O escritor João Moraes toca violão em um boteco de Vitória e bebe com um amigo

Pinguço, pau d’água, pé-de-cana, bebum, esponja, mói cana, garrafão, cachaceiro: os nomes abundam para tentar dar conta da liquefação do personagem que se aninha em torno da marvada desde pelo menos 1516, data que invoca o relato da primeira garrafa do líquido destilada na Feitoria de Itamaracá, ponto de instauração de Pernambuco todo.

O produtor, documentarista, compositor, cantor, escritor, primo de Sérgio Sampaio e bon vivant (e também pinguço, com muito orgulho) João Moraes lança em Vitória, Espírito Santo, nesta quarta-feira, 8, às 19 horas, no Centro Cultural Triplex Vermelho (Rua Sete de Setembro, 20, Centro), o seu romance Cachaça (Editora Cousa, 44 reais, 172 páginas), uma epopeia em 43 capítulos curtos, regida pelo mé e escrita em apenas um mês – algo facilitado por ter o autor realizado a pesquisa de campo ao longo de uma vida inteira de botequeiro juramentado. “Rodei por esses rincões afora construindo meus pequenos documentários e dando oficinas. Posso afirmar que a cachaça artesanal, bem ou mal tirada, sempre está presente”, conta o escritor. Com um ritmo literário que descende diretamente das costelas de João Antônio (1937-1996), o leitor se depara com um universo não de deserdados, mas de brasileiros de mundos esquecidos, monumentais pela singeleza, pelas vicissitudes humanas. “Não tem vida simples, não. Em lugar nenhum”, diz a prostituta ao cliente sonhador.

Pessimamente comparando, trata-se de uma versão da roça profunda do bestseller O Perfume, de Patrick Suskind, mas com os fluidos, os aromas, os cheiros e os efeitos da cachaça brasileira de botequim de fim do mundo como fios condutores da narrativa. Tendo o torresmo, o limão e a linguicinha como personagens coadjuvantes, a cachaça é o personagem principal e definidor da história, em seus princípios e efeitos. Não apenas cachaça boa, mas de todo tipo, e o perfume azedo que sai dos poros do bebedor ao final de cada jornada não é externo à história. Mas não é um inventário tecnocrático da bebida, é apenas o resultado de um infatigável menu degustação.

A viagem de João Moraes é, na verdade, uma jornada pelos interiores dos lugares mais remotos da vida rural do seu Espírito Santo (ou de Minas, ou do Paraná, ou de São Paulo), nos quais ainda há um cão velho sob uma árvore fazendo às vezes de relógio, um puxadinho no fundo da casa onde esqueceram uma radiola e três LPs com trilhas de radionovelas e o Gita do Raul Seixas, um homem sem uma mão que perdeu na pesca com explosivos, locais onde ainda se ouvem Marcio Greyck e Altemar Dutra como se fossem lançamentos.

História que se sabe fora do seu tempo e da classificação indicativa das novas regras politicamente corretas, Cachaça é um romance que faz a elegia de personagens desnivelados com sua época. Não quer ensinar nada, nem almeja mudar paradigmas éticos ou históricos, apenas retratar um universo que insiste em existir, à revelia da nova economia, das maravilhas disruptivas, dos desejos uberizados. “Queria escrever em flagrante delito. Mas sempre consigo nunca estar lá”, diz o escritor. Ilustrado com xilogravuras de Luiz Henriques Neto, o volume, a quem interessar investir algo mais do que só o gole pro santo, pode ser comprado neste link.

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