
Mesmo levando em consideração algumas capitais que tiveram estimativas controversas divulgadas por entidades que (repentinamente) parecem ter assumido a reserva de mercado de contar multidões, como o chamado “Monitor da USP” (que não é da USP, mas financiado por uma associação privada), não é preciso muito esforço, nem jornalístico nem contábil, para inventariar o público total nas manifestações deste domingo, 21 de setembro. Milhares de pessoas foram às ruas em 27 capitais do País, e somando-se os números estimados por diferentes instituições (desde a clássica contagem da Polícia Militar até os arredondamentos dos organizadores de cada manifestação), FAROFAFÁ chegou ao patamar aproximado de 350 mil pessoas.
Considerando-se o afluxo espontâneo de público, a diversidade de participantes e instituições representadas, o amplo espectro social e político (em São Paulo, estavam entre a multidão a deputada Tabata Amaral e o apresentador Paulo Vieira), os protestos se constituíram em um fenômeno social e político de raro paralelo na política recente. O “Monitor da USP” estimou em 42,4 mil a multidão na Avenida Paulista, em São Paulo, e em 41,8 mil o número de manifestantes na praia de Copacabana, no Rio. Outras capitais menores, como Recife e Belo Horizonte, reuniram 50 mil e 20 mil, respectivamente, segundo órgãos de imprensa local (a reportagem também buscou fontes como a Polícia Militar e as lideranças dos protestos). Brasília reuniu aproximadamente 30 mil pessoas, assim como Fortaleza. Curitiba teve 15 mil participantes, e Porto Alegre outras 14 mil. Maceió e Manaus reuniram 10 mil pessoas cada, assim como Goiânia e Vitória. Em Florianópolis, 5 mil pessoas foram às ruas, segundo autoridades locais. Belém e Rio Branco tiveram estimativas de 5 mil cada uma, assim como Porto Velho. Cuiabá chegou a ter uma estimativa de 3 mil participantes.
Salvador não teve uma contagem, mas o afluxo de público se assemelhava ao Carnaval do trio elétrico de Daniela Mercury (que também estava no palco com os manifestantes, assim como Wagner Moura), uma estatística que pode ir de 30 mil a 60 mil pessoas. “Grupos de esquerda se manifestaram na cidade de Salvador ‘em defesa da democracia'”, assinalou o onipresente “Monitor da USP” em um dos seus estudos sobre o ato de Salvador. Pela força das evidências, a experiência de correr atrás de cordeiros em outros carnavais do Farol da Barra, preferimos ignorar esse parti pris.
Em algumas capitais, não foi possível encontrar estimativas (nem mesmo chutes), mas os registros mostrados nas redes sociais permitem adotar como regra um número mínimo de participantes para cada uma delas: mil pessoas em cada. Foram os casos de Natal, João Pessoa, Aracaju, Teresina, São Luís e Campo Grande. Aceitando-se toda a estatística das manifestações, das subestimadas às superestimadas, chegamos então ao número médio de 350 mil pessoas – quase dez vezes mais do que a manifestação da extrema direita do dia 7 de setembro (ato em prol da impunidade dos golpistas). Isso explica, em parte, a apressada declaração do presidente da Câmara, Hugo Motta, dada nesta segunda-feira no calor da hora: “É hora de tirar da frente todas essas pautas tóxicas”, disse Motta, um dos alvos preferenciais dos protestos e virtual candidato na Paraíba, seu estado natal.
O debate em torno do número de manifestantes é importante porque tentar estigmatizar o que aconteceu domingo como “manifestação de grupo” só serve ao esvaziamento do seu sentido político e de cidadania. Se toda a indignação da sociedade pode ser definida como “ato de grupelho”, é evidente que logo surgirá alguém que invocará um sentido moral superior para postular a supremacia política e social. Os atos contras as PECs da Bandidagem e da Anistia nasceram de indignações espontâneas, como a de Caetano Veloso (“a gente tem que ir pra rua”), que acabou reunindo em Copacabana o coração da clássica MPB: ele, Gilberto Gil, Chico Buarque, Paulinho da Viola e Djavan. Foi como se estivessem sendo atadas as duas pontas de uma questão irresolvida: a da anistia aos torturadores e ao Estado assassino que se instalou no Brasil em 1964, e a que os colocou em confronto com o nonsense do autoritarismo bolsonarista.
O Monitor do Debate Político no Meio Digital, segundo informa seu site oficial, é financiado por um instituto mantido pela escritora e filantropa Beatriz Bracher (filha do banqueiro Fernão e irmã do presidente do Itaú). Suas estimativas de público são feitas com o uso de um software que utiliza IA na análise de dados fotográficos dos eventos. O verniz tecnocrático revela-se uma armadilha ética porque, se se questiona o resultado, é “achismo”, “polarização” ou “empirismo”.
“Nosso foco é compreender a polarização política, o extremismo e a circulação de desinformação no ambiente digital, com base em dados empíricos e análise crítica”, diz o site do Monitor. Partindo de um pressuposto equivocado, a tal “polarização política” (que polarização existe entre um grupo que pretendeu dar um golpe de Estado e blindar criminosos com mandato e um amplo espectro em defesa da democracia?). FAROFAFÁ se insurge contra essa aparente contingência: a pulsão de uma Avenida Paulista lotada em defesa da legalidade não será jamais negada por um desejo da burocracia maquinista. Em vez de escrever “fontes afirmam que está chovendo”, o jornalismo sempre pode colocar a mão para fora da janela e afirmar: “Chove”.