É um parque de diversões e seu nome é Ilha dos Prazeres. Você pode substituir por Lollapalooza, Tomorrowland, Rock in Rio, The Town, Coachella ou qualquer outro nome de festival dito musical, de acordo com as necessidades do momento, ao gosto do freguês. Você pode substituir por Distopia, se quiser ser mais direto e reto, pprt.

Este não é um texto em terceira pessoa ou destinado a terceiras pessoas. Escrevo estas linhas recém-chegado de um dia inteiro em Ilha dos Prazeres, depois de muitos e muitos anos sem comparecer a nenhum megafestival dito musical. Apesar de ser um jornalista direcioado à música pop na maioria de suas variações, alguma coisa nas últimas duas décadas me afastou completamente desse tipo de acontecimento e lugar. (Seria eu um fugitivo da ilha dos prazeres, um estraga-prazeres em potencial?)

Talvez, ingenuamente, sempre acreditei que meu afastamento se devia ao excesso de marketing, que me sufocava, somado à síndrome de vira-lata que envolve esse tipo de evento, invariavelmente pautado por parâmetros estadunidenses que sinto como, mais que sufocantes, irrespiráveis e nauseabundos. Nesse sábado que passou, do coração de Ilha dos Prazeres, percebi que tudo era mais complexo do que parecia. O excesso de marcas e a cafonice do north american way of life eram só a ponta do meu iceberg.

Por que resolvi voltar depois de tanto tempo? Na real, não resolvi. Apenas fui convidado por uma determinada marca que não vou especificar (o marketing, aquele que sufoca), e após alguma hesitação aceitei o convite.

Simpática e afável, a pessoa que intermediou essa minha viagem asseverou: o importante era que eu tivesse uma experiência inesquecível. Eu nem precisava citar a marca, se não quisesse. Aceitei, 100% confuso em relação ao meu papel no tabuleiro das vaidades: um digital influencer?, um jornalista-raiz (como ela, certeira e espirituosa, me classificou), um peixe fora d’água? Vejamos.

Minha primeira constatação é que as coisas mudaram bastante desde, digamos, o Rock in Rio de 2001, um dos que frequentei a trabalho, na cobertura jornalística “hard news”, desde o processo de montagem da então singela Ilha dos Prazeres de Jacarepaguá, os ensaios, as passagens de som, a carrapatagem nos ídolos gringos do momento, enfim a maratona de vários e vários dias de programação ininterrupta.

Apenas como efeito de nostalgia lembro que aquele de foi o festival em que Sandy & Junior comandaram a massa, “vamo pulá, vamo pulá, vamo pulá” (a massa obedeceu), e em que a saudosa Britney Spears se desentendeu com o playback (a massa vaiou). Não foi aquele em que o cantor preto baiano Carlinhos Brown tomou saraivada de garrafas d’água dos roqueiros nem que o folgazão Lobão tomou vaia ensurdecedora dos mesmos roqueiros – mas se não me falha a memória nesses eu estava também, homessa.

Noto de imediato que a infra-estrutura melhorou imensamente nesses anos todos. Não houve engarrafamentos no caminho nem assaltos ou arrastões na Ilha dos Prazeres do Autódromo de Interlagos, copyright Lollapalooza/Rock in Rio (hoje é tudo uma coisa só, os mesmos donos, tal como Skol = Brahma = Original = Lojas Americanas). Para efeito de nostalgia, lembro que o posto de delegacia onde tínhamos de ir fazer o boletim de ocorrência em 1991 ficava fora da ilha, a alguns vários quilômetros de distância.

Agora o perrengue é próximo de zero – seria zero, se não fossem a chuva ininterrupta e as lagoas (“interlagos”) de lama que no sábado fizeram parecer que os meninos e as meninas, ao chegarem em Ilha dos Prazeres, serão transformados não em burricos, mas em porquinhos, em little pigs. Mas, ora, isso é da genética dos festivais, o lodo é lodo desde que o rock é rock, desde Woodstock, se não desde Bedrock. Não reclamemos de detalhes tão pequenos.

Voltando ao assunto, a logística extra-lama é impecável. O Estado miliciano ex-tucanistanês cumpre com sua parte e oferece metrô e trem sem contratempos. É mais fácil chegar em Ilha dos Prazeres de Lolla que roubar um pirulito da mão de Gepeto.

Em vez de entregar o ingresso ou passar o bilhete pela roleta, basta erguer o braço e sacudir a pulseira. “Hands up!”, grita a moça com um alto falante na mão, sem precisar mover os lábios. Pamonhas, pamonhas, pamonhas, pamonhas de Piracicaba.

Em Ilha dos Prazeres, não se lida com dinheiro, em certos casos nem se precisa pensar nele. A pulseira faz o serviço, tudo é cashless (sem bufunfa, se ainda falássemos no velho e mortificado idioma portuga). É o paraíso, basta balançar a pulseira (se você ou Gepeto a recheou de criptomoedas verdinhas) e está aberto o portal mágico para sandwiches, soft drinks, beverages mais apimentadas, snacks, t-shirts com o logotipo de Pleasure Island ou – olha a música aí – de bandas de rock, rap, trap, funk etc.).

O deus cashless promete o paraíso: não haverá filas em Ilha dos Prazeres. De fato, não há espera para chegar, comer, beber, abastecer o cantil de água (grátis!), ir ao restroom e assim por diante. Tudo que nos contaram sobre Tucanistão era mentira: não, os paulistas não somos obcecados por entrar na primeira fila que aparecer à nossa frente.

Doce ilusão. Sim, há filas homéricas em Neverland, e como há. Elas apenas mudaram de foco: algumas se formam em frente à roda gigante, enquanto a maioria se arrasta que nem cobra pel chão em frente aos inúmeros estandes, lounges, casebres hi-tech, áreas semi-vip. Tucanistão segue sendo Tucanistão: as filas se formam diante de tudo aquilo que faz de Ilha dos Prazeres não uma ilha de prazeres ou um parque de diversões, mas um shopping center a céu aberto.

pinoquio

As filas são quilométricas em frente a toda e qualquer casinha que ostente uma marca reluzente e imediatamente reconhecível em sua parte superior. A gente não quer só cashless, a gente quer cashless, água grátis e brindes.

Meninas e meninos se posicionam em fila indiana (ou norte-americana?) diante de um espalhafato de marcas de sanduíches, alimentos ultraprocessados (embutidos, biscoitos fitness, snacks de isopor, barras de proteína), condimentos, sorvetes, refrigerantes, cervejas, whiskeys, telefônicas, fábricas de celulares e eletrodomésticos, cosméticos de matriz limpa amazônica, bancos, redes de TV, locadoras de carro, companhias aéreas, correios (?!?), megastores de roupas, preservativos, desodorantes, antiquadas maquininhas de débito e crédito. Um shopping center chic, exclusivo e blindado das intempéries do mundo lá fora, embora os pés estejam ficando atoladinhos no barro.

Sejamos específicos e deixemos de lado o tempo plural. Não são marcas, no plural. É uma de cada. É uma fábrica de carne moída, uma processadora de embutidos, uma cervejaria, um banco, uma rede de TV, e assim por diante. Se tem Sadia, não tem Perdigão. Se tem Rede Globo, não tem SBT nem Amazon Prime. Quem pagou mais no leilão da hora tem nome, identidade de marca e slogans a granel: Club Social, Hellman’s, Kibon, Coca-Cola (no setor das cocas e colas), Schweppes (do das águas tônicas), Vivo, Samsung, Boticário, Bradesco, Localiza, Latam, Riachuelo, Olla, Axe, Cielo… Não é a Casa do Norte Luizão, é o, argh, McDonald’s.

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Temos não um monopólio, mas uma holding, um caleidoscópio, um buraco-negro, uma gincana de monopólios. Não um big brother, mas um conglomerado de poucos & bons (bons?) pequenos grandes irmãos. Uma Distopia. Onde meninos entram meninos e saem jumentos entupidos de brindes até o pescoço, sempre em fila, sempre ordeiros & progressivos.

A propósito, os meninos-jumentos que frequentam Ilha dos Prazeres são (ou ficaram?) extremamente disciplinados, obedientes e bem-comportados. Aqui não há arrastão nem assalto a mão armada (cashless), e também não há gente caindo de bêbada, pirando de droguinhas ou drogonas, tirando a roupa, cometendo atos libidinosos ou outras transgressões comparáveis, gargalhando, dançando freneticamente ou chafurdando na lama com gosto e tesão. A Distopia é um reino frio, plano, monótono, pálido, automotizado, descarnado. Deslizamos em seu chão pastoso de chocolate feito zumbis, robôs algoritmados, figurantes de “Thriller”, cadáveres insepultos.

O shopping center desconstuído, customizado e gurmetizado a que se quer chamar de “experiência” é não apenas um shopping center, como é também estritamente idêntico ao reality show atualmente em cartaz nas TVs e smartphones (plim-plim!) – apenas as marcas variam. Um pandemônio de logotipos e slogans nos mantém acordados, com uma ou outra trégua para ouvir uma musiquinha (ou uma briguinha) nos intervalos.

Não temos que ficar cantando “é bom pra Karai é bom pra Karai é bom pra Karai” ou “bota pra girar no modo pedra bota pra girar no modo pedra” – aqui as mensagens a serem reverrberadas e propagadas por nós, burricos e burricas, são mais visuais do que auditivas.

Aliás, a diferença é facilmente compreensível. Aqui, diferentemente do BBB, a parte auditiva é a alma da festa: a música (a música?). Pleasure Island é uma experiência musical (uma experiência musical?). Uma experiência musical inesquecível (musical inesquecível)?

A música!, finalmente chegamos a ela!

As atrações musicais, nesse sábado chuvoso, não são assim uma Brastemp, uma anitta, uma pabllo, uma beyoncé. As expectativas não são tão altas nesse quesito. Holzier canta um folk de coral inspirado num “we are the world”, num “live aid”, num “chega de mágoa”, numa vovó benemerente qualquer dos megafestivais de hoje em dia. Limp Bizkit reproduz seu hardcore aeróbico, revolta a favor da máquina. Titãs renascem das cinzas para uma platéia majoritariamente formada por sobrinhos-netos. E não há muito mais que isso, em termos de rock’n’roll.

Musicalmente, o megafestival hoje é muito mais negro do que branco, muito mais rap e trap e funk que punk, pós-punk ou pós-pós-punk. Xamã e Kevin O Chris trazem banda (além do indefectível balé, mesmo que o artista resolva fazer uma releitura de “meu mundo caiu/ e me fez ficar assim/ você conseguiu/ e agora diz que tem pena de mim”) e fazem shows com cara de shows. A animação é bem maior no palco estroboscópico, o único dos quatro disponíveis a ser 100% dedicado à música eletrônica de DJs.

Nos palcos à moda antiga, um elenco predominantemente negro canta para um público majoritariamente branco (e cashless). É engraçado (é engraçado?) observar na plateia brancos que entoam em coro refrões langorosos de uma diva rhythm’n’blues convencional e rimas trava-língua de um rapper intrincado.

Kevin agradece nominalmente a cada familiar e amigo que o ajudou na longa caminhada para “chegar até aqui” (palavras do imaginário, não utilizadas por O Chris). Xamã canta e conta o tempo em que camelou como camelô antes de “chegar até aqui” (idem). A “experiência”, para a plateia, é bem distinta daquela que trouxe os artistas negros “até aqui”. Os medleys de funks antigos de Xamã e Kevin O Chris divertem, embevecem e confundem espectadores que no outro reality show torceram por Yasmin Brunet.

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Estabelece-se uma dissonância, uma dissociação cognitiva coletiva. Lá no alto, a publicidade está antenada (com cinco séculos de miserável atraso) com a premência dos discursos inclusivos, reparadores, identitários (por mais que reacionários de todo o espectro político detestem o que se esconde por trás dessa palavra). Cá embaixo, o poder aquisitivo do público ainda não chegou à equiparação para pretos, indígenas, mulheres, travestis, transexuais, gays etc. etc. etc.

Ilha dos Prazeres, com toda sua colorida e reluzente diversidade, ainda é um lugar pensado (pensado?) ou construído para um ser imaginário (um robô?) branco, jovem, heterossexual, masculino e rico, quando muito para uma jovem mulher heterossexual branca e rica. A dissociação é uma dissonância é uma distopia.

Desta “experiência”, alguns entrarão meninos e sairão jumentos, outros chegarão meninos e sairão meninos 950 vezes seguidas. Uns chegarão meninos e voltarão adultos daqui a 15 anos, certos azarados entrarão adultos e não voltarão quando estiverem velhinhos. (Há também quem já tenha chegado jumento, e não se trata de uma minoria marginalizada.)

A distopia, aprendo desta vez, é atochada de marcas e slogans e essencialmente antimusical. A Ilha dos Prazeres foi feita para você (eu, a gente) consumir, consumir, consumir, consumir. Não há CDs ou discos de vinil em Neverland, pobre Michael Jackson.

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A distopia é giratória e não tem hora para acabar. Mas pode acabar a qualquer momento, num apocalipse ou se Pleasure Island, além de tudo que é, for também um filme de Hollywood ou uma série de qualquer uma das flixes que compõem o mesmo aparato repressor, opressivo, autoritário e totalitário de que estou falando há 31 parágrafos. A distopia é bem mais foda que a bossa nova.

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