Woody Allen volta a Paris para fustigar o mundo dos muito ricos

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Primeiro, é preciso alertar: trata-se de um Woody Allen sem humor, sem picardia e, principalmente, sem frases espirituosas. Os personagens vão desfilando de forma quase absolutamente sem graça, apenas comendo e bebendo com refinamento (e de forma mecânica, até angustiante). O resto é um deserto existencial. Em Golpe de Sorte em Paris (com estreia nacional prevista para o próximo dia 19), tudo transcorre nesse ritmo repetitivo deliberado, até que a protagonista, Fanny (Lou de Laâge), ganha um livro de poemas, Jardin Secret, de um antigo admirador do colégio, Alain (Niels Schneider), que ela reencontra por acaso na rua. É como se alguém tivesse feito uma inconsciente inalar amoníaco, o despertar é inebriante. A leitura do livro (e o reencontro com uma paixão colegial) reconectam Fanny com alguém que ela já foi, uma mulher curiosa, com orgulho próprio, adversária da rotina e da acomodação.

Assim, pela via da cultura, do poder de um do-in artístico, Fanny vai incluir Alain na sua rotina de galerista rica, passando a experimentar vinhos de promoção do mercado e deixando um pouco para lá seus vinhos Bourgogne. Fanny é casada com Jean (Melvil Poupaud), que um dos amigos ricos compara a Jay Gatsby, personagem de Scott Fitzgerald – tem dinheiro a rodo, mas é um novo-rico, não se sabe de onde o dinheiro dele provém (o que não impede de puxarem seu saco enquanto ele despejar grana nos seus institutos de benemerência). Jean parece um retrato condensado de toda a sociedade contemporânea dos biliardários das Big Techs: pouquíssimos de nós sabemos de fato de onde vem seu dinheiro, sua ignorância atávica, sua infantilização crônica, mas ainda assim permitimos que eles conduzam nossos próximos destinos.

Thriller noir sem atrelamento à estética clássica, um anti-Neblina e Sombras (1991), Golpe de Sorte em Paris é exemplar de um cinema já desfalecido e subitamente reanimado pelo descompromisso geracional de um cineasta de 88 anos (e em ritmo de cancelamento, sugerindo que joguem seus filmes no mar após sua morte). Por trás da trivial história de uma infidelidade conjugal, Woody Allen examina o ambiente de subserviência afetiva, emburrecimento progressivo das elites e os jogos de sem cerimônia ética dos ricos da contemporaneidade. As diferenças em relação ao filme anterior de Woody Allen na capital francesa (Meia Noite em Paris, 2011) são que, neste novo filme, só se fala francês e (de novo), os ambientes se expandem para além dos mercados de pulgas e Montmartre (agora contemplam o Jardin du Luxembourg, as ruas do 16ème arrondissement, os arredores dos Champs-Élysées e o campo) e não há ninguém engraçado atuando. A principal semelhança é de pressuposto: e se nos fosse dada a oportunidade de viver tudo de forma diferente?

As cenas do high society de Golpe de Sorte em Paris lembram, e isso é deliberado, os ambientes de gigolotagem de grandes clássicos do cinema, como Crepúsculo dos Deuses ou Bonequinha de Luxo. Por trás do desfile de roupas Hermès, Zegna e Ralph Lauren, há um isolamento existencial, uma fragilidade comunitária, tédio e automatismo que evoluem do inofensivo para o ameaçador. O jazz, evidentemente, é o som de fundo de todo o filme, começando por Fortune’s Child, com o trompetista Nat Adderley, e tendo o standard Cantaloup Island como cama de cena.

Woody destila em Golpe de Sorte sua desconfiança do mundo dos ricos e do êxito. Quando Fanny aparece com um bilhete de loteria em casa, é recriminada pelo marido – somos nós que fazemos nossa própria sorte, ele repete, em alguns momentos do filme. Isso inclui não ceder às “fraquezas” da ralé, todas elas aspirações do espírito. O escritor apaixonado escreve seu próximo livro à mão. A sogra lê livros, o genro milionário sugere trocá-los rápido por um computador. Os assassinos romenos sonham em voltar para a família em Bucareste. De novo, como em Scoop (2006) e mesmo Meia Noite em Paris, Woody também recorre a um núcleo de detetives particulares como interface entre dois mundos, o dos milionários caindo ao rés do chão dos mortais e o dos trabalhadores da desgraça alheia.

O final hitchcockiano sedimenta o conceito de sorte de Allen. Um lance de dados jamais abolirá o acaso. Golpe de Sorte em Paris não é um filme crepuscular de Woody Allen. Ele não está divertido, mas seu rancor nos premia com uma obra de puro cinema, paciente artesanato e devoção a uma história. Definitivamente, não será jogado no mar.

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