castelo da contradição, a rede globo fez seu braço fonográfico (a som livre) lançar, em 1976, um disco chamado “história do brasil através dos sambas de enredo – o negro no brasil”. castelo de contradição, a rede globo deixou a som livre resgatar da poeira, em 2006, o obscuro e esquecido disquinho, na estonteante segunda etapa do projeto “som livre masters”, coordenada pelo titã charles gavin.

projeto coletivo de excelência, reunindo nomes de várias escolas de samba, o disco de 1976, agora redivivo, contava com autores do status de silas de oliveira, mano décio da viola, darcy da mangueira, anescar do salgueiro, noel rosa de oliveira, geraldo babão e tantos outros; com cantores do quilate das de darcy da mangueira, cici, jorge machado, dinalva, everaldo cruz, abílio martins, baianinho, noel rosa de oliveira, anescar do salgueiro, nilton russo, etc.; com músicos do porte de dino sete cordas, josé menezes, chico batera, bucy moreira, arnô canegal, raul marques, e assim por diante.

olhando assim por cima pode parecer bobagem, mas não é.

em tempos de rescaldo do ufanismo do horripilante presidente médici, os sambas das agremiações carnavalescas cariocas prosseguiam e repisavam o hábito de dedicar seus enredos e pompas aos “vultos históricos” do brasil brasileiro. não poucos “intelectuais” devem ter torcido seus narizes, à época, diante do ataque de fuga da realidade, de autismo e de alienação que então parecia acometer os festivos sambistas dos morros cariocas – com tanta tortura e tanto terrorismo refluindo por baixo do mundo, como é que aqueles “ignorantes” se davam ao desplante de ficar derivando interesses subalternos (à ditadura) para dom pedro, tiradentes, princesa isabel, aquela tralha toda?

para o disquinho da globo, que revigorava sambas-enredos apresentados no dilatado intervalo 1957-1976, nossa intelectuália nem deve ter torcido narizes, já quem de sua existência nem deve ter tomado conhecimento – se tomasse, torceria.

reouvir hoje “história do brasil através dos sambas de enredo – o negro no brasil”, no entanto, é um espanto, um susto, um sobressalto. graças ao ouvido aceso de gavin, podemos nos deparar com um mostruário condensado do lado negro da história do brasil, aquele que, lado a lado com pedro álvares cabral, josé bonifácio & que tais, exasperava a paciência de quem, brasileiro da gema, não agüentava o derrame de caricaturas históricas que brotava da avenida e (de onde?) da telinha da globo a cada fevereiro. (exasperava, agüentava, brotava? ou exaspera, agüenta, brota?)

se, neste 2006, concedermos escutar com todo esse atraso o tal disquinho e passarmos sobre nossas idéias preconcebidas a borracha suave do futuro, poderemos enfim entender quão pouco autismo e quão pequena alienação corriam pelo sangue dramaticamente realista (embora amordaçado) dos compositores, das passistas, dos ritmistas e das baianas que levavam para a avenida e traziam para a tela da globo o lado histórico da história “passada” do brasil. (levavam, traziam? ou levam-e-trazem?)

pois, aí está, quem foi mesmo que nos fez supor que tal história fosse “passada”? e se ouvíssemos como se dissessem respeito ao tempo presente (de 1957 ou de 1976) aqueles sambas-enredos edulcorados pródigos em contar sobre zumbi, ganga zumba, palmares, valongo, chico rei, chica da silva etc. etc. etc.? e se (re)ouvirmos, em 2006, tais sambas “históricos” como se estivessem falando sobre o presente de agora, com a voz que lhes sopra o pulmão cansado?

segue-se abaixo um painel com trechos de lindíssimos sambas negros de várias escolas cariocas, cravados entre os primórdios do advento “prafrentex” da era bossa nova (a bênção, presidente juscelino kubitschek) e o início do processo de distensão da fóbica, constipadíssima ditadura militar (er, a bênção, presidente ernesto geisel).

se topar a seriíssima brincadeira, experimente procurar pensar em tais trechos como se eles dissessem respeito não só aos africanos acorrentados em carros de boi do brasil colonial, mas também aos afrodescendentes do brasil pulsante da virada dos anos 50 para os 60, do brasil estup(o)rado pela ditadura de 1976, do brasil ainda mui precariamente democrático de 2006 (a bênção, presidente lula). ou seja, como se eles dissessem respeito a todos nós, por mais “branquinhos” que por fora pareçamos ser. [e alô, periferia!, e alô, favela!, e alô, ruas, becos & vielas!, e alô, copeiras, arrumadeiras, mordomos, babás, garçons & diaristas das tradicionais famílias (brancas) metropolitanas!, e alô, presídio!, e alô, pcc!, e alô, e alô, e alô…]

navio negreiro” (djalma costa-amado régis), salgueiro, 1957: “castro alves (…) em versos retratou/ o navio onde os negros/ amontoados e acorrentados/ em cativeiro no porão da embarcação/ com a alma em farrapo de tanto mau trato/ vinham para a escravidão

negro na senzala” (darcy da mangueira), unidos da tijuca, 1958: “nos idos tempos coloniais/ no brasil de escravo e senhor/ o negro era transladado/ e depois arrematado/ pelo escravizador. e dessa época pra cá/ sofrimento era demais, era demais/ negro tinha que trabalhar/ trabalhar até cair/ no engenho de açúcar/ na colheita de algodão/ negro era castigado/ pelo senhor do sertão. a casa grande/ requinte de grande fidalguia/ mas sem o labor do negro/ o senhor nada fazia. preta velha/ ama do filho do senhor/ negro na senzala/ esquecia os momentos de dor/ com lindas danças e cantorias/ preto velho não pensava/ em seus momentos de agonia”

palmares” (noel rosa de oliveira-anescar-walter moreira), salgueiro, 1960: fala da “tróia” pernambucana de zumbi, “lá do alto da serra do gigante“, “meu maracatu é da coroa imperial/ é de pernambuco/ ele é da casa real”

leilão de escravos” (mauro affonso-urgel de castro-cici), unidos da tijuca, 1961: “e o negro trabalhava o ano/ de janeiro a janeiro/ o chicote estalava/ deixando a marca do cativeiro/ e na senzala/ o contraste se fazia/ enquanto o negro apanhava/ a mãe preta embalava/ o filho branco do senhor/ que adormecia/ tenha pena de mim, meu senhor/ tenha, por favor”

chica da silva” (noel rosa de oliveira-anescar), salgueiro, 1963 (o que está no feminino, na letra, bem poderia ser convertido ao masculino, com efeito tão devastador quanto): “e a mulata que era escrava/ sentiu forte transformação/ trocando o gemido da senzala/ pela fidalguia do salão/ com a influência e o poder do seu amor/ a barreira da cor/ francisca da silva do cativeiro zombou”

chico rei” (geraldo babão-djalma sabiá-binha), salgueiro, 1964: os escravos escondem os ouros de minas entre os cabelos, esperando “completar a importância para comprar suas alforrias

sublime pergaminho” (zeca melodia-nilton russo-carlinhos madrugada), unidos de lucas, 1968, mitificando os personagens envolvidos na extinção (extinção?) da escravatura [e alô, cotas raciais!, e alô, cotas sociais!]: “e de repente uma lei surgiu/ que os filhos dos escravos/ não seriam mais escravos no brasil/ mais tarde raiou a liberdade/ daqueles que completassem 60 anos de idade/ oh, sublime pergaminho/ libertação geral/ a princesa chorou ao receber a rosa de ouro papal/ uma chuva de flores cobriu o salão/ e o negro jornalista/ de joelhos beijou a sua mão”

heróis da liberdade” (silas de oliveira-mano décio da viola-m. ferreira), império serrano, 1969 [e alô, negra elza soares!, e alô, negro johnny alf!]: “passava noite, vinha dia/ o sangue do negro corria/ dia-a-dia/ de lamento em lamento/ de agonia em agonia/ ele pedia/ o fim da tirania (…) essa brisa que a juventude afaga/ esta chama que o ódio não apaga/ pelo universo é a evolução/ em sua legítima razão”

ganga zumba” (carlinhos sideral-colid filho), canários das laranjeiras, 1970: num banzo sublime, de volta ao cenário pacífico-e-bélico de palmares, “foi rei zumbi que ordenou/ invocando o deus da guerra/ entre vales, rios, serras/ as lanças feriam/ luzindo ao sol redenção

a festa dos deuses afro-brasileiros” (baianinho), em cima da hora, 1974, e “magia africana no brasil e seus mistérios” (jorge t. machado), unidos da tijuca, 1975: aqui o tema era o candomblé, tão ou mais marginalizado e perseguido que seus praticantes. entre os termos sincréticos que desfilam pelo enredo, feitiço, atabaques, mucamas, feiticeiros, pajés, índios, exu, ogum, oxóssi, xangô, oxumaré, nanã, oxum, iansã, iemanjá, oxalá

valongo” (djalma sabiá), salgueiro, 1976 [e alô, negro jorge ben!, e alô, negro tim maia!]: “nações haussá, gege e nagô,/ negra mina e angola/ gente escrava de sinhô/ foram muitas suas lutas/ para integração/ inda hoje/ desenvolvendo esta nação”

e a gente dizia assim “não gosto de samba-enredo”, “não gosto de samba”, não dizia? (dizia? diz?) seria porque não queríamos ouvir o jorro de denúncias e acusações – o jorro de dor – que o lado de lá da muralha social nos fazia, enquanto nos construía as muralhas, os edifícios, os claustros, os asilos, os conventos, as escolas, os berçários?

eram talvez pequenas e marginalizadas e irrisórias essas peças de resistência. mas, lembremo-nos, elas atravessavam a avenida, salpicavam a tela tão futilmente visual e tão cruelmente reacionária da rede globo, rodavam no giro de vinil da som (nem tão) livre. ainda que fossem poucas, eram, dentro do mais nobre espírito popular e multirracial, a linguagem de fresta enchendo de sol nossos porões. ainda que fossem poucas, ajudaram a conformar o país que temos hoje, que neste mês de novembro se desdobra, amoroso, em comemorações garbosas ao dia da favela, ao dia nacional da consciência negra, à grande e paulatina saída do armário dos donos marginalizados deste brasil.

não se assuste, pessoa, se, festivos e repentinos, eles (nós?) lhe disserem (e se dissermos?) que a vida é boa.

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome