Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso, de Felipe Hirsch, é uma peça de difícil compreensão, e é nisso que reside sua beleza. Fragmentada, com cenas que aparentam não dialogar entre si e que, ao mesmo tempo, formam um caleidoscópico generoso da mais famosa avenida de São Paulo. Em três horas de duração (tempo visivelmente esticado para dar conta da grande trilha sonora), personagens anônimos circulam pelas calçadas, entre apressados, desorientados e vislumbrados com a grandiosidade do que vêm. Já o público atua como voyeur, que observa a tudo discreta e passivamente.
O espetáculo estreou em 15 de fevereiro e cumpre temporada até 29 de junho no Teatro Sesi-SP, no icônico prédio do capital industrial paulistano, a toda poderosa Fiesp. Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso fará chover por 18 minutos, um momento cênico digno de registro. A água desaba do teto direto para um gradil que corta o palco de de uma ponta a outra e escorre para o porão, enquanto os artistas contracenam se molhando de verdade.
Daniela Thomas e Felipe Tassara ousaram em recriar um prédio de três andares, que remete ao também icônico Conjunto Nacional. Ele forma uma suntuosa instalação cênica (de mais de 10 metros de altura), e é lá que atores e músicos se revezarão para dar mais uma dimensão narrativa ao espetáculo. A vida que apressadamente não vemos ao caminhar pela Paulista está lá, com histórias múltiplas, algumas divertidas, outras tristes e a maioria que poderia estar acontecendo em qualquer outra parte. Este é o segredo oculto de Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso: há muita pulsão de vida em pequenas histórias que entrecruzam o espigão paulistano.
Um homem perde o emprego e sente vergonha de voltar para casa, ludibria-se com o malandro golpista da avenida e põe tudo a perder quando é surpreendido pela família. A messiânica evangélica promete um pouco de tudo para os passantes da Paulista, porque sabe que lá terá a plateia para o que precisa. A influencer faz uma divertida live, num dos apartamentos do edifício, que é capaz de vender até a mais improvável panaceia. Em um mundo de solitários, faz todo o sentido.
O elenco conta com atores experientes, como Fernando Sampaio, Georgette Fadel, Marat Descartes e Roberta Estrela D’Alva, que contracenam com Amanda Lyra, Aretha Sadick, Fabio Sá, Gui Calzavara, Helena Tezza, Heloisa Alvino, Jocasta Germano, Julia Toledo, Kauê Persona, Lee Taylor, Lello Bezerra, Negro Leo, Thalin e Verónica Valenttino.
E há a música, que recorta o espetáculo. Felipe Hirsh convidou 15 compositores para compor canções inéditas para Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso. No encarte, o dramaturgo afirma que é um “declarado fã” dos compositores musicais. A trupe convidada é de peso: Assim, Alzira E., Arnaldo Antunes, DJ K., Kiko Dinucci, Jéssica Caitano, Juçara Marçal, Maria Beraldo, Maria Esmeralda, Maurício Pereira, Negro Leo, Nuno Ramos, Rodrigo Campos, Rodrigo Ogi, Romulo Fróes e Tulipa Ruiz.
Durante quatro meses, Hirsh fez pesquisas de campo pelos 2,8 quilômetros da Avenida Paulista. Filmou, gravou e fotografou o que viu nos quarteirões da via para depois, com Caetano Galindo, Guilherme Gontijo Flores e Juuar, que assinam o musical conjuntamente, compor a dramaturgia que não terá personagens que ajudem a contar uma única história. E se trata de uma declaração de amor. O encenador afirma: “Imperfeita, cheia de repressões, mas democrática o bastante para centrifugar um suco de surrealismo de fazer inveja ao Buñuel. Então sigo aqui, ouvindo sirenes de ataque aéreo ao meio-dia [irradiado do prédio da Fundação Cásper Líbero], britadeiras às três da manhã, o vidro da janela tremendo com protestos, com paradas, com a história”.
A peça musical tem um sentido especial para Felipe Hirsh: há 20 anos, ele estreou a bem-sucedida Avenida Dropsei, que era baseada nos quadrinhos do cultuado norte-americano Will Eisner. De certa forma, ele repete a fórmula que deu certo, o de construir um mosaico de personagens que são ignoradas pela maioria, porque ninguém tem tempo para parar e conversar com o outro.
A falta de uma dramaturgia transforma a peça em flashs urbanos que se arrastam e se repetem em 180 minutos de duração. Pretensão e cansaço do espectador dão a tônica do espetáculo. Avaliação: 1 estrela.