“Me culpam por ser ruim/ eu sou só um monstro que vocês criou”, constata “Madrugada É Solidão”, segunda faixa do recém-lançado ábum Liberdade, o primeiro do controvertido trapper carioca Oruam, que completa 24 anos neste 1º de março. A estreia acontece sincronizada com duas prisões do artista, uma em 20 de fevereiro, por “direção perigosa”, (ao ser detido numa blitz na Barra da Tijuca), e outra no dia 26, por “favorecimento pessoal” (cumprindo um mandado de busca e apreensão, a polícia encontrou em sua casa um foragido procurado por organização criminosa). Liberdade foi lançado nas plataformas digitais entre esses dois episódios, no dia 21.
No dia da primeira prisão, o perfil de Oruam no Instagram publicou foto do artista dentro da viatura, com as mãos para trás – uma foto com retoques de qualidade artística, em preto e branco e aparentemente posada. Poucos dias antes (mais uma coincidência sincrônica), começaram a se espalhar por Câmaras Municipais do país, sob iniciativa de vereadores de partidos como PL, Novo e PSDB, propostas de leis repressivas contra artistas envolvidos com a chamada “apologia ao crime”. Foram logo batizadas, coletivamente e no singular, de “Lei Anti-Oruam”.
Rápido, o trapper batizou exatamente desse modo ostensivo a quarta faixa de Liberdade: “Lei Anti-O.R.U.A.M.”. “Aceito ser alvo da mídia/ no fundo, eu sei que tudo é ego”, declama na faixa tristonha, parecendo desnudar um teatro coletivo que envolve dirigentes políticos, “bandidos” e “mocinhos”, meios de comunicação, plataformas digitais de música e público ouvinte.
Como era de esperar, não faltou na mídia quem exercitasse o chororô “classe média sofre” reclamando do furto de celulares e lançando mão do surrado teorema de “civilização” versus “barbárie”. O objetivo é claro (inclusive no sentido racista): demarcar trappers como facínoras devotos do crime.
O teatro é o mesmo de sempre: mais uma investida de setores reacionários (não apenas os de direita) para demarcar como facínoras devotos do crime trappers, funkeiros, rappers, sambistas antepassados ou quaisquer outros pretos periféricos inventores de modas e estilos daqui até o final dos tempos, no passado e no futuro. Pelo lado da arte, a simples proposição de “Madrugada É Solidão” é suficiente para explicar uma bíblia católica, uma constituição de 1988 e uma wikipédia sobre os motivos do ódio recíproco entre Oruam e nossas classes médias e altas (e brancas): “Me culpam por ser ruim. Eu sou só um monstro que vocês criou”.
“Nós é mídia”, afirma Oruam no soul-trap “Audi Blue”, ciente de que ele próprio é um espelho, seja da mídia porta-voz, da elite sempre camuflada ou da sociedade como um todo – branca, preta, indígena e mestiça. O monstro são vocês, revida Oruam para quem quiser ouvir, mas especialmente para aquelas camadas que amam odiá-lo. À mídia, digamos, convencional cabe o papel subalterno de denunciar (e, assim, propagandear) a tal “apologia ao crime” supostamente praticada pelo atormentado eu-lírico de Mauro Davi dos Santos Nepomuceno: Mauro, o Oruam.
As aparências enganam, no entanto, aos que odeiam e aos que amam. “O tráfico tá virando esporte/ formou foi mó complexão/ mas o que falta é educação/o dia que o fuzil e a pistola valer mais que um livro/ aí tem algo errado”, afirma “Lei Anti-O.R.U.A.M.”, exercitando algo que dificilmente poderia ser rotulado como apologia. “Eles dão arma pra nós, depois pergunta por que somo bandido, arremata o trap magricela, definitivo.
“Explica pra uma criança por que seu herói vive dentro das grades”, confronta em seguida Oruam, ecoando em tempos (ainda) mais duros o “Charles, Anjo 45” (1969) de Jorge Ben, o “Diário de um Detento” (1997) dos Racionais MC’s, o Exilado Sim, Preso Não! (2005) de Dexter e assim por diante. Apontado como um dos maiores traficantes do Brasil, o pai de Oruam, Marcinho VP, é um dos fundadores do Comando Vermelho e está preso desde 1996.
Os momentos que exalam apologia existem, sim, em Liberdade, por exemplo nas inúmeras referências às pistolas Glock, que podem chocar alguém, mas não fazem muito mais que ecoar a aprovação, nas urnas, de parte substancial da sociedade ao projeto político que legalizou o uso de armas no país (“dão arma pra nós, depois pergunta por que somo bandido”). Menos que apologia ao crime armado (nada que não esteja presente às dúzias na cinematografia de Hollywood ou nas novelas da Globo), várias das citações às Glock em Liberdade são metáforas de sentido sexual (nada muito diferente do que homens bem mais respeitados fazem com seus carrões e foguetes espaciais).
Em “AK de Bipé”, a provocação não é nada sutil: “Sou um favelado chique, a cara do crime”. É horror ao termo “crime” o que move a repulsa contra o trapper? Ou seria “favelado chique” uma imagem ainda mais incômoda e desnorteante?
“Que saudade eu tenho do meu pai/ mas tá guardado na mão do Senhor/ sonhei um dia que a lili cantou/ vai ser o dia mais feliz da minha vida”, afirma na contra-mão a letra mais densa de Liberdade, de “Madrugada É Solidão”, outro momento distante anos-luz de qualquer tipo de apologia.
Em “Saudade dos Manin”, o tema volta amplificado pelo clamor em favor dos “manin” que “tão privado aguardando lili” – ou seja, encarcerados esperando pela liberdade. Em palcos de festivais, nos traps e na capa de seu álbum, Oruam tem insistido incansavelmente em reivindicar liberdade para o pai. É apologia ao crime sonhar a liberdade para quem está encerrado no navio tumbeiro hoje conhecido como sistema carcerário?
Por tudo isso, o título do primeiro álbum do filho do traficante é óbvio, ululante e certeiro: Liberdade. “Liberdade, Marcin, nós é você até o final”, sentencia “Complexo do Lins”, dividido com a MC Safira. A propósito, as letras de Liberdade oscilam entre a agressividade misógina (identificando mulheres repetidamente como “piranhas”, por exemplo) e uma atitude mais respeitosa. Nessa última levada, celebra uma mulher que “sabe que nunca dependeu de homem” (em “Eu Não Tenho Casa”); sobre outra constata, sem manifestar desaprovação, que “pra sair com ela, tem que entrar na fila” (em “Complexo do Lins”).
Tal como o rap de estilo Racionais, o trap se constitui como um movimento coletivo e solidário, e Oruam demonstra isso fazendo do álbum um quem é quem do gênero nas participações especiais: Poze do Rodo em “Madrugada É Solidão”, MC Cabelinho no romântico em conflito “Não Mente pra Mentiroso” e em “AK de Bipé”, Orochi no quase romântico “Vazio”, MC Ryan SP e Chefin em “AK de Bipé”… O “menor” desses artistas coleciona cerca de 100 milhões de visualizações de suas músicas mais bem-sucedidas no Spotify. Com ou sem leis anti-Oruam, o trap é uma voz soberana no Brasil de 2025.
“Misturei tristeza junto com felicidade/ quando nós tá puto, o coração diz a verdade”, desfere a faixa de entrada, “22 Meu Vulgo”, fazendo mostruário das características desse gênero musical noturno e soturno, de fala entrecortada e gutural, frequentemente depressivo, descarnado e desossado de melodia, habitado aqui e ali por um estranho romantismo mal-assombrado. Oruam segue os preceitos do trap em especial quanto à robotização extrema da voz (o que não é prerrogativa dessa vertente) à fala de métrica sempre atabalhoada e desencontrada das batidas.
É perturbador que, da reconciliação entre a sisudez do rap paulista e a alegria violenta do funk carioca, o trap seja hoje o filhote mais consumido entre jovens paulistas, cariocas e brasileiros. Distraída, a sociedade fascistizada dos anos 2020 olha para o espelho oferecido pelo trap, se horroriza e começa a gritar.
Do outro lado do espelho, para lá das fragilidades que cercam o trap, a lucidez habita a mente tão jovem de Oruam, como transparece “Lei Anti-O.R.U.A.M.”: “O trap sugou minha alma/ carrego mágoas que nunca me cegam”.
Do funk-ostentação, Oruam traz toda uma parafernália, que costuma irritar ouvintes das classes médias, sempre apavorados pelo fantasma de arrastões e rolezinhos. “Eu te vesti de Gucci, de Fenty, de Prada/ mas eu prefiro é te ver pelada”, belisca “Não Mente pra Mentiroso”. Diz-se que a ostentação em excesso incomoda, mas e a lembrança que letras como essa trazem do papel ocupado pelas marcas e por seus consumidores nesse teatro de horror, o que causa? O sarcasmo fere mais fundo em “Ela Quer Dar”: “Manda a Dior desmatar a floresta e fazer meu casaco”. Afinal, quem aí fora está preocupado com o desmatamento da Amazônia? O espelho também grita.
Oruam costuma se maquiar à maneira do Coringa de Joaquin Phoenix, uma imagem não menos que perfeita para a situação. Aos curtos 24 anos, ele já se tornou o inimigo público número 1, sem (ainda?) ter sido publicamente acusado de nenhum crime comparável àqueles atribuídos ao pai (e não ao sistema carcerário, aos vereadores do PL, do Novo e do PSDB, à avenida Faria Lima, à mídia subserviente, ao bozo etc. etc. etc.). Para Oruam não parece haver escapatória (“o medo de cair é muito grande”, confessa Mauro em “Madrugada É Solidão”). Mas e para nós, do outro lado do espelho chamado Mauroruam, o que há?