abaixo, um outro e novo lado de “história do brasil através dos sambas de enredo – o negro no brasil”, exatos 30 anos mais tarde, uma geração e meia depois. [recolhido da “carta capital” 418, de 8 de novembro de 2006.]

A GRIFE PERIFERIA
Uma produção sobre as meninas do hip-hop mobiliza o cinema nacional, a Rede Globo e o meio fonográfico

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

A periferia ocupa a frente da cena mais uma vez. A fórmula de sucesso do filme Cidade de Deus volta a ser testada em Antônia, cuja estratégia prevê uma ação conjunta das indústrias cinematográfica, televisiva e musical. O retrato da vida em comunidades carentes das grandes metrópoles brasileiras torna-se, cada vez mais, objeto de desejo e consumo do cinema nacional, da tela da Rede Globo, das gravadoras multinacionais.

Se em 2002 o filme de ação terceiro-mundista de Fernando Meirelles e Kátia Lund foi criticado por estilizar a favela carioca de Cidade de Deus com foco no tráfico e na violência, Antônia ensaia agora uma reviravolta de perspectivas. Dirigido por Tata Amaral, em co-produção com a O2 Filmes, de Meirelles, elabora uma crônica do cotidiano da comunidade paulistana da Vila Brasilândia, sob a ótica feminina de quatro garotas que perseguem o sonho de se tornar cantoras famosas de hip-hop.

Pré-exibido nas recentes mostras cinematográficas do Rio e de São Paulo, Antônia só entra em circuito em 2007, mas seu imaginário chega antes à telinha global, a partir da sexta-feira 17, numa série homônima de cinco capítulos semanais. Inverte, assim, a trajetória de Cidade de Deus, que, depois do sucesso na tela grande, deu origem à série televisiva Cidade dos Homens, co-produzida (como acontece de novo, agora) por O2 e Globo.

Esse novo teste de simbiose entre cinema e tevê corresponde à tentativa de dissolver outras fronteiras. Desenvolvido no limiar entre a ficção e o cinema documental, Antônia propõe também uma fusão radical entre o cinema e a música. As quatro garotas que protagonizam o filme, Negra Li, Leilah Moreno, Cindy e Quelynah, são, de fato, cantoras e compositoras de hip-hop e/ou rhythm’n’blues. A maior parte do elenco é composta não de atores, mas de músicos de hip-hop ou outros gêneros (o sambista Thobias da Vai-Vai e a funkeira “de raiz” Sandra de Sá, por exemplo, interpretam os pais de Preta, a personagem de Negra Li).

A gravadora Universal, que outrora ajudou a revelar o músico Seu Jorge (mais tarde um dos protagonistas de Cidade de Deus), está lançando os novos discos de três das quatro artistas, Negra Li, Leilah e Cindy. As carreiras de Leilah e Cindy já estão a cargo da 3Plus, uma empresa agenciadora de música eletrônica de alcance internacional, cujos integrantes ajudaram a impulsionar nomes como o do DJ paulistano periférico de drum’n’bass Marky.

Diante de tais dados, a pergunta é inevitável: a cultura e a realidade social da periferia consolidam-se como produto de consumo, como grife em territórios antes só ocupados por marcas e corporações?

Tata Amaral, egressa do cinema independente paulistano, procura se equilibrar entre os valores sociais e de mercado: “Thaíde (músico pioneiro do hip-hop brasileiro e ator-revelação do filme) diz que Antônia não é legal só para a Vila Brasilândia, mas também para a moçada do rap, porque mostra que existe música, talento e vida na periferia, que estamos habituados a associar somente à pobreza e violência. A gente unifica muito, e não é verdade, muitos lugares da periferia são classe média baixa, são consumidores. Por outro lado, eles falam que todo branco para cá da ponte é playboy, e também não é assim. Tenho certeza de que funcionei como uma ponte”.

Fernando Meirelles também defende a linha fina entre a responsabilidade social e o apelo mercadológico de projetos como Cidade de Deus e Antônia. “Sinto que esta linha de filmes recentes tenta retratar o Brasil menos favorecido com uma abordagem mais humana. O cinema brasileiro sempre tratou desses temas, mas com uma mão ideológica mais pesada”, diz, tomando partido da própria opção estética. “Esses mais recentes tratam dos mesmos temas, mas com um olhar mais voltado para as experiências individuais. Não são filmes estritamente sobre sociologia, são também sobre psicologia.”

Ele justifica a entrada desses projetos na televisão, amplificada pelo poderio global: “Gosto muito de ver na tevê uma dramaturgia que fala sobre as periferias das grandes cidades de forma não estereotipada. Acho que a série trará grande identificação para a população de classe média baixa de São Paulo e, ao mesmo tempo, é bastante reveladora para quem mora na margem direita dos rios Pinheiros e Tietê”.

Em termos artísticos, a chegada ao ambiente ainda praticamente inexplorado do hip-hop feminino aprofunda uma guinada da Universal, uma gravadora que se tornou líder de mercado nos anos 90 explorando o pop sensual, festivo e despolitizado da axé music. De 1997 para cá, a Universal tem veiculado vertentes mais participantes da música de periferia, o que fez, por exemplo, ao revelar os grupos Farofa Carioca (de Seu Jorge) e AfroReggae e ao abrigar o hip-hop altamente contundente de MV Bill.

“Não sei se vamos conseguir, mas estamos tentando criar uma espécie de Motown brasileira”, afirma Max Pierre, diretor artístico da Universal, referindo-se à meca do pop negro norte-americano, que nos anos 60 revelou Stevie Wonder, Diana Ross e Michael Jackson, entre muitos outros.

“A música participante não aconteceu ainda no Brasil, mas isso é até acontecer. Não conseguimos até agora fazer essa ponte, mas a qualquer momento pode ocorrer. Tomara que seja aqui”, diz Pierre, ex-executivo da gravadora da Globo (a Som Livre), lembrando que ele próprio também é oriundo de subúrbios periféricos, de Minas Gerais e do Rio.

É fato que, no ambiente musical, ainda não se fez um sucesso comercial do porte de Cidade de Deus (que atraiu 3,3 milhões de espectadores) ou de Carandiru (4,7 milhões), de Hector Babenco. O CD Falcão, de MV Bill, vendeu até agora cerca de 10 mil cópias, mesmo com toda a repercussão (maximizada pela Globo) do documentário e livro homônimos. Nas palavras de Pierre, “não é uma venda que se possa desprezar”, mas ele mesmo lembra que não chega perto da bolha de vendagens estratosféricas dos anos 90, quando, por exemplo, o grupo baiano de axé Terra Samba “vendeu 3 milhões de cópias do primeiro disco, 50 mil do segundo e nada do terceiro”.

O clamor pela responsabilidade social agora se mistura às cifras de marketing e comércio, mas trata-se de uma preocupação que parte também dos novos líderes culturais que despontam dos subúrbios e favelas para o “centro”, segundo Tata: “A responsabilidade social é muito presente no discurso da periferia. Há uma consciência de que não basta reclamar, de que tem de apontar soluções. Eles conquistaram um discurso de superação, de solução, de esperança e isso impregnou muito Antônia. Vi que me comunicar com essas pessoas é privilegiar um discurso de superação, e descobri que o discurso de violência e miséria é um discurso da classe média, não deles”.

Músico de classe média que assina com o rapper Parteum as trilhas sonoras de Antônia no cinema e na tevê, Beto Villares é quem ensaia um diálogo positivo entre o marketing social e a responsabilidade social: “As meninas têm, na vida real, os CDs, o filme e a série ajudando-as a conquistar o que querem. Se por um lado pode ser um produto de consumo para os do lado de cá da muralha social, por outro podem ser o caminho para quem vem do lado de lá ter seu lugar no mundo e na música”.

Se é assim, conceda-se a palavra a Negra Li, que, como sua personagem, é moradora de Vila Brasilândia, já trabalhou como frentista de posto de gasolina e luta para conservar um nicho conquistado no difuso cenário atual da música brasileira. “O melhor de tudo, para mim, é fazer um filme de hip-hop na periferia, no lugar em que nasci, falando sobre as mulheres.”

Ela já reage a abordagens céticas habituais na mídia: “Teve uma discussão na Mostra do Rio, um cara de cinema falou ‘ah, por que vocês não falam de preconceito?’. Não, querido, não é isso que o filme propõe. Ele mostra o nosso dia-a-dia, para que as pessoas possam ver a periferia de uma outra forma, mais positiva”.

Mas o ponto crucial, para ela, parece ser o de sua auto-representação, seja no cinema, na tevê ou na música. De início, assume a própria inexperiência no âmbito musical, em parte transposta para o CD recém-lançado Negra Livre, que oscila entre o rap, o soul, a MPB e o pop americanizado:

“Hip-hop é minha filosofia de vida, com as batidas, o protesto. Mas sempre adorei as músicas românticas, sempre quis o lado soul também. Ficava no espelho imitando Mariah Carey e Whitney Houston. Não posso negar que minhas primeiras influências foram as americanas, depois (o parceiro) Helião me mostrou Cássia Eller, Jorge Ben Jor, Gilberto Gil… Aí fui conhecer Elis Regina, Leny Andrade, Baden Powell… Quero ampliar minhas referências, estou me conhecendo ainda. Meu CD fiz até onde sei. Eu não sei mais que isso, tenho 27 anos”.

Mais segura ela mostra-se no desejo de auto-representação como mulher, negra, de periferia, que procura enxertar melodia no ambiente duramente masculino do hip-hop. “Ninguém sabe da luta do pessoal que quer viver de rap. Poucas mulheres são divulgadas, Antônia vai ser muito importante para o lado feminino do hip-hop. Na tevê, também, existem muito poucas referências de mulher negra, por isso as meninas negras querem alisar o cabelo, ficar parecidas com a Xuxa. No filme serão quatro estilos para elas escolherem, não tem nariz fino, não tem aquele estereótipo europeu de beleza que se impõe.”

Tata Amaral, que vive o processo análogo de conquistar espaço para a condição feminina dentro do cinema nacional, dialoga com Negra Li, seja nos aspectos mais imaturos, seja nos mais maduros. “Segurei muito as meninas, tinha de dizer que não ia ter maquiagem nem salto alto, que a Preta não podia usar o tênis Puma da Negra Li. Elas são muito comprometidas com a imagem da mulher, do hip-hop, e eu tinha de explicar: ‘As personagens são as personagens, não são o que vocês gostariam de ser’.”

Por outro lado, aprendeu com elas conceitos que modificaram sua relação com a estilização da violência. “Eu sou uma pessoa que fala de violência nos filmes, ela é cinematográfica. As meninas é que diziam ‘nossa, Tata, pelo amor de Deus, tem de maneirar’. A violência no filme está muito filtrada pelo olhar delas. No convívio, você vê como se trata mesmo de um estigma atribuído, que associa automaticamente a periferia ao medo.” A diretora surpreende-se, então, ao constatar que o longa-metragem que filmou na Vila Brasilândia resultou no menos violento e mais delicado entre os três que já assinou.

Não é que Antônia deixe de falar sobre violência (inclusive a violência praticada por mulheres, que mal aparece em obras como Cidade de Deus ou Falcão), morte, preconceito, discriminação, segregação social. São temas que perpassam todo o filme, mas sob um olhar estritamente feminino, positivo, musical, desejoso de superação. Daqui por diante, resta descobrir como reagirão a esse novo olhar as antenas desabituadas da Globo, da Universal, do cinema brasileiro e da grande platéia brasileira.

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