Orgulho paulistano não é algo muito comum em termos de música popular (nem em outros termos), embora resvale em obras bissextas como as de Adoniran Barbosa, Rita Lee e Itamar Assumpção ou de paulistas adotivos como Tom Zé, Arrigo Barnabé e outros poucos. É, no entanto, o que caracteriza desde o início da década de 2010 o som da Filarmônica de Pasárgada, com todas as peculiaridades e contradições que pode guardar a ideia exótica a ideia de viver na cidade de São Paulo. PSSP, o quarto álbum do octeto capitaneado pelo compositor e cantor Marcelo Segreto, mergulha no conceito de orgulho paulistano em profundidade inédita, maior ainda que nos antecessores O Hábito da Força (2012), Rádio Lixão (2014) e Algorritmos (2016).
A ambição, desta vez, é homenagear a história da megalópole de A à Z. Isso acontece evidentemente à maneira paulistana, que contempla não apenas elogios e flores, mas também (ou em especial) ironias, sarcasmos, críticas, zoações e denúncias. Outro modo transverso de homenagear o desenraizamento paulistano é a mistura de sonoridades, como atestam os instrumentos tocados por cada integrante da Filarmônica de Pasárgada: André Teles (eletrônica, viola caipira, vocais), Fernando Henna (piano, acordeom, piano rhodes), Ivan Ferreira (fagote, vocais), Leandro Lui (bateria, ganzás, zabumba, triângulo, agogô, cuíca, tamborim, cowbell, pandeiro, reco-reco, surdo, congas, temple bell), Marcelo Segreto (voz, vocais, violão de aço de 12 cordas e guitarra, além de composição em todas as canções), Migue Antar (baixo elétrico, baixo acústico), Paula Mirhan (voz, vocais) e Renata Garcia (clarinete).
PSSP começa em tempo mais-que-presente, em “GPS”, de filiação direta ao grupo Rumo (inclusive nos modos de cantar de Ná Ozzetti e Luiz Tatit) e a outros conjuntos iconoclastas da vanguarda paulista dos anos 1980 (Isca de Polícia, Premeditando o Breque, Língua de Trapo) e do rock pós-vanguarda (Arnaldo Antunes, Os Mulheres Negras e os trabalhos solo de André Abujamra e Maurício Pereira). O passado e a história cabem dentro do radar do GPS, no entanto: “Passo a Praça da Sé/ rua de São João/ subo o Morro do Chá/ desço a Consolação/ pego a Estrada do Mar/ Rua do Paredão/ eu caminho no Minhocão”. O narrador da homenagem troncha é paulistano típico, à maneira do “Suicida” (1966) do grupo O’Seis (embrião dos Mutantes) e da derivada “Gloria F” (1985) de Rita Lee: “Eu acho/ que eu vou me perder/ que eu vou me jogar/ do edifício mais alto/ do céu, do planalto/ lá do Jaraguá/ como zoom vou caindo, caindo, caindo/ até te encontrar”.
A moda caipira/cateretê “Cartão Postal” revela o que os nova-iorquinos e londrinos made in SP fazem força para esquecer e decupa melhor a “homenagem”, lembrando inesquecíveis paisagens “naturais” paulistanas: fumaça, CO2, mosquito, pernilongo, avenida engarrafada, metrô lotado, rua Oscar Freire, Daslu, lulu-da-Pomerânia, Jockey Club, área VIP, “pet-shopping”, espaço gourmet, estresse de escritório, celular no modo vibratório. “Não há, não há, não há/ cartão postal pra te postar”, arremata a canção, que decalca o “Luar do Sertão” de João Pernambuco e Catulo da Paixão Cearense em letra e melodia.
Amarga é a homenagem aos rios paulistanos, já que estão emporcalhados ou soterrados embaixo de concreto e asfalto, como lembra, talvez inconvenientemente, o pop-xote “Rios e Ruas”: “São São Paulo milagroso tem riacho e eu não acho/ tudo sepultado vivo vive embaixo desse chão”. “Asfalto é o que não falta/ falta só desenterrar”, propõe a canção, antes de evocar rios, riachos, ribeirões e córregos como Tatuapé, Mandaqui, Itororó, Carandiru, Sumaré, Iguatemi, Cipó, Pacaembu, Embu-Guaçu, Anhangabaú, Saracura, Tamanduateí.
Os nomes indígenas dos rios desaparecidos gritam, e assim os fazem os títulos bandeirantes das ruas e avenidas que os soterraram: Salim Farah Maluf, Caetano Álvares, Prestes Maia, Castelo Branco, 9 de Julho, Avenida do Estado… “Que dó que dá do Tietê/ tudo enterrado”, finaliza “Rios e Ruas”, trazendo à tona aquele que não foi enterrado, mas “apenas” planificado e emparedado.
O sumiço fluvial desemboca numa de suas consequências, a apregoada “crise hídrica”, em “Falta de“: “Falta d’água na cabeça, na cabeceira/ o meu canto decantando na Cantareira/ pouco a pouco o eco oco dessa seca/ gota a gota chega logo na caneca/ (…) de quem, de quem, de quem que é o problema?/ na bolha, na jacuzzi, no iate, tem água Perrier”. Na repetição da letra cantada por Paula Mirhan, sílabas vão sendo aos poucos suprimidas, numa citação desconstruída paulistaníssima ao modernismo, ao concretismo, ao tropicalismo. Subterrâneo à cidade (ao país, à região) de Macunaíma, no mais profundo dos fundos, o Aquífero Guarani resta esquecido até mesmo pelos poetas de Pasárgada. Adiante, “Lira Paulistana” explicita o louvor ao modernismo de 1922 e ao “futurista aprendiz” Mário de Andrade, inseminando duas vanguardas uma na outra: “Tarsiwald, Ozzetatit/ Arrigo Bananère/ Itamário”.
Autor histórico de “São São Paulo” (“São São Paulo, quanta dor/ São São Paulo, meu amor”), de 1968, o baiano-paulistano Tom Zé vem fazer a locução do folguedo “Nome de Rua”, que segue dando nome a outros genocidas que homenageamos bovinamente em nomes de ruas e em estátuas: João Ramalho, Rodovia Anchieta, Rua Voluntários da Pátria, Parque Dom Pedro, “guerra da Rua Paraguai”, Quintino Bocaiúva, Estação Marechal, Praça da República, Peixoto Gomide (“que matou a própria fia Sofia/ que nunca se casou nem virou nome de rua”), Dr. Homem de Melo.
Os alvos finais, depois de retirados os véus dos olhos, são a misoginia e o feminicídio, explicitados nas vozes velho-e-menina de Tom Zé e Paula Mirhan. Começa o autor da Opereta Segregamulher e Amor (2005): “Uma pergunta pro senhor/ Rua Dr. Homem de Melo/ que é doutor de manicômio/ e também tem homem no meio/ nem fulana nem beltrana/ será que eu tô ficando doido/ ou não existe paulistana?/ me responde onde elas estão”. E Paula faz o fecho cabal, para desespero do patriarcado paulistano (e brasileiro): “Me responde onde que tão elas/ pois as ruas, alamedas, praças, passarelas/ avenidas, estações, pontes e vielas/ são sempre femininas/ mas as meninas/ não estão no nome delas”.
Em parceria com Kiko Dinucci, Marcelo Segreto e a Filarmônica de Pasárgada estendem tapete vermelho para a música paulista em “Saudosa Ma Loka“, mas contando que fim levaram os trabalhadores de Adoniran, afro-paulistanos, ítalo-paulistanos, indígenas e trans-indígenas que sobrevivem (ou não) à demolição da maloca querida pela especulação e à Cracolândia: “A maloca derrubada/ o ardifício incendiado/ hoje Joca queima pedra/ Mato Grosso pele e osso/ Doniran no camburão/ Iracema macerada/ o Arnesto encarcerado/ a Eugênia virou noia/ debaixo do viaduto/ só vê alucinação”. O desfecho anuncia a aguardada rebelião: “Dá licença, sinhozinho/ tá fingindo que num lembra?/ pois o bando moribundo/ de Zumbi novo quilombo/ vai tomar teu casarão”.
Apontando para outra minoria invisível, “Kasato Maru” lembra-se dos nipo-paulistanos, algo impensável em Rio de Janeiro ou Salvador, em hai kai: “Os olhos puxados do horizonte/ um navio à vista/ obrigado vem de arigatô”. Mais explicitamente discriminados, os afro-paulistanos voltam ao protagonismo em “Quarto de Despejo“, dedicada à escritora mineira adotada pela favela paulistana Carolina Maria de Jesus e ao compositor baiano Môa do Katendê (o primeiro artista assassinado pelo bolsonarismo, ainda em 2018), algo indispensável em Salvador e no Rio antifascistas e antirracistas. O liquidificador aqui mói literatura, religião, militarismo, neoliberalismo, escravagismo, neo-escravagismo, Movimento Sem Teto, encarceramento, abolição penal…: “Quarto de despejo/ Igreja do Rosário/ quilombo, ocupação/ duco, duco, duco/ só se for o duque/ aqui não tem real/ nem pra condução/ passo pela forca/ pelo pelourinho/ Liberdade no Japão/ o grito na garganta/ na cela, na senzala/ no quartinho de empregada/ no navio, no camburão”.
O mais-que-presente faz novo sobrevoo em “Virada Cultural” (como é que ninguém pensou nisso antes?, perguntaria Itamar Assumpção), de saudação bêbada a festas urbanas para além daquela que dura apenas um entre 365 dias: carnaval, Acheropita, ano novo. “São Paulo tava diferente/ as ruas eram rios/ o Copan tava quadrado/ o aerotrem já tava pronto/ o Minhocão tava enterrado”, espanta-se um narrador em delírio, hospitalizado após um provável “boa-noite, Cinderela” (“meu, dei PT, nesse dia eu tava mal”). Mestre Zelão e a Bateria da Escola Mutungo de Capoeira Angola fazem o acompanhamento de berimbau, pandeiros, atabaque, agogô, reco-reco e coro, em transversalidade que o maestro baiano Letieres Leite, morto de covid-19, aprovaria e assinaria embaixo. Noutra dimensão, Geraldo Filme e os sambistas pretos da Barra Funda, do Bexiga e da zona norte velam pelo luto que não dá trégua.
Caminhando para uma conclusão altiva e ríspida, ainda que atravessada de ternura, PSSP chega ao clímax com “São Paulo de Piratininga São Paulo S Paulo SP” e a faixa-título de encerramento. A primeira soma o grupo de percussão corporal Barbatuques e os coletivos Música de Montagem e Trupe Chá de Boldo, sobrinhos conceituais da Lira Paulistana e primos musicais da Filarmônica de Pasárgada, e ressalta a veia do que já foi dito em “Rios e Ruas”, “Nome de Rua”, “Saudosa Ma Loka”, “Quarto de Despejo” etc.
O ato 1, levado sem pressa pela Filarmônica de Pasárgada, pinta o quadro da Piratininga pré-cabralina até o estupro que gestou o Brasil. Caiubi, Tibiriçá, Piquerobi, Bartira, Paranapiacaba, jesuítas, ocas, cemitério, padres e urubus antecipam o futuro terrível: “Anhangaduateíetê/ rio que foge pro sertão/ Inglaterra da garoa, bandeirante, maldição/ ladainhas e aleluias/ iorubá, tupi, latim/ sai sem pressa a procissão/ a vila é lenta, é violenta, é corre-corre acorrentado/ é chafariz que espirra sangue/ são três séculos de solidão”.
À entrada dos Barbatuques, o ato 2 começa a acelerar na corrida para o edifício “civilizacional” que se ergue por cima de túmulos e rios: terra roxa, café, “caferrovia”, Santos, Campinas, “a capital do capital”, chaminés, Campos Elíseos, Higienópolis, Paulista, “gente diferenciada e chique”, “Brás sem braço, dedo, mão”, “a ária, a ópera operária”. Conforme cresce a balbúrdia orquestrada promovida pelos três coletivos paulistanos de rock-vanguarda-MPB, os atos 4, 5 e 6 enlouquecem aos barulhos da hipermodernidade arcaica do século 21: pneu, “plantação de arranha-céu”, gentrificação, cortiço, cohab, apocalipse, busão, hip-hop, “massacre, crack, crente, crime”, condomínio, carro blindado, “periferida aberta/ mutilada multidão”. Fica a última pergunta: “Internet Idade Média/ qual o fruto do futuro?/ atrocidade ou cidadão?”.
“PSSP“, finalmente, aporta a nave paulistânia em chão movediço e instável: “As ruas de SP/ são feitas de ilusão/ de pó, concreto, carne, osso e aço”. As cortinas se fecham, remetendo a distopias pandêmicas mais-que-presentes. “P.S.: bem debaixo dessa rua corre um rio/ P.S.: é tanta gente que SP ficou vazio/ (…) P.S.: eu sou de barro, eu sou de taipa, de pilão/ P.S.: é o avesso do avesso de SP/ P.S.: déjà vu eu vi, eu vi meu vô morrer”. O apêndice projeta um post scriptum reparador que a Filarmônica de Pasárgada ainda não chegou a escrever, e desperta curiosidade desde já sobre o futuro pós-PSSP.
PSSP. De Filarmônica de Pasárgada. Gravadora Experimental/YB Music.