ontem, na boca da noite, morreu a “tia” zaida, minha tia-avó (e tia materna da minha mãe), uma entre os 6.020 habitantes da pequena mariópolis, que fica pertinho de pato branco, no oeste profundo do paraná.

um dia, a minha mãe, menina gaúcha de flores da cunha, tomou coragem e fugiu sozinha do orfanato, tão exaurida se sentia da companhia de um exécrito de freiras que aterrorizavam uma legião de meninas arrastando correntes pela madrugada, feito fantasmas sádicos de filme de horror. foi a tia zaida quem acolheu a minha mãe depois daquele ato fugitivo de aventura e valentia.

a minha mãe, zaira, acalenta até hoje um amor profundo pela minha tia-avó, zaida.

nos anos 1950, a zaida e o anacleto, esposa e marido, mantinham um hotel modesto em caçador, santa catarina. chamava-se hotel diplomata, se não estou enganado.

josé, o meu pai, catarinense das margens do rio uruguai (o nome do município eu nem sei, era zona rural…), era recém-formado em contabilidade, e chegou ao hotel para fazer “a escrita” (eu não sei o que é isso, mas é assim que ele conta) do estabelecimento.

foi ali que o meu pai conheceu a minha mãe, ela servindo a mesa dele, garçonete e contador.

naquelas redondezas mesmo meus pais se casaram, em 1954, e logo o josé trouxe a zaira a tiracolo, na migração para o paraná, onde vinham se tornar alguns dos primeiros colonizadores da recém-nascida maringá, tão milimetricamente planejadinha pelas companhias inglesas que também construíram londrina.

o zé e a zaira tiveram logo duas filhas e, 11 anos mais tarde, um filho, e blá, blá, blá…

os vínculos se mantiveram, e eu passei a infância e a adolescência visitando mariópolis e recebendo as visitas adoradas da tia zaida e dos filhos, especialmente a kátia, minha prima-tia-irmã de quem eu gostava e gosto imensamente.

quando eu era bem pequeno, numa época em que as coisas não pareciam estar dando lá muito certo para o tio anacleto, ele morou conosco por um tempo, em maringá. depois voltou para casa, em mariópolis, e um dia se matou, com um tiro, no banheiro.

a tia zaida era irmã da antenisca, a minha avó materna, que eu nunca conheci porque ela morreu muitos anos antes de eu nascer. a vó antenisca, personagem nebulosa, deixou as duas filhas pequenas no “colégio” de freiras e não conviveu mais com elas até que um dia, não muitos anos depois, morreu afogada, talvez suicidada.

a tia zaida não voltou a se casar depois do tio anacleto. mas tocou a vida adiante e se tornou bibliotecária em mariópolis, adorada pela criançada, popular como ela só em seu jeito tímido, castiço, recatado, religioso. (daqui de são paulo fico imaginando o velório e o enterro dela, deve estar bem cheio de gente lá a esta hora.)

ontem, mais ou menos na hora em que a tia zaida morria, eu estava com uma turma de amigos tomando uns breguetes lá no friozinho da serra da cantareira, no popular “velhão”. entre nós estava a carol, que a certa altura contou que é natural de novo hamburgo, interior do rio grande do sul, uma “colona”.

achei engraçado o termo e me lembrei da kátia, que sempre falava dos “colonos” de mariópolis, assim com um certo ar de repulsa pelos “colonos”. eu ficava medroso, achando que os “colonos” deviam ser “malvados”. mas, quando nos aventurávamos pelas redondezas que eram dos colonos, eu tomava leite de garrafa, chupava uva do pé, comia queijos caseiros, vibrava de empolgação.

nunca entendi direito o que significava ser “colono”, e acho que só fui decifrar de vez o enigma ontem, enquanto a tia zaida morria e a jovem e linda carol me explicava o que era um “colono”, uma “colona”.

ontem me dei conta de que ser “colono” em mariópolis é igual a ser da vila esperança ou do jardim alvorada em maringá, ou ser “maringaense” em curitiba, ou ser “sulista” no sudeste, ou ser “bicho do paraná” em são paulo, ou ser “jeca tatu” interiorano diante dos olhos paulistanos, ou ser paulistano diante de farejares litorâneos, ou ser do “interior” do brasil perante os juízos conterrâneos do “litoral” do brasil.

o que é ser isso tudo eu sei, porque é ser o que eu sou: colono, sulista, maringaense, interiorano, paulista por adoção, paulistano-in-law, brasileiro, favelado terceiro-mundista. caipira, pirapora.

(afinal, os interioranos-caipiras pensam bobagens equivalentes a respeito de seus duplos litorâneos-cosmopolitas, não pensam? pensamos.)

pois os nomes variam conforme a escala e o nó da espiral em que estejamos, mas os preconceitos que não raramente costumam forrar tais apelidos parecem forjados sempre no mesmo aço inoxidável, de mesma espessura, de igual (e secular) rigidez e durabilidade.

hoje pela manhã, ao saber que a tia zaida tinha morrido lá em mariópolis aos 81 anos de idade, fiquei pensando nela e em mariópolis, em maringá, na mãe e no pai, em toda a família, no pedro-criança-e-adolescente-e-adulto.

lembrei, palmo por palmo, a casa de madeira da tia zaida. a varanda de chão frio. a cozinha quente com fogão a lenha. os quartos aconchegantes de grossos cobertores e fofos travesseiros. os banhos de chuveiro no banheiro gelado depois da morte do tio anacleto. o quintal enorme. a fossa aberta no meio do quintal, onde eu tinha tanto medo de cair. as abóboras que cresciam pelo chão de terra. a imensa variedade de plantas e frutas e legumes e flores no quintal. a felicidade voejante que eu sentia quando estava lá.

me lembrei de quando descobri, encantado, uma multidão de joaninhas primaveris no quintal da tia zaida. asseguro a você que as joaninhas do quintal da tia eram as mais lindas do brasil, da américa latina, de todo o cone sul – quiçá do planeta inteiro.

numas férias por mariópolis, eu dei de “cultivar” joaninhas. foi a tia zaida quem me deu um vidro grande de maionese e me ajudou a fazer os furinhos na tampa. e eu me pus eu a caçar joaninhas, a colecioná-las dentro do vidro, a colher as flores mais meladas de néctar e pólen e sexo para que lhes servissem de refeição e morada e cidadela.

ficava acompanhando atentamente o vuco-vuco das joaninhas. mas em pouco tempo, um ou dois ou três dias, me angustiava pela observação da vida envidraçada delas. sonhava a rebelião das joaninhas, abria-lhes a tampa do pote, pegava uma a uma com dedos cuidadosos, deixava que me passeassem a pele, torcia para que “fugissem” voando – pois joaninhas costumam voar, e muitas delas voavam mesmo, rumo às flores desabrochadas do jardim.

já não me lembro mais se fiz uma só ou muitas cidadelas de joaninhas, mas sei que nenhuma restou dentro das maioneses. todas ganharam de volta o jardim, o espaço solto, são e salvo.

e, embora nunca mais eu tenha “cultivado” joaninhas desde então, não esqueci num minuto sequer da minha vida que as trago aqui dentro, comigo, onde quer que eu for. não elas propriamente, mas a memória delas, as pegadas delas, as anteninhas, as bolinhas amarelas ou vermelhas sobre couraça preta, as patinhas delicadas que até hoje fazem cócegas pelos pêlos do braço quando me lembro.

e eu, que fui uma das joaninhas da tia zaida, hoje me encontro aqui, assim, em estado de pluma, ao espelho, pensando nela.

andei anestesiado da tia zaida desde que, caipira fugitivo (de mim mesmo), vim morar em são paulo, já 16 anos atrás. por anestesiado, nesses anos todos, ouvi a voz dela ao telefone duas ou três vezes, se tanto.

hoje, quando não há mais tia zaida, me pego conversando (e chorando, e me alegrando) com ela tantas vezes quantas não conversamos (nem nos choramos, nem nos alegramos) nos últimos cem milhões de anos.

e me dou conta retardada de que nunca, em tantos anos de “colono” “aculturado”, deixei um minuto sequer de sentir saudade da minha tia-joaninha. agora é só levar para diante a mesma saudade de sempre, a tiavó e as joaninhas guardadas aqui dentro indo comigo aonde eu for.

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