e, depoimento do crítico arthur nestrovski. ele opina que o desterro de tom zé teria partido do próprio tom zé, que naquele momento não estaria interiormente preparado para assumir o papel histórico que caetano e gil viriam a assumir.]

“eu não sou gênio, eu sou japonês.”

bônus 2: frases de tz em entrevista telefônica com pas

“no rio, teve a surpresa agradável de o público eleger o filme, em são paulo aconteceu novamente de ser o prêmio do público”; “décio me contou algumas peripécias, uma coisa meio fantástica, que, quando o filme passou na costa leste dos estados unidos, o disco ‘estudando o pagode’ esgotou nas lojas”; “há um pedido para ter uma sessão especial na bahia”; “o que vi no rio e em são paulo foram platéias de cineastas. no rio foi uma verdadeira comoção, no meio da exibição”.

“já não me queixo da mídia. se fosse ter queixas, seria de as pessoas parecerem que têm receio de ir aos shows.”

“eu estava meio brigado com o décio. tinha combinado que não íamos incomodar caetano e gil, de repente um belo dia ele me disse que ia levar ao caetano. falei que não. ele disse ‘eu respeito você como músico, você me respeita como documentarista’. ‘documentarista, uma porra, você entrou em casa de coeiro, quando acabar o filme você vira documentarista.’ passei dois meses sem falar com ele. o filme veio para cá e eu vi, neusa quis que eu visse porque ficou com medo da cena da vaia. aí vi que eles tinham feito um trabalho formidável, por habilidade deles, dosando cada milímetro.”

“caetano disse ‘você queria os chatos de sempre no filme’, mas isso é algo que sempre me incomoda. parece que sempre as pessoas me procuram, começam falando comigo, e terminam me perguntando como fazem para falar com caetano. não gosto disso, quando gil entrou no ministério da cultura, não falei mais com ele, eu me afasto.”

“o episódio de montreux foi muito sabiamente tratado, colocaram todo o aborrecimento que já estava na situação. não sou um doidivanas que faz isso o tempo inteiro. puxa, eles fizeram uma coisa bonita”; “tem que ter o momento em que você cochila, tudo isso é linguagem”.

“acho que [os técnicos de montreux] pensaram ‘esses sons do brasil é só ligar, não tem problema'”; [depois de ele se zangar] devem ter pensado ‘qual é o mal-educado que está aqui profanando o templo da música?’. ficaram na mesa de som dando risada. e eu fiz uma coisa de teatro, fiquei fazendo tai-chi, com toda calma, só olhando. em meio minuto não tinha mais ninguém rindo”.

“tomamos um susto [diante do depoimento de caetano], porque parecia que aquele assunto nunca viria à baila, ‘temos que agüentar essa porra desse cara, era melhor que continuasse mudo’.”

“eu fui retirado do retrato. [pergunto sobre a proposição de arthur nestrovski, de que ele próprio se retirou do retrato] também é verdade, minha psicanalista falava isso e fala até hoje. também fui muito beneficiado por ter nascido perto de dois gênios. há aquele ensinamento que quando um amigo seu está se afogando você não deve pular na água, senão morre junto com ele.”

“chacrinha botou meu verso na televisão, ‘eu tô te explicando pra te confundir’, e eu não tive coragem de pedir à gravadora que explicasse que a frase era minha, não era do chacrinha”; “não sou sobre-humano, tenho inveja, paixão, ressentimento. sempre tratei isso com dignidade”.

“a humanidade só pode se interessar por alguma coisa se tiver também a parte humana, falível, medrosa, escorraçada. quando vi a vaia, achei ‘que bom’.”

“claro que é aliviante [ver incluída e publicada em ‘fabricando tom zé’ a série de desabafos que ele faz].”

3

só um encadeamento de conclusões minhas, antes de terminar: em 2005, em “estudando o pagode”, tom zé erigiu a “opereta segregamulher”, para denunciar a segregação machista da sociedade sobre as mulheres (a patota pseudotropicalista saiu correndo fugida de “estudando o pagode”, junto com a patota antitropicalista, por que será, né?). tom zé costuma dizer que é mulher, que é feminino. logo, a “opereta segregamulher” é também a “opereta segregatomzé”, a “opereta segrega-te-a-ti-mesmo” (cê já viu?, já ouviu?).

e assim é que, juntos, os acontecimentos exuberantes de “fabricando tom zé”, de montreux, da vaia e do novo diálogo (indireto, intermediado por décio) com caetano e gil soam como um desabafo pós-“opereta”, o desenlace aliviado de um auto-aprendizado interno que, sempre que enfrentado, resultará em novos e suculentos frutos logo ali adiante.

e, além do mais, há neusa, “mulher-sombra”, crescendo junto com tom zé atrás (e na frente) de “estudando o pagode”, de “fabricando tom zé”, deste brasil novo que canta de galo (e/ou de galinha) diante dos “primeiros” mundos. cê tá entendendo?

(ih, o bônus 3 nem foi anunciado e avisado, mas havia…)

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