a indústria das ruas, vol. 2

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ainda embebido pelas novidades aprendidas lá na fundação getúlio vargas, marchei na quarta-feira 11 para um hotel fast-food na rua peixoto gomide, quase esquina com a avenida paulista, aquele ambiente todo de “coração financeiro” de são paulo.

[numa vasta extensão/ onde não há plantação/ nem ninguém morando lá…]

íamos, eu e colegas jornalistas das principais redações locais convocados para o jargão da “entrevista coletiva”, ao encontro de seis altos executivos da indústria fonográfica e da indústria cinematográfica, do brasil e de alhures. o anúncio multilíngüe que eles tinham a fazer era bombástico: num inédito esforço conjunto, está fundada a apcm, a associação antipirataria cinema e música.

[hum. sei, não, mas acho que ficou faltando um “a” em “apcm”, e que, assim sendo, tenho de me policiar para não correr o risco de ler “associação pirataria cinema e música”, em vez de “associação antipirataria cinema e música”. mas, não, deixa isso para lá, é apenas um detalhe (quase) microscópico.]

ian grant, diretor de antipirataria da ifpi (federação internacional da indústria fonográfica), começou o certame com gravidade, afirmando que “a indústria fonográfica brasileira foi dizimada nos últimos anos por conta da pirataria” e que a abpd (associação brasileira dos produtores de discos) estima que brasileiros fizeram 1,5 milhão de downloads ilegais de música, só em 2005.

[você sabe disso tudo que ele contou aos jornalistas?, dessa tal de pirataria?, desses tais de daunlôudes?]

trouxeram a nosso (e a seu) conhecimento, então, o recém-nomeado primeiro diretor-geral da apmc: trata-se de antonio borges, que se apresentou contando foi delegado da polícia federal, especializado na área de contrabando. o trabalho principal da apcm, disse o borges, será “de inteligência”, com foco no “nascedouro da pirataria”.

[…cada um pobre que passa por ali/ só pensa em construir seu lar…]

steve solot, vice-presidente da mpa (motion picture association) para a américa latina, falou da preocupação com os sites que oferecem downloads irregulares de filmes. márcio gonçalves, diretor regional de operações antipirataria da mpa na américa latina, fez a ressalva de que esse problema ainda não é grande no segmento industrial do cinema, até porque as conexões de banda larga ainda não são numerosas neste país.

paulo rosa, presidente da abpd (e, portanto, representante-em-chefe das filiais locais de sony bmg, universal, warner e emi, além da global-brasileira som livre), explicou que a indústria fonográfica vai “continuar com a estratégia polêmica de mover ações judiciais contra ‘uploaders’ que utilizam em grande escala as redes peer to peer”

[entendeu?, p2p, entendeu?]

ele procurava distinguir os “uploaders” que compartilham grande quantidades de música na internet dos “downloaders” caseiros e pequeninos, que “roubam” música para consumo próprio e que já andaram sendo judicialmente perseguidos pela indústria fonográfica planeta afora. devido à segunda parte da equação (ou seja, a punição aos “contraventores” caseiros), o assunto atiçou jornalistas presentes e começou a aquecer o clima condicionado do recinto.

[…e quando o primeiro começa/ os outros depressa procuram marcar/ seu pedacinho de terra pra morar…]

diante da pergunta sobre se a indústria brasileira vai seguir o exemplo das matrizes e eventualmente processar quem faz download dentro de casa, raul vasquez, diretor da ifpi para a américa latina, riu e fez brincadeira: “é melhor a gente não responder essa”. paulo rosa respondeu que “sim, vamos continuar processando”, mas repetiu que o foco da patrulha é “o ‘uploader’, que é quem faz a rede funcionar”.

“acima de mil faixas no computador para nós é ‘target‘”, respondeu, quando um repórter pediu definições numéricas que diferenciasse adolescentes gamados em música de perigosíssimos piratas transnacionais.

[“target” que dizer “alvo”, você sabe? e o que quer dizer rede, você sabe?]

discorreram sobre o esforço inédito de coalisão cinema-música, e raul vasquez afirmou que “nenhuma das duas indústrias acha que o suporte físico vai desaparecer rapidamente” e que, por isso, “faz todo o sentido combater juntos a pirataria”.

[você sabe?, o “suporte físico” que o vasquez acha que não vai desaparecer rapidamente chama-se “cd”, na indústria fonográfica, e “dvd”, nas indústrias fono-e-cinematográfica. ah, só por falar nisso: na indústria televisiva e radiofônica, o suporte se chama “videotape” (se chama ainda?, como se chama?); na indústria jornalística, se chama “papel”, “jornal”, “revista”…, mora?]

john malcolm, vice-presidente mundial de antipirataria da mpa da américa, fez intervenção triunfal, garantindo que “nosso negócio é proteger a música e o cinema” e que “estamos tentando proteger a energia criativa dos artistas”. e trovoou, gravíssimo: “a pirataria é um problema massivo mundial que afeta a viabilidade da criação. temos que proteger esses mercados antes que eles sejam destruídos“.

[mas e os artistas?, cadê?, cadê? eles estão sabendo do anúncio?, da apcm?, da ameaça à “criatividade” do “mercado”? eles estão bem “protegidos”, em bunkers anti-atômicos? e a “arte”, onde é que está?, onde foi parar a “energia criativa”?, onde anda escondida a “viabilidade da criação”? numa vasta extensão?, onde não há plantação?]

john malcolm também pontuou a preocupação da mpa, e do país-sede que nos legou hollywood, em relação ao cinema popular brasileiro. mencionou as várias co-produções cinematográficas entre o brasil e nossos colegas do primeiro mundo. “não estamos falando só do mercado norte-americano.”

[“ãhã”, pensei eu com meus botões. mas, não, apaga esse comentário, não sejamos levianos em ficar pensando assim em voz alta. control, alt, del.]

uma repórter perguntou aos senhores da indústria de cinema sobre o caso da executiva do magazine luíza que por conta própria mandou dublar, legendar e exibir para os seus um famoso filme ainda não lançado. causou sobressaltos no salão. e silêncios.

[se a nobre colega do magazine luíza fosse camelô lá na 25 de março, você sabe que apelido os senhores pregariam na testa dela, não sabe? pirata!, da perna-de-pau!]

[…e assim a região sofre modificação…]

lutando contra a timidez que costuma acometer jornalistas nessas tais “entrevistas coletivas”, remeti uma primeira pergunta ao ex-delegado borges, agora diretor-geral da apcm: “como a apcm pretende se posicionar em relação ao tecnobrega do pará?”. “o trabalho será voltado para a inteligência”, repetiu. “não adianta só prender camelôs nas ruas“, prosseguiu, reafirmando que é preciso descobrir o nascedouro da pirataria e “levar a notícia à polícia”.

observei, trôpego, que em muitos casos os tecnobregas não podem ser considerados exatamente piratas, uma vez que praticam economia informal de ponta a ponta, sem copiar ilegalmente material de propriedade de gravadora nenhuma e sem infringir direito autoral de editora nenhuma. paulo rosa veio interceder em favor do (ex-)delegado borges: “tanto o tecnobrega quanto nichos do funk carioca, por se desenvolverem nas periferias e não seguirem caminhos tradicionais do mercado, desenvolveram um mercado próprio, de autoria, distribuição e divulgação próprias. mas o camelô que vende tecnobrega também vende cópias piratas de roberto carlos e ana carolina. eles se aproveitam da cadeia de distribuição do tecnobrega”.

paulo rosa então mordeu mais forte: “os tecnobregas só sobrevivem como indústria porque não pagam imposto. é uma concorrência desleal, porque nós, gravadoras, somos obrigados a pagar icms, pis, cofins… e competimos com uma indústria que não paga nada disso. se o mesmo canal distribui tecnobrega e pirataria, isso vai ser combatido”.

[“concorrência desleal”, você sabe como é?]

argumentei que, caso não criassem do modo como criam, os “concorrentes” do tecnobrega simplesmente não existiriam, pois na atual indústria fonográfica brasileira não parece haver gravadora interessada no tecnobrega. paulo rosa respondeu: “o que o público quer, na realidade, é música de graça. eu também quero viajar de graça, me hospedar de graça…”.

[você sabe, não é nada incomum jornalistas – e artistas, produtores, executivos de gravadora, políticos etc. etc. etc. – viajarem de graça, se hospedarem de graça etc. etc. etc.]

paulo rosa esboçou então uma auto-avaliação, uma auto-crítica: “a indústria tem que repensar também o modelo. nós não vamos ser tão rápidos quanto o tecnobrega. hoje, depois de toda a turbulência pela qual a indústria passou no início dos anos 2000, o pensamento é totalmente digital”. e anunciou, diante de uma pergunta sobre os preços estratosféricos dos cds nas lojas “oficiais”: “certamente a reestruturação da indústria passará pela questão do preço”.

[…fica sendo chamada de nova aquarela…]

de volta ao assunto da união cinema-música, perguntei a márcio gonçalves (que trabalhou na associação das gravadoras antes de trabalhar na associação das empresas cinematográficas) se o setor de cinema já se prepara para passar pelos mesmos apuros que há anos não abandonam mais o setor de música. “vejo, com otimismo, que a gente assistiu a tudo o que se passou com a música e que os executivos estão preocupados em não deixar que aconteça o mesmo com o cinema”, respondeu.

[e o setor de tv? e o setor de rádio? e o setor de jornalismo? e a indústria da pornografia? por onde andam os srs. executivos dessas indústrias?, bem protegidos em seus bunkers de aço blindado? sabe youtube, blog, pornotube, hum?]

john malcolm quis acrescentar algo à pergunta anterior sobre a indústria informal do tecnobrega, e discursou sobre “a diferença entre original e pirata”: “a produção de um filme é uma atividade cara e arriscada. para fazer filme e música, precisa-se de anos de dedicação. a indústria tem que poder sobreviver. as pessoas que distribuem produto pirata não contribuem, não pagam o artista, estão simplesmente roubando a criatividade de outros”.

[“não contribuem”, “não pagam”, “estão roubando”, você sabe? a criatividade dos outros, dos “iluminados”, sabe? batedores de carteira da luminária dos “gênios” da “raça”, mora? ãhã…, pronto, conversei com os botões da blusa outra vez.]

já que mr. malcolm me deu a oportunidade preciosa (a essa altura, a natural timidez já fora pelos ares), não havia como eu não emendar com a pergunta seguinte (benditos executivos-tradutores!). referi-me à indústria cinematográfica informal da nigéria, que é desconhecida do mundo, mas já é o terceiro maior mercado de cinema do planeta. uma concorrente de hollywood, talvez?

[…é aí que o lugar então passa a se chamar…]

“a nigéria?”, acentuou paulo rosa, transmitindo incredulidade. um murmurinho de alvoroço espalhou-se pelo salão picasso do hotel blue tree da peixoto gomide. confirmei, a nigéria. expliquei que trazia esses dados da academia, da fgv, e que lá já se pesquisa o fato de que quase não há cinemas na nigéria, mas mesmo assim o cinema é a segunda maior economia do país (e a terceira maior economia de cinema do mundo, atrás de hollywood e da índia), via camelô, via dvd, via informalidade. hollywood, bollywood, nollywood.

[timidez às favas, não é mais ou menos assim que as abelhas polinizam as flores?, fazendo circular polenzinhos de áreas geográficas distantes? aliás, não é mais ou menos assim, também, que os “piratas” difundem o tecnobrega e o cinema nollywoodiano? (será que ainda teremos um paráwood?)]

foi a vez do mr. solot interceder pelo sr. rosa e pelo mr. malcolm e tomar a palavra, definitiva palavra: “sim, é verdade. a nigéria é um fenômeno interessante. agora, dizer que compete com os estados unidos, é difícil…”.

[…favela!]

a experiência coletiva de gabinete ia chegando ao fim. despedimo-nos todos, entre cordiais e aturdidos. dei um abraço na edna calheiros, a maravilhosa assessora de imprensa da abpd. o zum-zum-zum de automóveis da avenida paulista nos esperava lá fora, nas ruas.

[tenho certeza de que os altos executivos da indústria de arte-cultura-cinema-música-lazer-entretenimento têm total e perfeito conhecimento disto que direi agora, mas sempre é bom explicitar, para alguma abelha zonza que passe zumbindo por aqui e para o bem dos creative commons: os colchetes em itálico que se intrometem por entre este texto reproduzem, verso por verso, a letra do samba “favela“, dos sambistas padeirinho e jorginho, funkeiros tecnobregas de um tempo em que a internet ainda nem sonhava entrar em construção. hoje, a região sofre modificação e a rede já fica sendo chamada de nova aquarela – você já deu suas pinceladas hoje?]

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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