Tem poetas que já nascem imensos. A poeta paranaense Mayara Blasi, de Maringá (PR), acaba de publicar seu primeiro livro, Apenas Começamos (Editora M.inimalismos, 55 págs), e parece que sempre esteve por aqui.
Da linhagem de Ana Cristina César e Angélica Freitas (ou um pouco também de Adélia Prado), a escritora faz uma literatura de desconcertante simplicidade, usa palavras desafetadas e descarnadas como instrumento, com um resultado que às vezes é pura vertigem. Problema é que, ao emprestarmos as palavras de uma poeta para defini-la, dá a impressão de que a estamos roubando. Mas vamos lá – quem sabe a fórmula não esteja nos próprios folhetos da autora que acompanham o livro?
caminhar sob uma linha traçada no chão/como se percorresse um muro alto/(sortear a perna do primeiro passo)
Mayara perdeu a mãe recentemente. Ao mesmo tempo em que a mãe morria, doente, ela se descobria grávida do primeiro filho. Morte e nascimento num mesmo diapasão, a matéria-prima que ela não tinha pedido à Providência, mas não teve alternativa. O livro é urdido nesse espaço, do respiro entre anotações, post-its, zaps e textos em blog.
como escrever a morte o luto a perda o inferno que é/o céu existe atrás do céu
Na alternância entre extrema-unção e a reorganização da vida, Mayara reinventa seu jeito de se deslocar no mundo. Há uma revolta que ela tenta equacionar, mas não domar ou dopar. Não é do acaso a presença da citação da autora escocesa Ali Smith na abertura do livro (“Depois que você viu não tem como não ver”).
quando a pessoa está esquecida está esquecida/ela perde sua força vital/não escova os dentes/pode ser que deixe farelos de pão nos cabelos/por dias/porque não percebe ou se esquece/isso é quase o mesmo
Há uma cidade em meio aos poemas, uma Avenida Rio Branco, empadas veganas, Frango na Brasa. Há uma poeta que resiste em meio à indiferença da literatura de comércio, aos funis literários, aos ranços da província. Nessa correnteza do contra, Mayara abriu oficinas de escrita, clubes de leitura, um comércio clandestino de versos e feitiços. Tem gente que de tanto ensaiar nunca fica bom. Ela preferiu o front.
deixar que o homem da concessionária de trânsito segure/o bebê nos braços sujos aumentar esse gesto pra escala/necessária ele também tem uma bebê de cinco meses/estão indo pra onde?
No escalonamento dessa circunstância de morte-nascimento, a literatura boia num lusco-fusco, num chiaroscuro que ilumina o estado de espírito da autora, à beira da entrega, na faísca da resistência. “na hora da morte/há séculos/não tem bonito/depois até que/escrever este texto sendo sincera/é uma tentativa de fazer um texto bonito/quer dizer/primeiro uma chance de criar conforto/não importa o jeito/não precisa publicar este texto”.
A poeta é mulher porque sabe de coisas exclusivas, e é poeta porque busca saber o motivo dessas coisas exclusivas. “depois que li me dei conta:/eu estava errada sobre a importância de cimentar história/através da escritura/narrar-se é só um detalhe/muito mais importante é estar vivo/olha”
apenas começamos custa 45 reais, e pode ser adquirido no site da editora.
Abaixo, um poema do livro:
sua casa ainda aqui
lembro quando descobri
um tanto decepcionada
que o cheiro da casa da minha mãe
era o cheiro do amaciante que ela usava
brisa do verão, diz a embalagem
comprei o mesmo
mas minha casa não cheirou como a dela
e agora nem a dela
que tá feita da falta do cheiro
do pão que ela assava
do shampoo, sabonete, batom
daquele creme antissinais
o mesmo por anos
da pele dela no pescoço e nos braços
dos remédios
da pele no rosto e nas mãos
a casa dela cheira a falta
ainda compro o amaciante da mesma marca

