Minimalismo da interpretação de Fernanda é uma avis rara na cena hollywoodiana

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Eunice Paiva (Fernanda Torres) está sendo levada com a filha em um fusca da polícia. Os condutores acham que ela não tem o direito de saber para onde a estão levando. Exigem que coloque um capuz. Seu semblante fica esmaecido, ela olha a paisagem e absorve o solavanco causado pela manobra do motorista irresponsável com esgares do rosto, gestos mínimos que provém não de uma tentativa de controle, mas de um despertar violento, inacreditável, quase de um sonho ruim que insiste em não terminar.

Poucos dias antes, ela estava na sala de casa com o marido (a quem devotava mais que amor, também admirava profundamente) e os filhos iam e vinham livremente da praia e da rua de shorts e maiôs. Sua ideia de autopreservação estava, até aquele momento, circunscrita à gestão do abastecimento da despensa, da geladeira, do pagamento da empregada, do aprimoramento do jogo de baralho.

Como artífice de um filme-denúncia, Fernanda, como Eunice Paiva, é a anti-Erin Brockovich (Julia Roberts, 2000) e, portanto, seu core de interpretação aponta para uma tradição muito diferente daquela do cinema norte-americano tradicional, de multidões. Talvez, das atrizes com as quais disputava o prêmio, somente Tilda Swinton demonstre uma percepção tão aprofundada dos simbolismos femininos (não por acaso, a adversária que celebrou mais efusivamente). Eunice/Fernanda não carrega atavicamente um destino de heroína, este é que insiste em cobrar-lhe adesão. Ela não grita, não esperneia, não desenvolve estratagemas de sobrevivência mirabolantes em cima da hora, macgyverianamente. O banho e o esfregar com uma bucha no corpo dolorido de arbitrariedades falam mais do que dezenas de diálogos de convencimento ou embates de tribunal.

Por isso, talvez, sua vitória seja ainda mais interessante. A interpretação de Fernanda Torres é para dentro, uma sequência de explosões internas, de decisões silenciosas que se situam muito adiante do revanchismo, do desejo de vingança. Ela fala quando não fala, ela inquire quando fica chocada, ela reage quando tateia.

As súbitas descobertas da típica dona de casa brasileira de classe média alta, que nunca quis saber de onde vinha o conforto material do casamento, do que o marido tratava nas reuniões confidenciais com os amigos, que nunca teve tempo para saber se havia sinceridade nos salamaleques dos solícitos gerentes de bancos ou dos sócios, chegam quase sempre tardiamente e sem tempo para arrependimentos. O personagem que foi proposto a Fernanda Torres era precisamente esse. E a atriz fez o dever de casa: viu filmes, leu cartas, desbaratou álbuns de fotografia de família, ouviu os relatos dos filhos. Chegou, dessa forma, não somente a Eunice, mas a milhares de Eunices.

O reconhecimento dessa portentosa interpretação (pela estabelecida escola norte-americana de realismo) representa uma reverência muito especial. Uma tradição secular dá o braço a torcer a outra tradição, essa agora molecular, sanguínea, de transmissão oral, levemente embebida em mistério & rabo de lagartixa & olho de morcego, poção de família talvez. O Globo de Ouro para Fernanda Torres é a reverência de um tipo de interpretação quase sempre focada na predestinação a uma outra, distante, ancorada numa força feminina autóctone.

CONGRATULATIONS

Passadas mais de 16 horas desde a maior vitória em duas décadas e meia de um filme brasileiro no meio ambiente cinematográfico norte-americano, ainda não apareceu nem uma nota de felicitação a Fernanda Torres e ao filme Ainda Estou Aqui no site e nas redes sociais da Agência Nacional de Cinema (Ancine). O leitor pode pensar que é decorrência do recesso ou gap de comunicação, mas esse é um daqueles silêncios tremendamente eloquentes.

O fato é o seguinte: se tivesse dependido da Ancine, agência responsável pelo fomento, distribuição, exibição e fiscalização do cinema brasileiro, Ainda Estou Aqui jamais teria sido filmado. Seu período de captação e pré-produção se deu durante o governo de Jair Bolsonaro, no qual a triagem ideológica e a censura foram praticados sem parcimônia pela agência. Walter Salles foi crítico dessas políticas de perseguição e extermínio. “Tão grave quanto o exílio físico é a sensação de estarmos exilados dentro do nosso próprio país, que não mais reconhecemos. É uma impressão de não pertencimento, dolorosamente palpável”, afirmou o cineasta, em 2022. Seu destino, caso tivesse recorrido ao financiamento público, que é um direito, seria a operação tartaruga (e depois a gaveta, se o autoritarismo tivesse triunfado).

Salles, como todos sabem, é uma exceção no universo cinematográfico. Ele dispõe de ampla recepção financeira (de patrocinadores e de recursos próprios) para persistir em seu cinema. Pode-se dizer que é privilegiado, mas uma coisa é certa: por isonomia, nunca se poderia exigir de Walter Salles que financiasse seus próprios filmes (diga-se de passagem, todos de interesse coletivo), assim como não deveria ter sido exigido da mãe de Glauber que vendesse imóveis para financiar os clássicos de seu filho. Mas, justamente por conta da visibilidade de sua posição social, o filme saiu – e a um custo de 120 milhões de reais (dos quais já recuperou mais da metade só com bilheteria), decorrentes de uma associação entre a Globoplay e produtores estangeiros.

O êxito de Ainda Estou Aqui, portanto, não é o êxito da política cinematográfica nacional. O governo norte-americano investe cerca de 25 bilhões de dólares no seu cinema anualmente. O Brasil investe 150 milhões de dólares por ano, quando investe. O trouxa extremista (e o servidor resultadista) alega que o cinema nacional deve ser autossustentável, mas quer que seu jet-ski e os jatos dos seus candidatos recebam benefícios fiscais para alcançar sempre um único beneficiado.

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