O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, de 90 anos

No dia 7 de julho, a Agência Nacional de Cinema (Ancine) negou autorização para o financiamento público do filme O Presidente Improvável, da produtora carioca Giros Filmes, que trata da trajetória do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, de 90 anos. O indeferimento, sob o pretexto de “notório aproveitamento político”, foi decidido pelo diretor presidente substituto da Ancine, Mauro Gonçalves de Souza, e pelo diretor substituto Edilásio Barra, o pastor Tutuca, na ocasião os únicos remanescentes do colegiado que dirige a agência. Acontece que, curiosamente, no dia anterior, o outro diretor substituto que completa o atual quadro da Ancine, Vinicius Clay, estava sob licença para ser sabatinado no Senado Federal (assim como o virtual novo presidente da agência, Alex Braga Muniz, e um novo diretor, Thiago Mafra). É fácil deduzir que a data do veto ao filme foi cuidadosamente escolhida como estratégia do grupo para ludibriar o Congresso Nacional, evitando uma colisão política antes da aprovação.

Ao votar pelo veto ao documentário, Mauro Gonçalves de Souza e Edilásio Barra atuaram como prepostos da vontade da verdadeira diretoria, que não queria correr riscos na sabatina e eventualmente desagradar a senadores que têm FHC como líder honorário de sua bancada (particularmente do PSDB e do DEM). Os dois não vetaram o financiamento ao filme de FHC antes que Alex Braga, Vinicius Clay e Tiago Mafra fossem devidamente aprovados pela Comissão de Educação e Cultura do Senado. Esses últimos foram de fato confirmados pelos parlamentares para um mandato de 5 anos à frente da agência, e a estratégia os poupou de um confronto que poderia comprometer o plano de assegurar o controle da agência aos interesses bolsonaristas.

O documentário O Presidente Improvável requereu autorização para captar, pela Lei do Audiovisual (Lei nº. 8.685/93), cerca de R$ 3,3 milhões para a sua realização. O projeto tinha sido aprovado em 2018 pela mesma diretoria que agora o vetou. Mas, em 17 de dezembro de 2020, o projeto foi retirado de pauta sob o argumento de que seria avaliado pela Procuradoria da Ancine. Após essa retirada, em maio deste ano, a superintendente de Fomento da Ancine informou à diretoria que tanto o projeto quanto a produtora se enquadravam na lei vigente e não havia motivos para sua proibição.

O preocupante do voto de veto de Mauro Gonçalves de Souza, que chegou à presidência da Ancine com as credenciais de ter sido assessor do deputado Philippe Poubel, do PSL do Rio, ligado às milícias cariocas, é que a argumentação abre um precedente que permite vetos de toda natureza, doravante. Mauro Gonçalves de Souza, que chegou a mencionar em ata pública a participação de FHC no programa de Pedro Bial, em 18 de maio de 2021 (da qual diz que “sobeja conteúdo político”), escreveu, em seu voto:

“Ora, se o Supremo Tribunal Federal já declarou a inconstitucionalidade de leis que autorizavam a mera denominação de logradouros públicos com nomes de pessoas vivas, por vulneração do princípio de impessoalidade, me parece, sim, muito mais grave, e pelas mesmas razões, aprovar projeto com conteúdo político na obra em que se homenageia político vivo e ainda em atividade”.

Por esse raciocínio, se os vetos que tratam da trajetória de pessoas vivas virassem regra, filmes monumentais como Peões, de Eduardo Coutinho; Entreatos, de João Moreira Salles; Pelé, dos britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas, entre muitos outros, seriam impedidos de buscar apoio público (num contexto internacional, imagine um organismo de fomento vetando obras fundamentais como Procurando Sugar Man, de Malik Bendjelloul, ou biográficos como Mandela, de Justin Chadwick). Mas parece que o alvo principal é outro bem mais específico: os filmes que retratam fissuras políticas recentes da democracia, concatenações de golpes de Estado, caso das produções O Processo, de Maria Augusta Ramos; Alvorada, de Anna Muylaert e Lô Politi; e Democracia em Vertigem, de Petra Costa (indicado ao Oscar 2019).

Mauro Gonçalves fala em “notório aproveitamento político, às custas dos cofres públicos”, do filme proposto para abordar a trajetória de FHC e cita a “proximidade das eleições de 2022”. Mas a Ancine, por outro lado, não fez nenhuma restrição à aprovação do filme Nem tudo se desfaz, de Josias Saraiva Monteiro Neto (vulgo Josias Teófilo), aprovado em 2019 e que trata da vida de Jair Bolsonaro. Ao analisar o que chama de “conotação e viés político”, a Ancine mostra-se mais ciosa (e propensa a mudar a lei) do que na aprovação de certas propostas insólitas – em junho, por exemplo, aprovou a liberação de recursos incentivados para um projeto jornalístico sobre pecuária de R$ 661 mil.

Em seu currículo online, a Giros Filmes informa que possui 23 anos de produção audiovisual com uma passagem pela long list do Oscar em 2016 com o filme Menino 23. É dirigida por Mauricio Magalhães, Belisario Franca e Bianca Lenti e produziu 70 séries exibidas em mais de 40 canais nacionais e internacionais – HBO, TV Globo, Arte, BBC, History, Discovery e Universal TV, além de 21 filmes selecionados pelos festivais mais importantes do Brasil e do mundo (com 28 prêmios de prestígio mundial – NY Film Festival, International Documentary Association, GP do Cinema Brasileiro, Gramado, Documenta Madrid, Montreal Black Film Festival).

Segundo seu projeto, o filme O Presidente Improvável seguiria, em linguagem e estrutura, a narrativa dos documentários The Unknown Known (2013) e Sob a Névoa da Guerra (2003), ambos dirigidos por Errol Morris e baseados em depoimentos de um único personagem em uma narrativa longa e não linear. Outra fonte seria o livro Diários da Presidência (1995-2002), que FHC publicou pela Companhia das Letras.

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