Pai e filho param em frente à terceira obra da Mostra Abdias Nascimento: Um artista Panamefricano, em cartaz do Museu de Arte de São Paulo (Masp). O homem pergunta à criança se ela quer que lhe conte sobre a pintura. Ela afirma que sim. Com aquele tom paternal de quem domina os conhecimentos do mundo aos olhos da cria, o pai aponta para “tartaruga” e explica que o animal está enfrentando os desafios do mar, como o arco e a flecha e o “morcego”.
O quadro em questão faz parte do primeiro de sete núcleos da exposição, denominado “Teogonia afro-brasileira”. Em obras que representam narrativas da mitologia iorubá e de outras culturas e religiões de matriz africana, Abdias pinta Orixás, suas armas e ferramentas e figuras e símbolos egípcios, ora de maneira muito explícita e bem delineada em suas formas, ora mesclada em outros elementos da natureza, como a água e a terra.
A “tartaruga”, na conversa entre pai e filho, era então a representação de Iemanjá (orixá das águas salgadas), enquanto o arco e flecha representavam o Ofá de Oxossi (orixá caçador, das florestas e do sustento) e o “morcego” era a imagem das duas lâminas do Oxé, o Machado de Xangô (orixá da justiça, dos raios e dos trovões).
A interpretação lúdica do pai pode ter sido apenas uma opção que tenha julgado mais interessante naquele momento, mas não deixa de representar a falta de conhecimento básico sobre religiões de matriz africana, sintoma de uma colonização cristã no Brasil. Ou ainda, pode demonstrar negação e preconceito, comum a boa parte de brasileiros, mesmo diante de obras de arte voltadas a tornar mais visíveis cultura e saberes que sofrem intolerância e tentativas de apagamento há séculos.
Apesar da intolerância religiosa se configurar crime no Brasil, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos registrou, em 2021, 829 denúncias de intolerância religiosa e 962 violações relacionadas a crença, culto e de não crença. Ao todo, 75% dos casos são contra pessoas de religião de matriz africana. São recorrentes notícias sobre terreiros queimados, devotos e seguidores agredidos e narrativas que demonizam religiões advindas da diáspora africana.
O que resiste a esse projeto racista de apagamento é graças ao aquilombamento de pessoas negras. E é justamente esse o tema do segundo núcleo da exposição do Masp, “Quilombismo”. O conceito foi criado pelo próprio artista como uma proposta de mobilização política da população afrodiaspórica nas Américas, inspirado pelo movimento Panafricanista da Organização de Unidade Africana em 1963. Por esse motivo, as obras desse núcleo são marcadas pelas cores verde e vermelho (cores da bandeira Panafricana), por representações de Exu (associado a contradição e a comunicação como ferramenta) e de Ogum (divindade da inovação tecnológica e da Guerra).
Abdias Nascimento foi uma personalidade multifacetada. Além de artista plástico, foi ator, poeta, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário e político. Mas foi como escritor que deixou o legado mais acessado por leitores e pesquisadores do mundo todo, com 25 publicações. Uma delas é o livro com mesmo nome que recebe o núcleo na exposição, O Quilombismo, publicado em 1980 pela Editora Vozes.
Seguindo pelo 1º subsolo do Masp, onde está localizada a Mostra, surgem “Deuses Vivos” e “Germinal”, compondo o terceiro e quarto núcleos. Aqui as pinturas exibem os orixás como grandes forças da natureza e verdadeiros “donos de cabeças”, que regem a existência dos brasileiros de matriz africana, mostrando em algumas obras também o caráter cíclico da natureza (nascimento e morte) e da transformação.
A experiência de Abdias do Nascimento nos 13 anos em que esteve exilado está presente em “Sankofa”, o quinto núcleo exposto. O símbolo Adinkra (Sankofa), que faz parte de um conjunto de símbolos ideográficos dos povos acã (grupo linguístico da África Ocidental), é a representação de um pássaro que voa para frente com a cabeça voltada para trás.
A tradução literal seria “volte e pegue”, mas Abdias deixa mais claro quando traduz como um importante retorno ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro. As obras estão todas voltadas a esse resgate das origens para combater os danos causados pela colonização em países africanos oferecendo também novas visões para pessoas negras de toda Diáspora.
A seguir, “Axé de sangue” surge como o núcleo mais tenso e traumático da mostra, com pinturas que enfatizam a violência do processo colonial, desde o sequestro de africanos escravizados até a opressão e a exploração vividas nos países colonizados. O vermelho pinta os mares da Diáspora, pinta o rosto de pessoas negras e está presente na figura de Exu, orixá demonizado pelo cristianismo que, através de encruzilhadas, conecta e age como um ponto de luz em meio a escuridão. Esta é a parte mais dolorosa para pessoas negras que visitam o local, que representava a maioria a ocupar os corredores do Masp.
“Axé da Esperança” traz um momento final com mais lirismo e poesia. As obras neste último núcleo são compostas por cores mais suaves e leves, com representações da comunicação estabelecida entre humanos e deuses, como um caminho a ser trilhado na busca por novas perspectivas de existência para negros de África e da Diáspora.
Abdias Nascimento: Um artista Panamefricano traz ao todo 61 pinturas, realizadas de 1968 até 1998. A primeira tela de Nascimento foi produzida no Rio de Janeiro no auge da ditadura militar, em 1968. Muitas obras foram concebidas no Brasil, mas também durante seu exílio em países como Nigéria e Estados Unidos.
A Mostra traz também fotos antigas da infância e juventude de Nascimento, documentos, jornais em que esteve em destaque, cadernos com anotações, rascunho de capas dos seus livros e diferentes edições de suas publicações. Por ter fundado uma das organizações com maior repercussão e produção antirracista, o Teatro Experimental do Negro, cartazes de peças que escreveu, dirigiu e atuou também estão disponíveis para apreciação do público.
A passagem de Abdias pela política institucional também ganha destaque com a mostra de folhetos e santinhos de quando foi candidato a vereador, senador e deputado federal pelo PT e PDT, no Rio de Janeiro. Muitas imagens, Abdias ele aparece ao lado, da intelectual e antropóloga Lélia Gonzales, na qual é a responsável por cunhar o termo “ladino-amefricano” (para se referir às culturas negras da América Latina), de onde se origina a palavra “panamefricano”, presente no título da Mostra.
Abdias foi indicado pelo Prêmio Nobel da Paz de 2010 por todo seu legado de produção antirracista e pelo seu trabalho para o desenvolvimento sociocultural do Brasil e do mundo. É indiscutível a força de ter a maior Mostra já realizada com suas obras dentro do museu mais icônico e visitado do país (em 2021, o Itaú Cultural realizou uma Ocupação em sua homenagem), no período de um governo inclinado ao fascismo, para o qual o Deus cristão está acima de tudo.
Toda história de resistência sendo exibida em um momento de escândalos de corrupção na educação, desmonte da cultura, aumento de crimes por intolerância religiosa, genocídio escancarado de negros e indígenas e aparelhamento das instituições públicas, aponta um possível norte a seguir. Nascimento é nosso pássaro Sankofa, aquele que nos lembra que é importante olhar pra frente sem esquecer do passado, de onde viemos e o que somos. Ele nos faz lembrar, a cada pincelada, que o Brasil não é e não pode ser um país sem memória.
* Reportagem produzida para o Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo (Celacc-USP)
Abdias Nascimento: um artista panamefricano. Curadoria de Amanda Carneiro (assistente) e Tomás Toledo (curador-chefe). No Masp, até 5 de junho. Ingressos a 50 reais; terças-feiras gratuitas.