então… mesmo sem querer, a cabeça da gente está ultimamente toda povoada de poroca, maroca e indaiá – são as três cantadeiras paraibanas cegas que deram um golpe de estado no documentário “a pessoa é para o que nasce” e construíram, junto com o cineasta golpeado roberto berliner, uma das coisas mais lindas destes anos lula nas telas brasileirinhas de cinema. a reportagem correspondente ficou bem bonita (modéstias à parte) e está na “carta capital” que está nas bancas (a nº 348). para fazer um complemento/contraponto, eis aqui um comentário crítico faixa a faixa sobre o cd com a trilha sonora – ou melhor, sobre metade dele, o volume 2, no qual vários nomes da música contemporânea brasileira reinterpretam a sabedoria musical das “ceguinhas de campina grande” (assim elas são tratadas na capa do primeiro cd que puderam gravar em vida severina), sob produção fina, precisa e moderna de lula queiroga, poeta pop pós-moderno made in pernambuco.
“atirei no mar”, com os paralamas do sucesso e bnegão. no filme, “atirei no mar” é o fio condutor musical das aventuras & desventuras de poroca, maroca e indaiá. a letra, na versão delas, é uma dura cacetada na ingênua impressão que se pode ter a priori, de que falta substância ao imaginário popular/tradicional/folclórico/atávico dos cocos a três da poroca, da maroca, da indaiá. “atirei no mar, o mar vazou/ atirei na moreninha, baleei o meu amor”, lamuria o refrão, fazendo o contato das cegas atávicas com o mito da visão (ou de sua ausência): o que vaza ali é o mar, não é o olhar cego de cada uma delas; na doce mitologia das três paraibanas, o olho vazado tem as dimensões gigantescas do mar. o rap-pop-rock-mangue-bit-carioca da versão toca o dedo na ferida, logo de cara, com as rimas cruas inventadas pelo ex-planet hemp bnegão: “a narrativa é punk e o calor é de sertão, irmão/ isso é panela de pressão pura”. isso é panela de pressão pura, cê tá escutando?
“abre a janela”, com mombojó. “acorda, formosa morena, vem ver como é linda a canção deste amor”, soluçam as três mulheres que não podem ver e chamam a morena da janela a vir ver por elas. “enquanto ela dormia em seu bangalô de flor”, os garotos pernambucanos do mombojó também fazem o mesmo, impregnando a musicalidade nordestina crua da canção de mimosos elementos de rock, de iê-iê-iê e, principalmente, da consistência de caldo de cana da cafonice popular brasileira – “abre a janela” vira um tema tortuoso de bordel, e a gente fica mais feliz assim.
“como é bom a gente amar”, com lenine. bem pernambucano, bem pré-pós-mangue bit, lenine cerze samples da voz firme de maroca, por entre as fibras tênues de uma simples e delicada canção de amor de “face mimosa”, “lábios cor de rosa”. maroca baila ao fundo, linda e fantasmagórica, sobre os risos soltos de poroca e indaiá (e também dela mesma): “primeiro marido, eu passei onze anos com ele… onze anos casada com ele… morreu. a minha filha ficou com cinco anos de idade. aí, agora, esse outro, eu passei só dois anos… aí se eu arrumar outro de novo, vai passar só um mês… ave maria, deus me livre”. e as três: “êêêita”, antes que volte lenine, um cavaquinho carioca em punho e a capa pernambucana patriarcal de um alceu valença ou de um luiz gonzaga sobre os ombros. “como é bom a gente amar”, conclui maroca, onipotente.
“segredinho”, com junio barreto. autor (re)descoberto no seio do mangue bit noventista, junio barreto transforma uma das mais belas melodias do trio em seca nordestina, em climão, em aridez sofrida & sofredora. do refrão vibrante fica só o esqueleto, “vou lhe contar-lhe um segredinho/ à tardezinha quando eu for embora”, por cuja inconclusão passeiam as carcaças de toda uma população, de toda uma multidão, de todo um admirável gado novo.
“siga e venha, siga e vá”, com bnegão. bnegão já avisara em “atirei no mar” que se está aqui tratando de coisa de “rapper, repentista, partideiro, cantador”. a misturança sacode a maravilhosa “siga e venha, siga e vá”, que segundo a filosofia secular de maroca é um coco alagoano, “quebrado”, “a minha fala”, “é alagoano”. o discurso de maroca, recortado pelas vozes segundas e terceiras das irmãs mais medrosas, está sampleado no estrondo de rap-repente modulado por bnegão, que pelas benesses da tecnologia inventa um rap em coro – em que as coristas, luxuosíssimas, são indaiá, maroca e poroca em pessoa (afinal, elas são para o que nasceram). os versos, proferidos pelas mulheres em sílabas realmente quebradas, são de vergar o torso, de tanta sabedoria-tristeza-melancolia-beleza: “há quatro coisas no mundo que eu não ensino a ninguém/ é passar no rio cheio, passar na frente do trem/ é amar quem não lhe ama e esperar por quem não vem”. quem viu o filme saberá: cientes de que melancolia é a felicidade de se sentirem tristes, as irmãs barbosa pouco se dão a seguir os conselhos que advogam – todas as três sabem bem do gozo de arriscar amar quem não lhes ama, esperar por quem não vem.
“laurinda”, com eddie. na levada miscigenada, a banda de mangue bit namora a bahia de lambadas, sambas-reggae e afrocubanismos – o arrepio das ancestralidades leva as cantadeiras à áfrica, ou traz a áfrica até ali ao lado, no sertão das paraíbas. “no dia que eu vi laurinda quase me dava um desmaio”, desmaia-se a cantoria das mulheres que, não vendo, vêem mais que oitocentos óculos.
“coco do leão”, com nervoso e canastra. a tensão se apodera de “a pessoa é para o que nasce”, quando o pop-rock carioca de nervoso e da banda canastra se transmuta de modo a parecer que zé ramalho, messiânico, fez um rasante de volta à sua paraíba natal. o agreste assoma e assusta em versos como “eu tenho raiva da morte/ que matou meu velho pai/ o povo mata e vai preso/ e a morte mata, não vai”, em que ruge o coco do leão. a vocação pré-los hermanos de nervoso comparece na segunda parte da canção, quando o coco vira um ska-rock acelerado.
“tamborim”, com teresa cristina e zé renato. “deixei meu tamborim lá no sereno/ o orvalho da madrugada molhou”, e teresa e zé protagonizam o primeiro momento de lirismo desbragado (embora não se compare, em intensidade, com o drama contido na matriz cantada em solo por poroca). principalmente por causa de teresa cristina, o ouvinte deleitado descobre que o samba carioca de raiz e o coco nordestino de de raiz são primos-irmãos apaixonados, doidos de amor um pelo outro como o tamborim pelo orvalho, o olho pelo glaucoma, a flecha pelo coração sangrado, o pirata pelo mar singrado.
“avião”, com lirinha. o menestrel do cordel do fogo encantado traz das entranhas do pernambuco de dentro a noção da relação também tempestuosa entre nós e as três cantadeiras: sua voz sopra fantasmagórica por cima das de maroca, indaiá e poroca, em alguns dos mais tristes e intensos versos de seu imaginário. “ó, menina, me diz por que é que a pedra do seu anel brilha mais do que o sol”, cantam as três, fazendo o nexo mítico com a lia de itamaracá de pernambuco e com a vista turva que deixa ver da luz não muito mais que lampejos do brilho cortante do sol.
“canção da despedida”, com otto. pernambucano cafuso de negro, índio e holandês, otto vai na valsa do mombojó e estabelece outro coco romântico de bordel de beira de estrada, de amor de fruto proibido nas vigas do cais, de tema de motel suburbano de roberto carlos, o pai brasileiríssimo de toda vista e de toda cegueira desta grande nação cheia de gente dizendo adeus. despetalam-se daqui alguns dos versos mais lindos do cancioneiro nacional, “a tarde quando declina/ é como a flor quando cai/ que se despreza do galho/ adeus para nunca mais”. numa nação que ainda cultiva a dependência (alô, mensalão) como fator de união da família, assombram de beleza e poesia as imagens cegas de que a flor não se desprega nem se desprende do galho de árvore frondosa – não, a flor se despreza da folha, a folha se despreza do galho, o galho se despreza da árvore, a árvore se despreza da terra seca. do brasil, resta a imagem glauberiana da lavra de maroca, de poroca, de indaiá, quanto à exploração [alô, mesada, alô, chantagem, alô, suborno, alô, ladroeira] pelos parentes sem cegueira, os videntes: “trabalha o feio pro bonito comer”, feio não é bonito, nara leão reencarnada na silhueta de três formosas damas antigas que, de feias, nem sombras possuem.
“noite enluarada”, com pato fu. mais nara leão rediviva, feio é bonito. a voz de fernanda takai preenche de meiguice e formosura a melancolia da “noite enluarada”, sob a qual “a minha sina é sofrer até o fim”. john ulhoa faz mirabolâncias pop no arranjo, e a constatação da paixão da cegueira pela visão vem em frases como “eu fico triste quando canto e não te vejo” e “és a mais linda das mulheres que eu já vi”. se falta a visão, os outros sentidos comparecem aos borbotões, no tato-olfato-paladar de “tu és a jovem que possui maior beleza”, “o meu desejo é gozar o teu amor” etc. e tal.
“moço, me dê uma esmola (vista grossa)”, com fausto fawcett, laufer e lula queiroga. em pique de funk carioca, dance music sulista e sla radical dance disco club brasileiro, os samples das tristíssimas vozes originais conduzem a convulsão, a subversão, a revolução. da letra original, sobram imagens chocantes: “ô, moço, me dê uma esmola/ não queira dizer que não/ favoreça a quem lhe pede/ está chegada a ocasião/ que você tem a luz dos olhos/ nós vive na escuridão”. mas, não, pós-“kátia flávia” e pós-“rio 40 graus”, fausto fawcett recebe um santo pós-“cabeça de porco” e dá à luz o pós-mendigo, o des-pedinte, o anti-dependente: “aí, não tem essa de pobre coitado/ pobre coitado é o cacete, eu não sou pobre coitado/ eu como, eu bebo, eu trepo [ah, disso as irmãs barbosa são provas plenas], eu leio, eu danço, eu amo [ih, idem], eu odeio, eu tenho sentimento geral igual a você, rapá!/ só que no meio da rua”. a constatação não é uma praga rogada, é antes o sino da sensatez: “se bobear, eu sou você amanhã”. o profeta se despede celebrando o “samba de porão” e revendo a bravura de jards macalé num “banquete dos mendigos” que sempre se avizinha e sempre tarda a chegar.
“era tarde”, com cabelo. também na claque glauberiana de sublinhar as tensões que cimentarão o abismo social, o poeta, músico e artista plástico cabelo cria cenário surrealista de faroeste bangue-bangue e ali finca a elegância e a nobreza dos vestidos de chita das cantadeiras agora hollywoodianas. era tarde, ou não era? terceiro mundo vai explodir?
“abre a janela e escuta”, com silvério pessoa. a janela ressurge aberta, moldura dos olhos em forma de olho de casa, as vistas embaçadas de maria, regina e conceição sonhando com o mundo lá fora, com o mar, com o mundão de meu deus (“êêita”). silvério pessoa, ex-cascabulho, atual cidadão do (outro) mundo, une europas e brasis na lindeza áspera e fatalista de que “mais vale a morte do que o desprezo/ já estou satisfeito, vou viver com deus”, lúgubre associação entre casamento & morte. insatisfeitas pela própria natureza, as três irmãs sobrevivem, sobreviverão, estão apenas começando. e o cd entorta, tão bonito fica nesta hora tão medonha.
“jurema preta”, com elba ramalho. única representante de gerações heróicas da mpb no cd, elba ramalho escapa de ser apêndice apartado e costura uma das mais pungentes releituras de toda a lista. o agreste paraibano que ela tão bem conhece cai sobre nossas cabeças com toda a crueza dos versos perturbadores da “jurema preta”, em que a(s) narradora(s) redistribui(em) suas mágoas e sai(em) pelo mundo a estralar “uma tapa” no “diabo da velha”, no “diabo do macaco”, no “diabo do valente”, no “diabo do soldado”. o lirismo, aqui, é o do ódio guardado no baú dos ressentimentos sociais, o(a) tapa na cara da sociedade mais cega que a cegueira das cegas dos grotões de “meu deu”. pois o cinema marginal não avisava que “o terceiro mundo vai explodir, quem tiver de sapato não sobra” (alô, rogério sganzerla)? destemida, elba-maroca-poroca-indaiá provoca, pororoca: “ô, tamanqueiro, eu quero um par, eu quero um par/ eu quero um par de tamanco pra eu andar”.
“inhame”, com lula queiroga. colada à versão mais espantosa do disco, a faixa do produtor das releituras se espalha entre cacto, carcaça de bode, raiz forte, assum preto: “quem nunca comeu batata não sabe o que é inhame/ (…) quem nunca foi na cadeia não sabe o que é vexame”. sabedeiras de todas as coisas da vida, as irmãs barbosa (& queiroga) jogam miolo de pão pelas trilhas do destino: “eu, como fui na cadeia, já sei o que é vexame”.
“as quatro coisas do mundo”, com bráulio tavares. eminência parda pernambucana por trás de lenines e lulas (queirogas), bráulio tavares recita sob um faroeste agreste, um western jabaculê, um sertão-vai-virar-mar do terceiro mundão sobre o primeiro mundinho. a utopia da visão aparece com toda fúria nessa raspa de tacho cosida pelas cantadeiras ancestrais: “tem quatro coisa no mundo que o mundo nunca pôde me ensinar/ qual é a cor desse céu, qual é a forma do mar/ o modo certo de ser e um jeito fácil de amar”. “eu nunca vi”, diria maroca…
“sinto no peito essa dor”, com pedro luís e a parede. os artífices plurais do monobloco fazem da cantoria popular paraibana um samba-enredo, um sambinha de roda, um sambão de rua, uma batucada entristecida. clementina de jesus chove suas bênçãos sobre maroca, poroca, indaiá, o sertão vai virar mar.
“dub blind”, com originais do sample. a brincadeira eletrônica vem encerrar o cd (nem precisava, pois eletrônicas as “ceguinhas de campina grande” já são, de dar choque). como brincadeira-bônus, o sambão jóia dos originais do samba é lembrado no viés, nos (des)originais do sample. o nordeste é coco é samba é brasil é mundão de meu deus.
copiado até a exaustão, o original deixa de existir e volta à terra como a soma de todas as cópias, (re)original de gelar a medula. o volume 2 da trilha de “a pessoa é para o que nasce” mata de dor&prazer, de angústia&alegria, de tristeza&felicidade, de melancolia&melancolia. mas soa como brinquedo de aprendiz se comparado ao volume 1, à lista das mesmas canções entoadas nos espantosos originais mil vezes copiados e reformulados de regina barbosa, maria barbosa, conceição barbosa. suas vozes se imprimem em nossos cérebros&corações, para nunca mais desgrudar – porque são o sopro vivo das vozes de nossas avós, de nossas mães, de nós mesmos. a amplidão do oceano está contida dentro dos suspiros de “êêita”, “errei, meu deus”, “ô, meu deu”, “hummmm”, “!!!” que saem a todo momento dos peitos das marocas, das porocas, das indaiás. nas três letras estendidas de “eta” cabe em toda sua extensão o próprio mundo, este potro chucro domado por poroca, maroca, indaiá.