O espaço do festival ReciclArte, às margens do lago Ypacaraí, no Paraguai - foto: Rodrigo Teixeira

Conceda dez segundos para a pessoa citar o nome de um artista da música do Paraguai e, provavelmente, em especial se for do Brasil, um enorme branco será a resposta. A realidade é que na “Terra Brazuca” não se tem notícias sobre músicos, compositores, cantores ou bandas do país hermano vizinho que faz fronteira com os estados de Mato Grosso do Sul e Paraná. No entanto, algumas inciativas em solo paraguaio começam a diminuir a insistente invisibilidade da cena artística do Paraguai não só no Brasil, mas também perante outros países sul-americanos e de outros continentes. É o caso dos recém-realizados G5 Conexiones e Pilsen ReciclArte 2023.

Convidado para participar e acompanhar os dois eventos, um grupo de produtores, jornalistas e trabalhadores da cultura mergulhou por quatro dias na contemporaneidade do Paraguai. Primeiramente na capital paraguaia, Assunção, em 27 e 28 de setembro, um encontro entre agentes da indústria da música com mesas redondas, debates e um seminário dedicado ao jornalismo musical e à comunicação cultural. O pano de fundo de todas estas discussões foi o meio ambiente como impulsionador de desenvolvimento sustentável, já que o ReciclArte é um festival que desde o nome traz a preocupação ecológica para o centro.

Na sequência, dias 29 e 30, após o almoço, o mesmo grupo foi levado a San Bernardino, cidade que fica aproximadamente a duas horas de Assunção. É lá que aconteceu o ReciclArte, em um lugar emblemático, o Anfiteatro José Asunción Flores. A impressionante arena a céu aberto tem capacidade para 20 mil pessoas e fica à beira do lago que, provavelmente, é a referência paraguaia mais conhecida em todo mundo, graças à guarânia “Recuerdos de Ypacaraí”, de Zulema de Mirkin e Demetrio Ortiz, uma das músicas sul-americanas mais regravadas, com versões em vários idiomas, inclusive a da dupla caipira paulista Cascatinha e Inhana, em português, de 1956.

“Senti que o ReciclArte é um evento que traz uma diversidade importante, tem uma programação de qualidade e é um festival que abre espaço para trabalhar a identidade local. Um exemplo foi o show do Flou, grupo do Paraguai, que teve a participação do Ricardo Flecha, um cantor paraguaio que convocou todos para cantar o hino ‘Índia’, com todo o público escutando e cantando junto”, descreve o jornalista argentino Humphrey Inzillo (@hinzillo). “Também adorei o anfiteatro. Não conhecia. Me lembrou o Teatro de Verano, de Montevidéu, no Uruguai, mas quatro vezes maior. Também dá para sentir a amabilidade paraguaia, tanto dos organizadores quanto das pessoas em geral”, completa Humphrey, um dos jornalistas mais influentes da música sul-americana, editor da revista Rolling Stone argentina (@rollingstonear) e fundador da Redpem (Red de Periodistas Musicales de Iberoamérica), além de escrever para revistas e jornais de vários países, ser autor de livros sobre a música argentina, co-produtor do tributo aos Mutantes El Justiciero Cha Cha Cha (2010), e muito mais.

O fato é que o ReciclArte, realizado desde 2014, é um dos eventos artísticos mais populares do país e se autodenomina “o festival mais querido do Paraguai”. Em dois dias, foram vendidos 33 mil ingressos para assistir a 23 shows de artistas de vários países, entre eles alguns veteranos, como os mexicanos Café Tacvba (@cafetacvba), os argentinos Los Tipitos (@tipitosoficial) e os uruguaios No Te Va Gustar (@notevagustaroficial) e Cuarteto de Nos (@cuartetodenosok). Foi possível também presenciar a diversidade e alta qualidade da música argentina, com performances furiosas das bandas Eruca Sativa (@eruca_sativa), de Córdoba, e Guauchos (@guauchos), de Formosa.

“Não imaginava que o público paraguaio fosse tão roqueiro. O que vi foi uma estrutura impactante e a plateia fazendo uma celebração do rock indie sul-americano, com todos sabendo as letras e cantando junto. No Brasil é bem diferente. Por aqui, me parece que os países se frequentam mais”, ressalta Felipe Gonzalez, brasileiro de São Paulo, diretor da Difusa Fronteira (@difusafronteira) e do Festival Mucho (@festivalmucho) e um dos produtores que, nos últimos anos, mais têm fortalecido os laços entre os artistas do continente e estreitado a distância do público brasileiro com artistas de outros países da América do Sul, assim como levado músicos do Brasil para outras terras sul-americanas, como Lenine (de quem é booking na América Latina) e Francisco, el Hombre (de quem é manager).

Além de Felipe Gonzalez, outros brasileiros também estavam na trupe convidada para a viagem ao Paraguai. Por exemplo, Vander Lins, coordenador de programação e projetos especiais da secretaria municipal de São Paulo, responsável pela Virada Cultural (@viradacultural), e Talles Lopes, co-fundador e editor da rede de comunicação livre Midia Ninja (@midianinja). Ambos pela primeira vez em terras paraguaias, assim como o gaúcho Lucas Hanke, que é cantor e guitarrista da Cromatismo de Sensações e baixista do DeFalla, fundador da produtora Marquise 51 (@marquise51) em Porto Alegre e produtor dos festivais MorroStock (@morrostock) e Llisergia (@festivallisergia).

“Nunca tinha vindo para o Paraguai, o que mostra a importância deste evento G5 Conexiones, com tantos programadores de festivais reunidos, para a formação cultural de todos os participantes. Existem novos artistas aqui no Paraguai e isso precisa chegar ao resto do mundo. Precisamos visualizar o Paraguai como rota de shows, e não só a Argentina e o México”, afirma Lucas. Depois de dois dias perambulando pelo Anfiteatro José Asunción Flores e vivenciando várias apresentações no ReciclArte, ele ressalta: “Este lugar é incrível, proporciona uma visão única para a plateia. O festival tem uma programação intensa, com bandas emergentes e consagradas. Achei muito legal como o rock é forte no Paraguai. O brasileiro precisa descobrir isso. A grande saída é para a América Latina”.

Lucas ressalta que os brasileiros deveriam colocar o Paraguai na rota de seus shows, e é inevitável notar que na programação do ReciclArte o único artista que poderia ser considerado brasileiro é Altamirano, que tem sangue gaúcho correndo nas veias, mas tem trajetória bem mais ligada ao Paraguai que ao Brasil. O fato mesmo é que praticamente nenhum artista brasileiro da atualidade, ou mesmo de gerações anteriores, teria condições de se apresentar em festivais como ReciclArte e Asunciónico, no sentido de o público reconhecer suas canções e cantar junto, como acontece com bandas de outros países sul-americanos. Artistas como Ney Matogrosso e Lenine nunca se apresentaram em terras paraguaias, e este é um tema que vale um artigo separado para aprofundar a discussão.

O público toma o Anfiteatro José Asunción Flores, de 20 mil lugares, na cidade de San Bernardino, a duas horas da capital paraguaia, Assunção – foto: Rodrigo Teixeira

Algo que chamou a atenção no ReciclArte realmente foi a recepção calorosa do público com os artistas conterrâneos. Apresentações do coletivo cultural Ndaipori Frontera & Ñanderap (@ndaiporifrontera) e da banda Villagrán Bolaños (@vbolanhos), por exemplo, foram muito aplaudidas. Também foram especiais as aparições de artistas veteranos como Ricardo Flecha (@ricardoflecha.hermosa), Francisco Russo (@francisco.russo.oficial) e Juan Câncio Barreto (@juancanciobarreto) nos shows das bandas Flou (@floumusic), Nestor Ló & Los Caminantes (@loscaminantespy) e Altamirano (@altamiranopy). Momentos que deixaram evidentes a forte ligação da plateia paraguaia com os artistas do próprio país e de que existe um repertório paraguaio conhecido de composições autorais.

A banda paraguaia Nestor Ló & Los Caminantes se apresenta no ReciclArte 2023 – foto: Rodrigo Teixeira

O G5 Conexiones conseguiu colocar cara a cara com a música paraguaia produtores de vários festivais internacionais. Em uma rápida consulta, cheguei a uma lista de 15 festivais produzidos por integrantes do grupo, entre eles, Stefan Schuter do Deepdive Music (@deepdive_music), na Suíça; Tina Wrobleskide, do Global Toronto (@globaltoronto), no Canadá; Claudia Pereira, do Chile Anway (@chileanweyfestival); e Vera Wrama, do Bime (@bimenet_), que acontece nos próximos dias 25 e 28 de outubro, em Bilbao, na Espanha. O evento também trouxe para o Paraguai gestores de cultura, como os argentinos Graciela Marechal, diretora de ação cultural de Formosa, e Joselo Schuap, secretario de cultura do governo de Misiones – são duas províncias da Argentina que ficam mais próximas de Assunção do que Buenos Aires.

O brasileiro Éder Rubens, gerente de cultura de Ponta Porã, cidade sul-mato-grossense que faz fronteira seca com Pedro Juan Caballero, no Paraguai, também marcou presença. “Toda esta vivência por aqui superou as minhas expectativas. Temos o espaço livre para inserir mais o Brasil neste intercâmbio com o continente a partir do Paraguai. Tivemos debates de alto nível com pessoas envolvidas nas gestões culturais de seus lugares. Somos a porta de entrada para o Brasil para todo este movimento e estamos aqui construindo este intercâmbio de forma prática. Já estamos pensando em eventos conjuntos para realizar em Ponta Porã”, adianta Éder, que é também radialista e comanda há 19 anos o Hora do Rock, programa que vai ao ar aos sábados na Nova FM.

Uma das pessoas-chave que está na condução de todo este processo é José Samaniego, o Sama. Ele é diretor da G5Music e da Hendu, produtoras que estão à frente do G5 Conexiones e do ReciclArte. Sama é quem está circulando pelos principais festivais do mundo e conectando toda a turma de produtores e gestores que foi convidada a estar no Paraguai. Também ajudou a criar o Circuito Cultural Guarani (@circuitoculturalguarani), uma associação internacional de produtores e ativistas culturais que reúne importantes agentes da região guaranítica, território que abrange o Paraguai, a Argentina e o Brasil e que comunga de uma mesma cultura em que a erva mate, o idioma guarani e os ritmos fronteiriços da polca, da guarânia e do chamamé são adorados. Integrantes do Circuito Cultural Guarani estavam também presentes nos eventos, como o atual diretor da associação, o paraguaio Oscar Mosqueira. Os dois, Sama e Oscar, estão entre os novos produtores e agentes culturais do Paraguai que estão fazendo a diferença.

Para mim, que desde 2004 acompanho a cena cultural do Paraguai, o que parece é que o país ganha protagonismo na região, atraindo para Assunção parceiros próximos do Brasil e da Argentina que se reconhecem mais na capital paraguaia do que nos grandes centros de seus respectivos países, como São Paulo e Buenos Aires, por exemplo. Também é evidente que o Paraguai passa por processos culturais de amadurecimento, como a tentativa de tornar Patrimônio Imaterial da Humanidade a guarânia , gênero que em 2025 vai completar cem anos de criação. Não dá pra esquecer que o Paraguai se livrou de um longo período de governo ditatorial em 1989 e que somente agora, três décadas depois, é que o país começa a ter uma história continuada, com seus protagonistas reconhecidos pela população e uma auto-estima que faz com que a capital paraguaia ganhe destaque como liderança.

Esta experiência no G5 Conexiones e no ReciclArte mostrou que o caldo está fervendo nas bandas do Paraguai e que a temperatura vai aumentar ainda mais. Se uma chamada cultural for feita entre os países do continente neste instante, a certeza é que a resposta será “Paraguai, presente!”.

Mais informações:
@conexiones.periodismomusical/
@reciclartepy/

Rodrigo Teixeira é jornalista gaúcho radicado em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, pesquisador e autor dos livros Os Pioneiros – A Origem da Música Sertaneja de Mato Grosso do Sul (2010) e Prata da Casa – Um Marco da Cultura Sul-Mato-Grossense (2016). Como músico, assinando-se RodTex, desenvolve trabalho solo e toca no trio Hermanos Irmãos, com Jerry Espíndola e Márcio de Camillo, e do Clube do Litoral Central com outros músicos de Campo Grande.

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